Prisão conhecimento

Cultivando o não-conhecimento e abraçando a não-certeza, exercendo a não-opinião e praticando o não-debate. Ouvindo e aceitando, acolhendo e abraçando.

Nosso sistema educacional nos treina para acumular conhecimentos e formar certezas, expressar opiniões e debater ideias.

São valores raramente questionados: quando foi a última vez que nos aconselharam entesourar menos conhecimentos e cultivar mais incertezas, autocensurar opiniões e evitar debates?

Mas, em muitos casos, o acúmulo de um arsenal de conhecimentos pode nos tornar arrogantes, entricheiradas atrás de uma muralha de certezas, bombardeando o mundo com uma saraivada de opiniões não-solicitadas, convencidas de nosso direito de converter e subjugar todas as pessoas que não têm a sabedoria de pensar como nós.

Por outro lado, cultivar o não-conhecimento nos leva a abraçar a não-certeza, que nos faz exercer a não-opinião e, assim, praticar o não-debate.

Uma atitude que, longe de estimular a apatia e a alienação, faz com que estejamos livres para agir politicamente no mundo com menos narcisismo e com mais liberdade, com menos autocentramento e com mais empatia.

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1. Cultivar o não-conhecimento

Três votos budistas

— Praticar o não-conhecimento, abrindo mão de certezas prévias;

— Testemunhar a alegria e o sofrimento, não virando o rosto à dor alheia;

— Agir no mundo de acordo com essas duas posturas.

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Praticando os três votos

Sou escritor, professor, crítico. Décadas de estudo formal e de pesquisas acadêmicas, em três países e em três idiomas, me treinaram a acumular, demonstrar, repassar conhecimento.

Não seria exagero dizer que cultivar uma postura de não-conhecimento vai literalmente contra tudo o que fui treinado em minha vida adulta.

Assim, ao reconhecer a enormidade do meu não-conhecimento, a primeira coisa que perdi foi aquela profunda certeza na solidez das minhas opiniões.

Sem essa certeza, eu já não me sentia mais tão impelido a julgar e opinar sobre as vidas alheias.

Sem julgar e sem opinar, minhas interações humanas começaram a se tornar menos egocêntricas e autocentradas.

Agora, já era possível simplesmente estar ali, ao lado de outra pessoa, de maneira plena e aberta, não como mais um juiz que tudo sentencia ou como mais um mestre que tudo aconselha, mas apenas como um outro ser senciente, falho e ignorante, mas capaz de ouvir e de aceitar, de acolher e de abraçar.

Durante algum tempo, eu temia que cultivar o não-conhecimento e exercer a não-opinião significasse me omitir de agir politicamente no mundo.

Mas não.

Ao testemunhar a alegria e a dor alheias a partir de uma postura de não-conhecimento, eu podia agir no mundo de forma mais efetiva e mais generosa, menos egóica e menos violenta, mais transformadora e mais política.

Nem sempre consigo. Aliás, quase nunca.

É um processo, um caminho, uma prática.

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Interagir de forma menos egoica

No encontro "As Prisões", durante o exercício da Escutatória, as pessoas contam suas histórias de vida e as outras escutam, com atenção plena e sem interromper. Quando a narradora termina, é hora de interagir com sua história.

Eu só peço que as participantes se abstenham de:

1. Contar um caso equivalente que aconteceu com elas ou com pessoas conhecidas:

"menina, meu tio foi assaltado desse mesmo jeito!"

2. Dizer o que a narradora deveria ter feito:

"você não devia ter reagido, tá louca!"

3. Dizer que teriam feito no lugar da narradora:

"se fosse comigo, eu virava a mão na cara dele!"

Ocasionalmente, algumas das pessoas participantes questionam as regras do exercício:

"Não pode falar nada, é isso? É pra falar o quê?!"

Mas contar um caso equivalente, dizer o que a pessoa deveria ter feito ou o que você teria feito não são as únicas formas de interação com uma pessoa que acabou de abrir sua intimidade para nós.

São apenas as maneiras mais comuns, mais rasas, mais egoicas de interagirmos com os relatos de outras pessoas.

São apenas três diferentes maneiras de pegarmos uma história de outra pessoa e transformá-la em uma história... sobre nós, sobre nossa vida e sobre nossos valores, sobre nossos julgamentos e sobre nossas opiniões.

O objetivo da prática da Escutatória, para quem acha que o exercício vale a pena, é justamente quebrar esse padrão e promover interações menos rasas, menos egoicas.

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Outra objeção que costuma surgir é:

"Não pode aconselhar? Não pode ajudar? Temos que nos omitir? E se a pessoa pedir conselho? E se ela quiser saber o que eu faria, o que eu acho que deveria ter feito?"

Não cabe a mim dizer o que ninguém pode ou não pode, deve ou não deve fazer. A Escutatória é proposta como uma prática voluntária: qualquer pessoa que a considere insensata ou impraticável pode simplesmente não participar.

Mas, antes que desistam, conto uma historinha.

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Como não aconselhar: a chefa da minha amiga

Uma vez, uma pessoa amiga veio desabafar comigo:

"Minha chefa tem estado uma pilha de nervos a semana inteira. Por causa disso, todas as pessoas do escritório estão tensas, estressadas. Aí, hoje, de repente, na frente de toda a minha equipe, ela desancou meu último relatório, me chamou de idiota pra baixo. O que acha que devo fazer?"

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Quase toda pergunta já traz em si a resposta desejada

Muitas vezes, pedimos conselhos não para "saber o que devemos fazer", mas para validar as decisões que já tomamos — nem que essa decisão tenha sido tomada apenas em um nível ainda não consciente.

Nesse caso, minha amiga aparentemente queria minha benção para mandar a chefa à merda e se demitir desse emprego.

Caso sua decisão fosse outra, outra teria sido sua história. Digamos que tivesse me contado o seguinte:

"Lembra aquela chefa de quem te contei? Que foi a primeira a me dar uma chance quando eu ainda nem tinha currículo? Que me promoveu várias vezes dentro da empresa? Pois é, descobriu que o marido está com câncer na semana passada e está uma pilha. Dando patada em todo mundo. Hoje, por exemplo, me desancou na frente da minha equipe toda, maior humilhação da minha vida. O que acha que devo fazer?"

Quem conta essa segunda história está em busca de outro tipo de validação, um outro tipo de resposta:

"Fica assim, não. Perdoa sua chefa. Ela está nervosa. Daqui a pouco, com certeza, vai pedir desculpas. Todas as colegas sabem que ela está uma pilha, vão dar um desconto. Pensa em tudo o que ela fez por você e pela sua carreira. Não é fácil encarar um câncer na família. Etc etc."

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Não existe mensagem sem contexto

Ao narrar uma história, escolhemos não só os fatos que vamos contar e os que vamos omitir, mas escolhemos também para quem vamos contar esses fatos.

No meu caso, por exemplo, como já escrevi que o trabalho é uma prisão, as pessoas em geral esperam que o meu conselho seja uma variação de:

"Larga essa vida! Sai desse emprego! Vai fazer o que te faz feliz! Etc."

(Nunca é.)

Então, quando precisam que alguém valide sua decisão de sair de seus empregos, a tendência é escolherem contar suas histórias para mim — e não, por exemplo, para a prima que trabalha para o Banco do Brasil há vinte anos.

Muitas vezes, pulamos de amiga em amiga recontando o mesmo conto e aumentando vários pontos até finalmente encontrarmos alguém que valide nossa decisão prévia.

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A vida das outras pessoas não é um problema para resolvermos

Quando uma pessoa escuta um problema e já corre para aconselhar, o que ela está dizendo, na verdade, é:

"Você achava que tinha um problema só porque ainda não tinha falado comigo. Senta aí e prepare-se para beber as soluções que vão jorrar da minha fonte de sabedoria."

Mas será que realmente temos como resolver as vidas das pessoas à nossa volta com a mera articulação de nossas ó-tão-sábias opiniões?

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Cheias de conhecimentos, insufladas de certezas, borbulhantes de opiniões, nossa tendência é supervalorizar a originalidade de nossos incríveis conselhos.

Mas, com exceção de possíveis casos hipotéticos onde a pessoa aconselhadora de fato possui algum conhecimento técnico ou exclusivo...

("Hmm, olha, eu sou dermatologista e vou te dar um conselho: não coça essa mancha não, e vamos fazer uma biópsia já!")

...eu raramente testemunhei algum conselho que realmente trouxesse uma contribuição original, uma ideia que ainda não tinha ocorrido a ninguém: minha amiga sabe que, se quiser, pode sair do emprego, assim como sabe que, se quiser, também pode ficar.

Esse tipo de conselho, previsível e convencional, só teria alguma utilidade se minha amiga estivesse tratando sua vida profissional como se fosse um plebiscito entre colegas e parentes:

"Hmm, agora com o voto da Tia Belinha, acho que o placar da apuração finalmente virou: 7 a 8, vou ter que me demitir!"

* * *

Mais importante do que determinar qual é a atitude "certa" que minha amiga deve tomar; mais importante do que encarar sua história como um problema a ser resolvido ou como um teste que tem uma resposta certa; lembrando sempre que não leio pensamentos e posso estar errado; minha atitude é simplesmente ajudá-la a entender ou articular o que ela mesmo já decidiu ou está prestes a decidir.

"Estou aqui, do seu lado, pra te acolher, pra te ouvir, pra te ajudar na decisão que escolher, mas não tenho conhecimento o suficiente para saber o que você deve fazer. Pela história que contou, porém, me parece que você quer pedir demissão."

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O verdadeiro conhecimento é mais do que a soma de todos os fatos

Minha amiga não gostou:

"Como assim "não tem conhecimento o suficiente?" Acabei de te contar a história toda!"

Nesse ponto, a pessoa ostensivamente em busca do conselho pode se sentir tentada a empilhar detalhe em cima de detalhe sobre nós, até não podermos mais alegar falta de conhecimento para opinar.

O problema é que o somatório de todos os detalhes do universo não seria jamais suficiente para nos fornecer o conhecimento necessário para saber como outra pessoa se sente, para saber o que outra pessoa deveria fazer.

Em relação à história da minha amiga, somente alguns exemplos de coisas que eu não sei e que poderiam influenciar minha opinião sobre o que deveria fazer:

Foi a primeira vez que a chefa foi rude com ela? Ela é rude com outras pessoas ou só com minha amiga? Ela tem outras características positivas? Quais? Que tipo de pessoa ela é fora do trabalho? Há quanto tempo trabalham juntos? Como é sua relação profissional? O tal relatório que desancou estava ruim mesmo? Era um relatório importante? Como está o mercado de trabalho em sua área de atuação? Seria difícil arrumar um novo emprego nessa área? Se saísse desse emprego, aliás, continuaria na mesma área? Minha amiga é conhecida ou renomada em sua área de atuação? Já tem alguma oferta de trabalho engatilhada? Comparada às outras profissionais dessa área, ela é mais ou menos competente do que a média? Tem dinheiro economizado para os meses sem renda? Tem despesas altas que se acumulariam caso ficasse sem renda? etc etc.

Se minha amiga poderia empilhar fatos eternamente para me dar os subsídios para opinar, eu também poderia empilhar perguntas eternamente para demonstrar minha falta de subsídios para opinar.

Nem todos os fatos do mundo seriam suficientes para me dar acesso à enormidade e à complexidade da experiência de minha amiga consigo mesma, com seu trabalho, com sua chefa.

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Ouvir, aceitar, acolher, abraçar

A partir de uma postura de não-conhecimento e de não-opinião, eu de fato não tenho como dizer à minha amiga o que deve fazer, mas isso não quer dizer que  não posso ajudar.

Caso decida ficar no emprego, posso dar dicas sobre como evitar conflitos com a chefa nessa fase estressante, ou posso aparecer em sua casa com uma garrafa de vinho e fazer um jantar.

Caso decida sair do emprego, posso ajudá-la a conseguir outra colocação, posso revisar seu currículo, posso hospedá-la em minha casa, posso lhe emprestar dinheiro.

Decida ela o que decidir, posso continuar me dispondo a ouvi-la, uma das principais maneiras de ajudar qualquer pessoa.

Sem nunca me colocar na posição de "guru-que-tudo-sabe", eu sempre posso...

Ouvir. Aceitar. Acolher. Abraçar.

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Uma prática constante de não-conhecimento

Para muitas de nós, e com certeza para mim, ocupar esse espaço do não-conhecimento pode ser especialmente penoso. Para fugir desse incômodo, aproveitamos qualquer oportunidade ("sobre isso, eu sei mesmo!") para outorgar nossa ó-tão-importante opinião, lastreada em nosso ó-tão-profundo conhecimento.

Os monges e as monjas budistas, quando se sentem tentadas a violar seus votos de castidade, apelam para o seguinte truque mental: tentam visualizar seu objeto do desejo não como uma pessoa, mas como um saco de órgãos, coração, fígado, rim, sangue circulando pelas veias, fezes se acumulando no intestino reto, tudo isso lentamente apodrecendo em direção à morte.

Então, sempre que me sinto tentado a subir no atraente pedestal do conhecimento, para assim distribuir sábios conselhos à pobre ralé lá debaixo, eu tento apelar para um truque mental semelhante:

Listar minhas dúvidas, visualizar minhas lacunas, corporificar minha ignorância.

Ao fazer isso mentalmente, algumas vezes (mas nem sempre) eu até consigo erodir minhas certezas ao ponto de não verbalizar opiniões ou conselhos.

Ao fazer isso verbalmente, algumas vezes (mas nem sempre) eu até consigo fazer minha interlocutora refletir sobre sua própria situação e decidir por si mesma o que fazer — sem que sejam necessários meus ó-tão-sapientes conselhos.

E, de qualquer modo, mesmo que eu consiga refrear meus impulsos intrusivos e egoicos, será sempre uma vitória efêmera: na próxima frase, na próxima interação, na próxima pessoa, no próximo pedido de conselho, zera tudo e preciso, mais uma vez conscientemente, ativamente, habitar o não-conhecimento.

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2. Abraçar a não-certeza

Pelo direito de estarmos confusas

Uma vez, em sala de aula, eu acabara de expor um tempo verbal bem complexo para o qual não existia equivalente na língua materna das alunas. Uma delas, a que tinha mais dificuldade, levantou o braço e disse que ainda estava muito confusa. Perguntei se tinha mais alguém confusa na sala. Muitas levantaram o braço.

E expliquei:

Vocês acabaram de ser expostas a uma quantidade grande de informação sobre um tempo verbal totalmente novo, que funciona de um modo bem diferente da lógica da língua nativa de vocês. Diante disso, a reação mais correta, mais apropriada e mais humana é mesmo ficar confusa.

Se, agora, nesse momento, vocês estivessem seguras de ter entendido tudo, provavelmente seria uma falsa confiança, fruto de um entendimento incompleto. Vocês ainda vão passar vários dias confusas, mas não tem problema. O teste é só daqui a um mês. Enquanto isso, vamos treinar isso juntas, em sala, em grupos, sem valer nota, até vocês de fato saberem como usar esse tempo verbal.

Até lá, ficar confusa só faz bem.

A aluna que fez a primeira pergunta me olhou com um alívio tão grande, mas tão grande que fiquei até emocionado, e desabafou:

"Nunca ninguém tinha me dito que eu podia ficar confusa!"

* * *

E se eu estiver errado? 

Nenhuma pessoa pode estar certa o tempo todo. Racionalmente, portanto, sei que estou errado em muitas das minhas certezas.

Se penso no meu eu-de-dez-anos-atrás, posso facilmente listar várias certezas equivocadas dessa pessoa que agora me parece tão distante.

Por outro lado, hoje, vivo imerso na segurança das minhas certezas, tão lógicas, tão abalizadas, tão autoevidentes!

(Afinal, se não achasse que minhas opiniões estão certas, elas automaticamente deixariam de ser minhas opiniões, certo?)

Entretanto, apesar dessa minha imensa segurança nas minhas certezas, a não ser que eu queira sinceramente me colocar na insustentável posição de única pessoa do mundo que jamais está errada, eu tenho que presumir que muitas das minhas certezas atuais são equivocadas.

Daqui a dez anos, se eu ainda estiver vivo, quais serão as falsas certezas que verei no eu-de-hoje?

Em que estou errado hoje, apesar de jurar que estou certo?

* * *

E se as pessoas souberem mais da vida delas do que eu?

Vivo cercada de pessoas que (me parece que) estão autodestruindo suas vidas diante dos meus olhos: amigas apaixonadas por namorados canalhas, amigos sem talento sonhando ser artistas, parentes insistindo no negócio fracassado.

Essas opiniões sobre as vidas alheias surgem dentro de mim com extraordinária clareza, quase verdades divinamente reveladas:

"Como pode ela não enxergar que esse namorado é abusivo?! Como pode ele não ver que esse negócio está comendo suas economias e vai falir de qualquer jeito? É tão claro, tão óbvio, tão autoevidente!"

Então, decido interferir. Afinal, essas pessoas — ofuscadas por seu amor romântico, por seus sonhos de estrelato, por seus desejos de liberdade — não sabem o que estão fazendo. Ainda bem que eu sei: eu vejo a verdadeira verdade que elas não veem. E vou falar!

Mas... e se eu estiver errado?

E se minha amiga entender mais do seu relacionamento, dos seus sentimentos, de suas necessidades... do que eu? E se meu amigo entender mais dos seus sonhos e de suas expectativas em relação à arte... do que eu? E se meu parente entender mais de seu mercado, de seu negócio, de quanto pode investir... do que eu?

Afinal, se observo a vida dessas pessoas e considero que estão fazendo tudo errado... quantas pessoas não observam a minha vida e consideram que eu estou fazendo tudo errado?

Se não dou a elas o direito de interferir na minha vida, por que eu teria o direito de interferir na vida dessas outras pessoas?

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Dois conselhos bem-intencionados

Quando decidi ficar no Brasil, ao invés de estudar nos Estados Unidos, a consultora vocacional da minha escola disse que eu estava jogando a minha vida fora.

Décadas depois, quando decidi largar o meu doutorado nos Estados Unidos e voltar para o Brasil, minha orientadora disse que nunca soube de ninguém que fez isso e não se arrependeu amargamente.

A consultora vocacional era uma norte-americana, morando no Brasil há um ano, dedicada a colocar as pessoas alunas da minha escola no máximo possível de universidades nos Estados Unidos: era compreensível que enxergasse nosso país como um deserto educacional e que ficasse mortificada que uma aluna que considerava promissora escolhesse estudar em uma universidade de terceiro mundo que ela nunca tinha ouvido falar, ao invés de em uma universidade norte-americana famosa em todo o mundo.

Minha orientadora no doutorado era uma pessoa que dedicara toda a sua vida e todos os seus esforços ao meio acadêmico, para formar-se doutora e para formar novos doutores: era natural que considerasse que uma carreira bem-sucedida no meio acadêmico fosse superior a uma carreira bem-sucedida em outras áreas. Além disso, conheço muita gente para quem abandonar o doutorado foi a melhor decisão que tomaram, mas, por uma falácia de amostragem, suponho que as ex-doutorandas que ainda mantém contato com suas ex-orientadoras sejam desproporcionalmente as arrependidas, em oposição à ex-doutorandas cujas vidas foram em outras direções, que estão se realizando em outras áreas e, assim, perderam o contato com as pessoas de suas encarnações acadêmicas.

Eram ambas pessoas boas, que desejavam o melhor para mim, me dando conselhos cheios de boas intenções — e cheios também, como não poderia deixar de ser, de suas próprias expectativas, sonhos, preconceitos.

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Minhas certezas não estão automaticamente certas

Eu me pergunto "e se eu estiver errado?" não como uma justificativa para a inação e para a apatia (afinal, se não posso ter certeza de nada, para que me envolver, para que lutar, para que interferir?) mas como um contrapeso ao narcisismo das minhas ó-tão-firmes certezas.

Por mais firmes que sejam minhas certezas, por mais óbvias que sejam as maneiras pelas quais as outras pessoas parecem estar destruindo suas próprias vidas, ainda assim minhas certezas não estão automaticamente certas.

Sim, pode ser que minha amiga seja uma vítima e que esteja sendo abusada por seu namorado, como me parece tão óbvio, tão simples, tão autoevidente.

Mas... pode ser que ela esteja vivendo o relacionamento que deseja e que precisa; pode ser que aquilo que eu vejo como problemas para ela não sejam; pode ser que sejam problemas que ela considera toleráveis em troca de vantagens que não vejo e não tenho como julgar.

Também pode ser que eu esteja projetando no namoro dela a relação abusiva que eu vivi e da qual demorei anos para me livrar; pode ser que eu esteja sendo influenciado pela memória de todas as minhas amigas que viveram relações de fato abusivas; pode ser que eu esteja querendo redimir minha culpa por não ter interferido em outras relações abusivas que acompanhei e não fiz nada.

Afinal, apesar da irresistível força das minhas autoevidentes certezas, se minha amiga e eu temos opiniões diferentes sobre a vida dela, por que a minha opinião estaria automaticamente certa?

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Somos péssimas juízas de nós mesmas

Não estou afirmando que as pessoas sempre sabem melhor de suas próprias vidas do que as outras. De fato, o oposto provavelmente é verdadeiro.

Somos péssimas juízas de nós mesmas: além de autoindulgentes, levamos excessivamente em conta nossas intenções. Já as outras pessoas têm a enorme vantagem de nos analisar somente por nossas ações.

No meu dia-a-dia, nas interações cotidianas com as pessoas, me vêm à mente dezenas de respostas ácidas, comentários grosseiros, patadas engraçadinhas, e eu, pessoa autocontrolada e bem educada que sou, censuro quase todas antes de serem ditas. Então, antes de dormir, olhando para trás e pensando em todas as grosserias que, ao custo de muito esforço, não verbalizei, eu penso, satisfeito comigo mesma:

"Hoje, consegui não ser uma pessoa rude."

Mas a palavra-chave é quase.

Uma ex-namorada, que andou comigo para cima e para baixo por anos e me conhecia muito bem, se dizia às vezes envergonhada pela minha rudeza. De início, esse comentário me horrorizava, eu me sentia um pobre injustiçado:

"Rude, eu?! Depois de tanto trabalho que tive o dia todo?! Depois de não xingar o cara que me cortou no trânsito?! Depois de não brigar com a garçonete que me sujou de café?!"

Mas minha ex-namorada, ao contrário de mim, não tinha acesso às dez grosserias filtradas pela minha autocensura naquele dia, mas somente às duas patadas que eu não tinha conseguido segurar. Para ela, portanto, eu não era a pessoa autocontrolada e bem-educada que se abstivera de verbalizar dez grosserias. (Toma um biscoito, você merece!) Pelo contrário, eu era a pessoa rude que, em um único dia, dera duas patadas grosseiras em gente que não merecia.

Não importa se passei décadas e décadas todos os dias nunca matando ninguém: basta passar alguns poucos segundos matando alguém e sou uma assassina.

O que importa é o que a gente faz.

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Interferir é sempre uma difícil decisão política

Será que a outra pessoa está destruindo mesmo sua vida ou não? Se estiver destruindo sua vida, até que ponto ela tem esse direito e tenho que respeitar, e até que ponto tenho o direito e obrigação de interferir? Onde termina a omissão e começa a invasão?

Essas são questões políticas que encaramos todos os dias, tanto em nossas relações humanas, quanto em nossas relações diplomáticas. Cada vez que estoura uma guerra civil ou acontece um massacre genocida, a comunidade internacional enfrenta o mesmo dilema moral que qualquer pessoa diante do relacionamento abusivo de uma amiga.

A resposta nunca é fácil, nunca é simples. Quem acha que é, provavelmente está se enganando.

Ou vai ver estou errado.

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Para evitar o narcisismo autocongratulatório das certezas indulgentes que tenho sobre mim mesmo

("não sou uma pessoa rude")

e para evitar a interferência invasiva das certezas que tenho sobre outras pessoas

("ela está destruindo sua vida, tenho que fazer alguma coisa")

a melhor solução que encontrei foi sempre me perguntar:

"E se eu estiver errado?"

* * *

3. Exercer a não-opinião

Nossas opiniões são violentas

Em nossa sociedade narcisista, onde somos criadas para achar que o mundo gira à nossa volta, tendemos a dar um valor excessivo a nossas próprias opiniões. (Afinal, são opiniões dessa pessoa tão incrível: eu!)

Pior, achamos não só que temos um direito divino de ter opinião sobre tudo, como também de expressar essa sabedoria a todo momento, e, mais ainda, que é um favor que fazemos às pobres mortais dizer a elas o que pensamos sobre suas vidas.

Mas essa constante e infindável salva de opiniões que atiramos umas contra as outras é uma violência, é uma intrusão, é puro egocentrismo.

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Perguntar ofende sim

Raramente percebemos como nossas opiniões podem ser agressivas, invasoras, violentas.

Quando perguntamos a nossa amiga casada quando ela vai finalmente ter filhos ou filhas, a pergunta nos parece inócua e amigável. Afinal, só estamos perguntando porque temos intimidade, certo?

Entretanto, para a pessoa que está do outro lado, o comentário é opressivo. Porque não é a primeira, nem a vigésima, nem a centésima vez que é feito.

Como essa pessoa pode se sentir acolhida, feliz, aceita entre suas amigas e familiares se praticamente todo dia alguma delas a interpela sobre uma das escolhas mais importantes de sua vida?

A mensagem passada por essa constante enxurrada de comentários, uma mensagem ao mesmo tempo violenta e invasiva, é que a sua escolha de vida, que deveria ser íntima e indevassável, causa enorme desconforto às suas pessoas mais próximas. Se não, por que tanta insistência? Se não, por que tanta intrusão?

Durante algum tempo, eu achei que isso só acontecia com as pessoas que escolhiam caminhos não-convencionais — como não ter crianças em uma sociedade onde praticamente todas as pessoas têm.

Mas não é verdade: porque se a pessoa finalmente ceder à pressão e tiver um bebê, a nova pergunta intrusiva será:

"E quando vai ter o segundo?"

E não só isso. As pessoas amigas e familiares querem saber quando vai finalmente largar o teatro, parar de se vestir assim, fazer faculdade, defender a tese, prestar concurso, prestar um concurso que ganhe mais, arrumar um emprego, largar esse emprego, arrumar namorada, casar com namorada, comprar um imóvel, comprar um imóvel maior, comprar um carro, comprar um carro melhor, virar hétero, abraçar a monogamia, encontrar Jesus, tomar jeito, etc.

A lista é tão infinita quanto são infinitos os comportamentos das pessoas.

Todos esses comentários são violentos. Todos eles são pequenos espinhaços diários que cravamos justamente nas pessoas mais próximas a nós.

Por que fazemos isso? Por que nos damos ao direito de ter opinião sobre questões tão pessoais das vidas de outras pessoas?

Mais importante, mesmo se essas opiniões aflorassem à revelia em nossas mentes (coitadas de nós, indefesas contra nossos próprios pensamentos!), por que nos damos ao direito de articulá-las em voz alta?

* * *

Somos as vítimas e somos as algozes

Nesse ponto, algumas pessoas se defendem:

"Mas, pôxa!, eu só falo isso com quem tenho intimidade!"

Exatamente. A senhorinha que encontramos na fila do banco raramente invade nossas vidas.

A violência constante e contínua dos comentários invasivos é exclusivamente perpetrada pelas pessoas mais próximas a nós. Justo aquelas que deveriam nos amar e nos respeitar, e não nos oprimir com sua avalanche de opiniões não-solicitadas.

Em um dos encontros "As Prisões", uma moça que tinha acabado de contar sobre a pressão violenta que sofria da família para ter bebê ("é como se todo dia houvesse um teste que eu nunca passo!") de repente começou a chorar.

Pensamos que estava chorando por si mesma, mas não.

A moça tinha acabado de se dar conta que ela, a família, as amigas, faziam a mesma coisa com seu irmão caçula, que namorava uma moça há catorze anos e "ainda" não tinha casado. As perguntas incessantes, a cobrança constante, a zoação bem-humorada.

O mesmo inferno.

* * *

De onde emanam as leis que aplicamos umas contra as outras?

Nossa sociedade é governada por uma tirânica ditadora, constantemente julgando, criticando, oprimindo todas as suas súditas.

É ela que decide que "ninguém pode namorar catorze anos sem casar" e que "toda mulher casada deve ter bebê". Que temos que ser pessoas heterossexuais, monogâmicas, religiosas. Que precisamos ter casa própria, automóvel na garagem, emprego em tempo integral.

Essa tirana, entretanto, não possui existência concreta. Ela não tem como fisicamente impor sua vontade sobre nós.

Para exercer sua opressão, ela precisa converter suas súditas oprimidas em opressoras policiais do senso comum, ao mesmo tempo vítimas e algozes, eternamente julgando e condenando umas às outras, sempre implementando suas regras, seus julgamentos, suas leis.

Um dos meus objetivos de vida é não me prestar mais a esse papel: deixar de trabalhar para a polícia secreta dessa tirana.

* * *

O direito de verbalizar minhas opiniões

Por que me dou ao direito de ter opinião sobre as decisões pessoais de outros seres humanos?

Parece a coisa mais normal do mundo, passamos nossas vidas inteiro dando pitacos nas vidas umas das outras, mas, se paro para pensar, sinceramente... por quê?

Penso em algumas das opiniões que articulei recentemente sobre pessoas próximas e me pergunto:

Quem sou eu para mesmo ter essas opiniões? Por que esses julgamentos tão peremptórios sobre as escolhas de outra pessoa surgem em minha mente?

Isso me afeta? O que tenho a ver com a vida dela? Que impacto pode ter na minha vida se ela casa ou não, tem bebê ou não, etc? Aliás, mesmo se tiver algum impacto na minha vida, isso me dá o duplo direito de ter opiniões e de emitir opiniões?

Mais que isso, mesmo se eu tiver esse duplo direito, será que tenho conhecimento o suficiente? Será que conheço essa pessoa tão a fundo, seus anseios, seus traumas, suas prioridades, para realmente ter uma opinião abalizada e responsável se ela deve largar ou não o emprego, cursar biologia ou direito? Aliás, mesmo se eu tiver conhecimento para ter a opinião, isso me dá o direito de verbalizar essa opinião?

De onde vem esse direito? Quem me deu esse direito? Por que me parece tão natural que tenho sim o direito de ter opiniões, e de verbalizar essas opiniões, sobre as vidas de todas as pessoas à minha volta?

Ao cultivar o não-conhecimento, ao sair um pouco de mim, ao deixar de lado o meu Eu e suas certezas, percebi que minha fé nesse meu direito divino de opinar simplesmente se esvaiu.

* * *

Empatia pelas vítimas da minha saraivada de julgamentos

Em meus delírios egocêntricos, qual é o meu cenário ideal? Como penso que meu bombardeio de opiniões será recebido?

"Puxa, ainda bem que o Alex veio me dizer que ele acha que, afinal, depois de catorze anos de namoro, já está na hora de eu casar! Que alívio! Eu estava mesmo me perguntando o que ele achava! Agora finalmente posso tomar minha decisão, para minha própria vida, mas sempre levando em conta as opiniões de todas as pessoas que conheço!"

É assim que acho que minha intrusão será recebida?

Mais ainda, é assim que eu recebo as intrusões das outras pessoas? É assim que reajo quando amigas, família, colegas se metem nas minhas decisões, no meu trabalho, nos meus relacionamentos?

* * *

Canalizando o rio das minhas opiniões

O fácil é perceber que não tenho direito de formular e emitir opiniões sobre as escolhas pessoais de outras pessoas.

O difícil é de fato não emiti-las.

Um exercício mental que tenho feito é tentar visualizar as opiniões não-solicitadas que surgem em minha mente como se fossem a água brotando de uma fonte, borbulhando sem parar, correndo incontrolável por entre as pedras.

Não tenho como impedir a água de nascer, mas tenho como canalizar o rio que vai se formar. Não tenho como impedir as opiniões de brotarem, mas tenho como não canalizá-las boca a fora.

Reconhecer o direito das outras pessoas de viverem livres da opressão de minhas opiniões também é uma maneira de agir politicamente no mundo.

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4. Praticar o não-debate

Debater perdeu o sentido

Ao cultivar o não-conhecimento e exercer a não-opinião, uma atividade à qual já dediquei muito tempo e energia acabou se revelando completamente narcisista, arrogante, competitiva: o debater.

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Sem conhecimentos, certezas e opiniões, como debater?

Uma das premissas básicas do debate (mesmo que raramente articulada ou admitida) é que considero meus conhecimentos, minhas certezas, minhas opiniões melhores ou mais acertadas do que os conhecimentos, as certezas, as opiniões das pessoas com as quais estou debatendo.

Sem essa premissa, o próprio conceito de debate não faz sentido.

Mas, se me coloco em uma postura de não-conhecimento, se abraço minhas incertezas, se não reconheço meu direito de emitir opiniões...

Então, como debater?

* * *

Escrever não é debater

Ganho a vida escrevendo textos que expõem alguns dos meus conhecimentos, das minhas certezas, das minhas opiniões.

Quando recebo feedback sobre esses textos, leio com carinho e com atenção.

E pronto.

Outras pessoas usam esses textos para debater. Não tenho controle sobre isso e respeito a decisão de quem faz.

Mas prefiro só escrever os textos e, depois, não interferir nos debates que eles por ventura suscitem.

* * *

Não sou fiscal das ideias erradas do mundo

Algumas pessoas discordam veementemente dos meus conhecimentos, das minhas certezas, das minhas opiniões, e me escrevem comentários apaixonados, estimulantes, argumentativos; comentários que ontem teriam me provocado a um debate.

Mas eu não debato mais com essas pessoas: eu não desconstruo seus argumentos, eu não os convenço das minhas idéias, eu não lhes mostro seus pretensos erros.

Eu respeito suas opiniões e agradeço seu feedback.

Não cabe a mim o ônus de corrigir, iluminar, convencer as pessoas que têm opiniões diferentes das minhas. Ninguém me nomeou o fiscal das "ideias erradas" do mundo. Minhas ideias não são melhores que as deles.

* * *

A competição ensina as lições erradas

Algumas pessoas, chocadas com essa minha postura, perguntam:

"Mas, Alex, se você não debate, como aprende?!"

Hoje, tenho evitado atividades competitivas, como argumentar e contraargumentar; pegar a outra pessoa em contradições; demonstrar as falácias de seus argumentos; e tenho buscado atividades que não tenham nem vencedoras nem vencidas, como ouvir, aceitar, acolher, abraçar.

Considero que a competição traz tudo o que temos de pior. Um debate é um ambiente competitivo demais para que algo de valioso possa ser aprendido: debatendo só se aprende oratória e retórica, narcissismo e autocentramento.

Talvez outras pessoas aprendam em debates. Eu nunca aprendi nada.

Eu aprendo lendo, vivendo, experimentando. Em livros, em museus, nas ruas.

Mais do que tudo, eu aprendo... ouvindo!

Nada me ensinou mais do que simplesmente sentar com alguém e lhe oferecer o maior presente que posso dar:

Simplesmente estar ali, ao seu lado, com atenção plena, sem conhecimentos e sem certezas, sem opiniões e sem debates.

* * *

Se você discorda, eu te respeito

Faz muitos anos, escrevi e publiquei na internet uma versão preliminar desse texto sobre não-debater, que tem sido bastante citado e linkado — quase sempre por pessoas que também não querem debater.

Toda semana, alguém me escreve querendo debater esse texto, ou seja, querendo debater comigo minha postura de não-debater.

Minha resposta é sempre a mesma:

"Respeito sua opinião. Obrigado por compartilhá-la comigo."

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5. A inimiga é a ignorância

Toda prisão é uma prisão cognitiva

O que chamo de "As Prisões" são sempre prisões cognitivas: armadilhas mentais que construímos para nós mesmas, mentiras gigantescas que nunca questionamos, escolhas hegemônicas que ofuscam possíveis alternativas.

A Monogamia é uma prisão não porque ela seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque ela se apresenta como sendo a única opção concebível de organizar nossos relacionamentos, consignando todas as outras alternativas à imoralidade, à falta de sentimentos, ao fracasso: "relacionamento aberto não funciona, é coisa de quem não ama de verdade".

A Felicidade é uma prisão não porque seja ruim ou desaconselhável em si, mas porque se apresenta como sendo a única opção de fim último para nossas vidas, consignando todas as outras alternativas à condição de suas coadjuvantes e dependentes: "não é que o seu fim último seja ser virtuosa, mas você quer ser virtuosa para ser feliz, logo o seu fim último é ser feliz".

Quem está "presa" na Prisão Monogamia não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de viver relacionamentos monogâmicos, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, vive relacionamentos monogâmicos por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é viver a Monogamia, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Quem está "presa" na Prisão Felicidade não é a pessoa que fez a escolha livre e consciente de colocar sua própria felicidade individual como fim último de sua vida, mas sim aquela que, por ignorar a opção de não fazer isso, por nunca ter percebido a verdadeira gama de diferentes alternativas que lhe estavam abertas, busca sua própria felicidade por default, como se essa fosse a única possibilidade concebível. Sua prisão (cognitiva) não é buscar a Felicidade, mas ignorar a realidade que existe além dela.

Cada uma das Prisões, da Verdade à Religião, do Sucesso à Liberdade, é sempre, antes de mais nada, uma prisão cognitiva, uma percepção incompleta da realidade.

Por trás de todas as Prisões está sempre a mesma inimiga: a ignorância.

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A ignorância é a raiz do sofrimento

Há muitos anos, uma pessoa se sentou embaixo de uma árvore e se propôs analisar a humanidade como uma médica analisa uma paciente.

Em primeiro lugar, ela propôs um diagnóstico da doença:

O problema humano era o sofrimento intrínsico a ser uma criatura senciente que nasce apenas para sentir frio e dor, fome e abandono, e então morrer.

Em segundo lugar, ela propôs quais seriam as causas dessa doença:

A fonte desse sofrimento era uma ignorância fundamental sobre a natureza da realidade: acreditamos na ilusão de que temos existência concreta enquanto indíviduos; tentamos proteger esse Eu ilusório através de atos negativos baseados em orgulho e cobiça, ódio e inveja; sofremos quando sentimos as consequências inevitáveis desses atos. Sem essa ignorância, não haveria sofrimento.

(A Prisão Eu é toda sobre isso.)

Em terceiro lugar, ela propôs a possibilidade de cura dessa doença:

Não apenas esse sofrimento era possível de ser extinto, como essa cura poderia ser realizada pelas próprias pessoas humanas, sem necessidade de intervenção divina — uma das ideias mais revolucionárias da história.

Em quarto lugar, por fim, ela propôs o tratamento para essa doença:

Esse tratamento, formado por um conjunto de propostas para testarmos e validarmos, praticarmos e corporificarmos, em nossa experiência diária, é o darma — aquilo que no ocidente chamamos budismo — e eu não tentaria resumi-lo em um parágrafo.

Mas arrisco afirmar o seguinte: uma das definições possíveis do darma é um método prático para corrigir nossa percepção incompleta da realidade e, assim, erradicar nossa ignorância fundamental.

Nesse sentido, O Livro das Prisões, que comparte do mesmo objetivo, pode ser considerado um livro budista.

* * *

O não-conhecimento é o oposto da ignorância

Existem de fato pessoas que sofrem por falta de conhecimento, falta de educação, falta de escolaridade. Esse é um problema institucional, político, socioeconômico, a ser resolvido com políticas públicas, que não pode nunca ser minimizado ou ignorado.

Mas o público-alvo do Livro das Prisões são justamente as pessoas que sofrem por excesso de conhecimento; por terem o disco rígido de seus cérebros repleto de programas que já vieram pré-instalados; por não terem nunca parado para considerar quais programas queriam manter e quais desinstalar; por ainda estarem funcionando no modo default de fábrica.

(A Prisão Verdade é sobre o longo processo de desinstalar esses programas.)

* * *

Falar que o conhecimento é uma prisão não significa promover a ignorância.

Pelo contrário, busco praticar o não-conhecimento, a não-opinião, a não-certeza justamente para não cair nas garras da ignorância e para deixar de ser uma pessoa vaidosa e arrogante, cheia de conhecimentos, cheia de certezas, cheia de opiniões, refratária a qualquer experiência que não confirme meus inúmeros preconceitos.

Quem poderia ser mais ignorante do que essa pessoa?

E é essa pessoa ignorante que eu sou, quase todo dia, quase o dia todo.

Mas nem sempre. E não para sempre.

Por isso, para isso, eu pratico, eu escrevo.

* * *

Notas de leitura

Os votos budistas são da Ordem dos Pacificadores Zen, do mestre Bernie Glassman, um dos expoentes do movimento Budismo Engajado.

Para quem acha impossível praticar o não-conhecimento e a não-opinião e, ainda assim, agir politicamente no mundo, recomendo ler os livros, acompanhar os trabalhos, conhecer as obras, de alguns dos principais nomes do Budismo Engajado escrevendo sobre suas próprias experiências:

Bearing witness. A zen master's lessons in making peace (1998), de Bernie Glassman; The bodhisattva's embrace. Dispatches from Engaged Buddhism's front lines (2010), de Alan Senauke; Interbeing. Fourteen guidelines for Engaged Buddhism (1987), de Thich Nhat Hanh.

Socially engaged Buddhism (2009), de Sallie King, faz um bom apanhado sobre a história e situação atual do Budismo Engajado enquanto movimento. Também recomendo The great awakening: a Buddhist social theory (2003), de David R. Loy.

O templo zen de Copacabana, Eininji (Templo do Cuidado Amoroso Eterno), é filiado à Ordem dos Pacificadores Zen. O monge responsável, Álcio Braz, acabou de lançar um livro que praticamente inaugura a bibliografia em português sobre o assunto: O grande silêncio. Uma introdução à meditação e ao zen (2016).

A metáfora do Buda como um médico é de Donald S. López Jr. e está em The story of Buddhism. A concise guide to its history & teachings (2001), cap.2. Os quatro passos enumerados são, na mesma ordem, as Quatro Nobres Verdades propostas pelo Buda em sua primeira fala pública. A ideia de tomá-las como propostas e não como Verdades é uma das bases de toda a obra de Stephen Batchelor: aqui, eu utilizei especialmente o primeiro capítulo de Budismo sem crenças (1997).

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publicado em 16 de Novembro de 2016, 08:09
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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