O privilégio é um contínuo
Uma possível definição de privilégio: uma faceta do nosso dia a dia que nos parece naturalizada e normativa, sobre a qual nunca pensamos porque sempre contamos com ela, mas que faz uma falta aguda e pronunciada às pessoas que não dispõem dessa vantagem.
Uma mulher cisgênero e heterossexual, por exemplo, não conta com várias “vantagens” masculinas que, para os homens, são tão naturais que nunca nem pensam nelas, como falar sem ser interrompida em uma reunião de negócios ou ter a temperatura do ambiente de trabalho sempre regulada para o seu conforto pessoal.
Por outro lado, do ponto de vista de pessoas trans* e homossexuais, essa mesma mulher dispõe de vários privilégios com os quais elas apenas sonham, como usar o banheiro que se encaixa com sua identidade de gênero e passear de mãos dadas nas ruas com a pessoa com quem tem um relacionamento amoroso.
O contínuo de privilégios de uma sociedade complexa como a brasileira é tão complexo quanto ela.
Cada uma de nós existe em ponto diferente, fluido e mutável, desse mesmo contínuo de privilégios.
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Assim caminha nosso privilégio
A Caminhada do Privilégio é um exercício que vem sendo realizado em cursos de diversidade nos Estados Unidos.
O seu objetivo é tornar mais visível e mais palpável a distribuição desigual de privilégios em nossa sociedade.
O exercício começa com um grupo de pessoas, de pé, lado a lado. Em seguida, são feitas perguntas relativas aos seus privilégios. Dependendo de quais privilégios tiveram acesso, as pessoas dão passos à frente ou atrás.
Nos meus encontros, tenho realizado uma versão brasileira desse exercício. Quando possível, faço a atividade em uma escada ou ladeira, para que o resultado fique ainda mais graficamente concreto.
O vídeo abaixo ilustra bem o processo:
As pessoas que vêm às minhas instalações já são todas, em larga medida, bastante privilegiadas. Mesmo assim, ao final do exercício, aquele grupo de pessoas privilegiadas que começou ombro a ombro está todo espalhado.
Uma ilustração concreta das distâncias que nos separam.
Abaixo, algumas das perguntas que faço, sempre em constante mutação.
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Perguntas que revelam privilégios
1. se consegue dar um passo à frente, dê um passo à frente.
2. se tem plano de saúde particular, dê um passo à frente.
3. se pode viajar por conta própria pelo mundo sem sofrer restrições legais, e sem sentir medo de assédio ou violência sexual, dê um passo à frente.
4. se demonstra afeto por seu companheiro ou companheira em público sem sentir medo de ridicularização ou violência, dê um passo à frente.
5. se suas pessoas ancestrais vieram ao brasil escravizadas, dê um passo atrás.
6. se as pessoas que lhe criaram tiveram que trabalhar à noite, nos finais de semana ou em dois empregos para sustentar a família, dê um passo atrás.
7. se já teve que escolher entre carreira e ter filhos/filhas, dê um passo atrás.
8. se nunca recebeu diagnóstico de doença mental ou deficiência mental ou física, dê um passo à frente.
9. se veio de um ambiente familiar que lhe apoiava em seus projetos e ambições, dê um passo à frente.
10. se o bairro onde mora ou cresceu tinha alta incidência de crime ou tráfico de drogas, ou já foi invadido e ocupado pelo poder público, dê um passo atrás.
11. se já teve que mudar seu sotaque ou modo de falar para ter mais credibilidade, dê um passo atrás.
12. se seguranças de estabelecimentos comerciais lhe seguem, dê um passo atrás.
13. se a sua orientação sexual é utilizada como xingamento, dê um passo atrás.
14. se usa o banheiro no qual se sente mais confortável, dê um passo à frente.
15. se encontra facilmente roupas para o seu tamanho, dê um passo à frente.
16. se o seu comportamento (e, em especial, seus erros) são raramente atribuídos ao seu gênero, dê um passo à frente.
17. se pode legalmente se casar com a pessoa que ama, dê um passo à frente.
18. se precisou de bolsa para custear seus estudos em uma universidade particular, dê um passo para trás.
19. se já foi a única pessoa de sua raça em uma sala de aula ou num local de trabalho, dê um passo atrás.
20. se acha que nunca perdeu emprego ou oportunidade somente por seu gênero, dê um passo à frente.
21. se passa ao menos uma parte do mês no cheque especial, dê um passo atrás.
22. se o seu pai participou ativamente da sua criação, dê um passo à frente.
23. se já ficou desconfortável com um comentário sobre sua aparência, mas não sentiu segurança para confrontar a situação, dê um passo atrás.
24. se teve que trabalhar para ajudar família durante ensino médio ou superior, dê um passo atrás.
25. se se sente confortável de andar por conta própria pelas ruas dos bairros onde vive e trabalha, dê um passo para frente.
26. se o nome no seu documento de identidade é o nome com o qual você se apresenta às pessoas, dê um passo à frente.
27. se já sentiu como se não existisse uma representação verdadeira da sua orientação sexual na mídia, dê um passo atrás.
28. se nunca teve um apelido baseado em sua raça, dê um passo à frente.
29. se já conseguiu emprego por amizade, parentesco ou indicação pessoal, dê um passo à frente.
30. se havia mais de cinquenta livros na casa onde cresceu, dê um passo à frente.
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Culpa, responsabilidade, narcisismo
Depois da caminhada, sentamos todas para conversar.
Muitas pessoas ficam surpreendidas.
Algumas porque sempre tinham se pensado como privilegiadas e se surpreenderam ao ver que foram ficando para trás.
Outras porque nunca tinham se pensado como privilegiadas e se surpreenderam ao ver que estavam disparando na frente.
Muitas também relatam um forte sentimento de vergonha: às vezes, vergonha por dar passos atrás e ficar pro final, às vezes vergonha de dar passos à frente e ficar no começo.
Invariavelmente, a discussão acaba caindo na questão da culpa. Uma imensa culpa por nossos privilégios, revelados assim tão concretamente.
Mas essa culpa, além de ser falsamente atribuída, não leva a nada.
Não somos culpadas por nossos privilégios. Eles são resultados de ações tomadas muito antes de nascermos. Só devemos sentir culpa ou não por aquilo que de fato fazemos.
Nada poderia ser mais narcisista do que a infinita masturbação mental de passar horas e horas girando em torno de nossos próprios egos, remoendo nossas falas e atos, e nos martirizando por privilégios que não criamos.
Ao invés de culpa, prefiro falar em responsabilidade.
Se a culpa é paralisante, a responsabilidade é energizante.
Nós, as pessoas privilegiadas, não somos culpadas dos crimes da nossa sociedade outrofóbica, machista, racista, elitista, homofóbica, transfóbica, intolerante.
Mas, como beneficiárias desses crimes, temos a responsabilidade de ajudar. De nos tornar parte da solução e não do problema.
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Na Prisão Privilégio, eu desenvolvo esses temas mais a fundo.
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Exercícios de Atenção, a série completa
5. Cultivar o não-conhecimento
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Mudança de nome: de Empatia para Atenção
A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.
Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.
Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.
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Os encontros "As Prisões"
São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?
O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.
Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.
Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.
Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.
Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.
Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.
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Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios. (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas e Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
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