Já houve época que meu objetivo de vida era ser a pessoa mais feliz e mais livre possível.
Hoje, tudo o que eu quero é simplesmente ser uma pessoa menos autocentrada, menos vaidosa, menos egocêntrica.
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Introdução à série Exercícios de Atenção
Por que é tão difícil realmente enxergarmos as pessoas que estão à nossa volta?
Nada é mais importante do que cuidarmos uma das outras, mas só podemos cuidar de quem enxergamos. A Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado.
Exercitamos o abdômen e exercitamos a memória. Por que não exercitar a Atenção?
Os exercícios não são fáceis: é preciso primeiro levar o músculo ao colapso, para que ele então se regenere e volte mais forte.
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O mal é a falta de atenção
No nosso dia a dia, temos poucas oportunidades práticas de ativamente não-estuprar, não-roubar, não-torturar, não-cometer-genocídio.
Não-matar não é uma decisão consciente que tomo todo dia e da qual posso ter orgulho. Somente não-estuprar não faz de mim uma pessoa boa.
Mas e se o mal for a falta de atenção? Os olhos cegos e os ouvidos moucos? O egocentrismo e o autocentramento?
E se o mal for aquilo que sinceramente não me ocorre, que realmente não enxerguei, que juro que não ouvi, que não sei como fui esquecer?
Talvez o mal seja um honesto pai de família que não enxerga nada a sua volta, que não vê a esposa insatisfeita e desesperada, as filhas confusas e autodestrutivas, a sócia abrindo a garrafa de uísque cada vez mais cedo.
O mal é arrancar Anne Frank do sotão, mas também pode ser cruzar todo dia pelo porteiro com o braço engessado e nunca perguntar, nunca se preocupar, nunca nem reparar.
O mal é ser dono de uma fazenda com duzentas pessoas escravizadas, mas também pode ser se opor a uma nova estação do metrô, porque vai destruir as arvorezinhas da sua praça e nunca te ocorrer das centenas de milhares de pessoas trabalhadoras que não têm carro, passam horas e horas em ônibus e terão suas vidas significativamente melhoradas por uma nova estação.
O mal é a Estrela da Morte destruindo Alderã, mas também pode ser eu relaxar do longo dia de trabalho curtindo um filme, depois de um belo jantar feito por minha irmã, e nunca me passar pela cabeça que ela teve um dia igualmente longo de trabalho, ainda por cima fez o jantar e agora está sozinha tirando a mesa e lavando a louça, e ainda perdendo a chance de ver o filme!
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Nossa vida cotidiana, inviável
Minha ex-mulher é de uma pequena e próspera cidade no interior da Amazônia. Veio morar comigo no Rio e se deparou, pela primeira vez, com a população em situação de de rua em nossas calçadas.
Nunca amei tanto minha ex-esposa quanto naqueles momentos em que a mera visão de uma criança de rua já era o suficiente para levá-la às lágrimas.
Sabe por quê? Porque é.
Com o tempo, para não enlouquecer, para poder funcionar como ser humano, minha ex-esposa foi criando a mesma couraça de insensibilidade social que quase todas as pessoas cariocas e paulistanas já trazem do berço.
É uma educação do olhar: você se treina para não ver, para não se importar, para não cair de joelhos paralisada pelo horror.
Não fazemos isso só com a miséria. Passamos o dia cercados por dezenas, centenas, às vezes milhares de pessoas. É impossível considerá-las todas individualmente. Não só não as olhamos, como nem mesmo pensamos nelas como se fossem gente.
Nossa vida cotidiana seria inviável se parássemos para considerar que cada uma daquelas pessoas comendo fast-food na praça de alimentação do shopping tem uma vida interior tão rica quanto a nossa. Ou, pior, que cada uma daquelas pessoas comendo restos de comida no lixão tem a nossa mesma capacidade de apreciar a beleza de uma catedral barroca.
Pois o objetivo dessa série de exercícios, se bem-sucedida, é justamente tornar a nossa cotidiana inviável.
Ao final, quem conseguir caminhar pelo centro da cidade sem se rasgar de desespero é porque não passou.
Como disse Dzongsar Jamyang Khyentse sobre a prática do caminho:
"O caminho não é terapia. Pelo contrário, ele foi elaborado sob medida para expor nossas falhas e virar nossa vida de cabeça pra baixo. Aliás, se você pratica o caminho mas sua vida ainda não virou de cabeça pra baixo, então sua prática não está funcionando."
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Entender é possuir, aceitar é amar
O que estou propondo não é um exercício intelectual para entendermos melhor umas às outras.
"Entender X" nada mais é do que uma tentativa de simplificar X ao seu mais básico denominador comum, de modo a poder defini-lo e nomeá-lo e, assim, chegar à verdade sobre X.
Mas esse processo de simplificação é redutor e autoritário: você lança o seu olhar sobre X, ignora inúmeros aspectos relevantes (praticamente qualquer objeto é mais complexo do que sua explicação), constrói uma narrativa explicativa baseada somente nos aspectos específicos sobre os quais você decidiu se concentrar, e, por fim, crava-lhe um rótulo autoritativo, dizendo “a verdade sobre X é isso!”
Nos Exercícios de Atenção, vamos tentar perceber, ver, ouvir, e sentir as pessoas à nossa volta não para melhor entendê-las, mas para melhor aceitá-las e cuidá-las, de forma mais aberta, mais empática, mais generosa.
Entender é um gesto de definição e posse, redução e controle. Aceitar é um gesto de amor e generosidade.
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Quantas pessoas realmente ouvimos?
Tenho viajado o Brasil promovendo uma instalação artística polifônica, improvisada, colaborativa chamada "As Prisões".
Em geral, eu e as pessoas participantes passamos o dia inteiro juntas, compartilhando nossas vidas, expondo nossas histórias, chorando, se abraçando. Ao final, estamos todas exaustas, exauridas, esvaziadas, mas também sem querer sair de perto daquelas pessoas que, ao longo de poucas horas, foram de completas estranhas a quase íntimas. Muitas vezes, terminamos o dia compartilhando uma grande pizza coletiva.
Quando sabem da duração do encontro, algumas pessoas de fora ficam horrorizadas:
“Gente, deve ser insuportável ficar sentado esse tempo todo ouvindo alguém falar!”
Mas eu, Alex, falo muito pouco, e somente para propor alguns desses Exercícios de Atenção.
Todo o resto, o meião inteiro do encontro, são pessoas contando suas histórias de vida.
Hoje em dia, temos mil amigos no Facebook e vinte amigos de bar, com quem só falamos de trivialidades, futebol & sexo, política & fofocas — pois qualquer menção a intimidades profundas é imediatamente ridicularizada.
Por isso, às vezes passamos meses, anos, a vida inteira, sem nunca ouvir ninguém de forma intensa e concentrada, sem nunca ter realmente acesso à subjetividade de qualquer outra pessoa.
Então, no encontro “As Prisões”, subitamente, de uma vez só, no mesmo dia, somos soterrados pela subjetividade de vinte pessoas diferentes.
E percebemos que muita gente passa pelos mesmos dilemas, sente as mesmas dores, enfrenta os mesmos demônios.
Que aquele nosso problema ó-tão-importante e ó-tão-singular… era, na verdade, comum.
Que aquele problema não nos apartava da humanidade mas, ao contrário, nos une e nos irmana a todas aquelas outras pessoas incríveis e únicas e singulares que estão passando por essa mesma exata situação.
Ou seja, que estamos juntas.
E é por isso que o dia passa voando. É por isso que saíamos exaustas e exauridas. É por isso que, muitas vezes, os grupos que participam das prisões continuam saindo, se encontrando, se amando.
E eu agradeço a todas vocês pela oportunidade de fazer parte dessa experiência.
(Para saber mais sobre "As Prisões", confira o calendário completo. Para vir de graça, leia minha política de gratuidades.)
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Uma nota pessoal preliminar importante
O único dedo que aponto é para mim mesmo.
Quando critico o autocentramento e proponho Exercícios de Atenção, não é porque me considero um guru intocável que conseguiu atingir um comportamento ilibado e agora está pontificando para as pobres coitadas lá embaixo que ainda não chegaram ao seu nível de iluminação.
Pelo contrário, estou falando a partir dos subterrâneos, do meio da multidão, como mais uma pessoa rota entre tantas esfarrapadas; estou falando justamente da batalha diária que travo comigo mesmo, todo dia, o tempo todo, para ser uma pessoa menos escrota, menos conformista, menos egoísta, menos superficial, menos vaidosa
Meus textos são, antes de tudo, para mim mesmo: uma desesperada tentativa de finalmente me tornar a pessoa que quero ser.
Entretanto, se a carapuça que escrevi para mim também servir em você, melhor ainda. Quem sabe não conseguimos juntos virar pessoas humanas menos desagradáveis?
Não sou guru, não sou perfeito, não sou generoso.
Sou profundamente egoísta, patologicamente vaidoso, intrinsecamente autocentrado, fundamentalmente preguiçoso.
Mas (e essa é minha esperança!) talvez não para sempre.
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Sou uma pessoa vaidosa, autocentrada, ególatra.
Por toda a minha vida, sempre escolhi o caminho que me colocava debaixo dos holofotes e no centro das atenções: editor do jornal da escola e presidente do grêmio, professor e palestrante, escritor e artista.
Um belo dia, depois de mais de trinta anos disso, concluí que meu ego, meu autocentramento, minha vaidade estavam acabando comigo, destruindo com meus relacionamentos, machucando as pessoas que eu amava.
E dedidi mudar.
Para isso, criei e comecei a praticar uma série de exercícios para sair um pouco de mim mesmo e enxergar mais as outras pessoas.
(Uma vez alcoolatra, sempre alcoolatra: continuo sendo a mesma pessoa vaidosa, autocentrada, ególatra de sempre, mas agora sou uma pessoa vaidosa, autocentrada, ególatra que se esforça para hoje, somente por hoje, ser uma pessoa menos vaidosa, menos autocentrada, menos ególatra.)
Para resolver de vez o meu autocentramento e a minha vaidade, a melhor solução seria sair das redes sociais, parar de escrever em público, matar "Alex Castro", me internar em um mosteiro e passar o resto dos meus dias meditando, varrendo, cozinhando.
De certo modo, porém, essa seria uma maneira extremamente autocentrada de resolver meu autocentramento, pois resolve o meu problema e dá uma banana para o mundo.
Pois a verdade é que esse tal meu problema é tudo menos meu: vivemos todas cercadas de pessoas vaidosas, autocentradas, egocêntricas. E tudo o que fiz na vida foi me treinar para ser comunicador, professor, escritor, palestrante, artista. (Essas são, literalmente, minhas únicas habilidades.) Talvez, quem sabe, esses exercícios que criei para mim mesmo, se escritos de maneira profissional e competente, possam ajudar essas pessoas a também sair de sua vaidade e de seu autocentramento.
(Afinal, só pode escrever sobre um problema quem já sentiu ele na pele.)
Mas fazer isso alimentaria ainda mais a minha vaidade e o meu autocentramento. Afinal, as pessoas iriam me ler e me curtir, me compartilhar e me seguir, tornando esse meu caminho ainda mais difícil e mais longo, se não impossível.
E, por fim, como posso confiar em mim mesmo para fazer essa escolha?
De um lado, existe a escolha que considero ser correta, por resolver meu problema pessoal, mas também egoísta.
De outro, existe a escolha aparentemente menos egoísta mas que piora o meu problema, ao me permitir continuar chafurdando no meu mais descarado egocentrismo.
Porque, fundamentalmente, a gente não quer mudar: a gente quer ser a pessoa que quer mudar mas que permanece igual.
Então, de certo modo, alimentar meu autocentramento escrevendo sobre sair do autocentramento é o cúmulo da conveniência e do comodismo, um plano infalível para escrever sobre mudanças sem nunca efetivamente mudar.
É em cima dessa corda bamba que tenho existido e trabalhado, ensinado e meditado.
No fio desse paradoxo, eu danço.
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Praticar um olhar generoso | Exercícios de Atenção, 1
Generosidade não é caridade.
Caridade implica uma ação de cima para baixo e é sempre, em alguma medida, condescendente. Generosidade, não.
Podemos praticar a generosidade com todas as pessoas, até com quem nos agride, até com nossos adversários, até com quem consideramos que está abaixo de nós, até com quem consideramos que está acima de nós.
Aliás, praticar um olhar generoso é um bom ponto de partida para acabarmos nos dando conta que ninguém está nem abaixo nem acima de nós.
Crescemos pensando que, do lado de cá dessa camada de pele, existe o eu; do lado de lá, o universo, as outras pessoas, os passarinhos, os meteoros.
Mas só existe o universo.
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Meu entendimento é irrelevante
Se outra pessoa precisa me explicar suas razões para só então eu respeitar sua escolha…
Então, eu já estou arrogantemente me colocando como árbitro de sua vida.
O verdadeiro respeito não depende da capacidade de entendimento de quem ouve ou da capacidade de persuasão de quem explica.
Eu respeito a decisão que outra pessoa tomou sobre sua própria vida simplesmente porque ela é uma outra pessoa, com outros valores e outras prioridades, que tem direito de decidir sobre sua própria vida tanto quanto eu da minha.
Ela não precisa me convencer de nada. O meu entendimento é irrelevante.
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Julgamos pelas ações, queremos ser julgadas por intenções
Somos maquininhas de inventar justificativas para os nossos comportamentos.
Quando fazemos tudo certo, o mundo precisa reconhecer isso e nos premiar — ou é muita injustiça! Quando agimos errado, é porque foi um lapso, uma fraqueza, uma exceção, e o mundo precisa reconhecer isso e nos entender — ou é muita injustiça!
De um modo ou de outro, julgamos as outras pessoas por suas ações, mas queremos ser julgadas por nossas intenções.
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Uma generosidade sem barganhas, sem condições, sem entendimento
Uma maneira de quebrar esse nosso narcisismo egocêntrico é tentar olhar para as outras pessoas com a mesma generosidade com a qual olhamos para nós mesmas.
Se uma motorista me corta agressivamente no trânsito, talvez seja uma pessoa terrível e malvada que dirige pela cidade cortando motoristas inocentes e atropelando gatinhos idem.
Como um exercício mental, porém, quando começo a sentir os primeiros lampejos de raiva por alguma pessoa estranha na rua ("é por isso que esse país não vai pra frente!"), eu escolho pensar que essa pessoa é uma mulher incrível, mãe de três meninos lindos, ralando em dois empregos, que acabou de descobrir que tem osteoporose, e que, além de tudo, está tendo um dia terrível, sua mãe idosa está passando mal e ela precisa correr para ajudá-la.
É verdade? É mentira? Jamais saberei.
Mas sei que não tenho controle sobre as ações, e motivações, e biografia, e etc e etc, da pessoa que está dirigindo o carro que acabou de me cortar.
Tenho controle apenas sobre mim, sobre minha própria raiva, indignação, narcisismo.
Meu olhar generoso sobre aquela pessoa não vai influir nada em sua vida. Não vai tornar o mundo um lugar melhor. Não vai impactar a realidade.
Talvez apenas tenha o efeito de me tornar uma pessoa mais generosa.
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Se estou no supermercado e a atendente no caixa é grossa comigo, talvez eu me ofenda, me irrite, queira responder na mesma moeda.
Mas digamos que, confrontada com minha grosseria, ela decida desabafar:
Na verdade, a moça já estava no seu segundo turno consecutivo de trabalho, evitando voltar para casa para não ter que encarar seu marido abusador, tendo que sorrir até mesmo para os clientes mais rudes e agressivos (como o último, que só faltou xingá-la!), e já pensando que, assim que for liberada, terá que correr para a santa casa visitar seu pai na uti.
Então, ao ouvir essa confidência, ao adquirir esse conhecimento, ao sentir essa proximidade, minha empatia é finalmente ativada.
Mas é só quando a pessoa se submete à minha exigência (não-articulada mas bastante concreta) para que se explique; só quando se oferece como ré e suplicante diante do tribunal do meu julgamento; que minha empatia é finalmente ativada.
Enquanto a moça era apenas um outro ser humano cujo servilismo não atingiu minhas expectativas do filho da casa-grande, ela não só não merecia empatia alguma como ainda mereceu uma patada em resposta e, quem sabe, se eu tivesse um tempinho, uma reclamação à gerência.
Quando ela enfim se torna uma pessoa que tem pai doente (meu pai têm câncer, sei bem como é esse sofrimento!), ou que trabalha dois turnos consecutivos (fiz isso durante meu intercâmbio na Alemanha, sei bem como é essa dureza!), só então ela passa a ser merecedora da minha ó-tão-magnânima empatia.
Mas de que vale essa empatia que só beneficia as pessoas mais próximas, aquelas nas quais eu me vejo, que tiveram a sorte de passar por experiências análogas às minhas, que se sujeitaram à mercê do tribunal do meu discernimento?
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Tenho tentado fazer uma coisa. Uma pequena coisa. Uma coisa que não muda o mundo, que não afeta ninguém. Uma coisa tão pequena que só acontece dentro da minha cabeça — ou seja, para todos os fins e efeitos, não existe.
Quando a atendente da caixa do supermercado é grossa comigo, antes de tudo, eu me pergunto:
Será que ela foi grossa mesmo? O que é isso de "ser grossa"? Ela foi de fato grossa ou só não foi servil o suficiente para satisfazer minhas expectativas de sinhôzinho? O trabalho dela é registrar minhas compras e receber meu pagamento, ou é sorrir para mim e dizer "obrigado, buana"?
Mas, ok, digamos que ela tenha sido realmente grossa, rude, impolida, ríspida, o horror, o horror!
Bem, e daí?
Se eu aceitaria sua pretensa dureza se soubesse de circunstâncias atenuantes ("meu pai está doente, sahib!"), por que não já presumir essas circunstâncias atenuantes sem que ela precise se oferecer à misericórdia do meu julgamento?
Por que não pular essa desnecessária etapa intermediária e simplesmente oferecer à ela minha atenção generosa, sem condições, sem obrigações, sem barganhas?
Eu não sei, não tenho como saber, jamais saberei como foi o dia dela.
Mas o mais importante é que eu não preciso saber.
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Essa pequena disciplina mental que tenho tentado exercer é pequena e limitada: ela não muda o mundo; não ajuda a moça do caixa em nada; não lhe facilita suportar as dificuldades de sua vida; não lhe transfere nenhum dos meus inumeráveis privilégios; não tem realidade concreta alguma.
O único beneficiado sou eu.
Se, graças a isso, eu não for grosso de volta com ela, ou com a próxima pessoa que eu encontrar, quem sabe, isso sim, seja uma pequena, ínfima contribuição para um mundo menos canalha.
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Um exercício para praticar um olhar mais generoso
Faça uma lista de cinco pessoas com as quais você convive, ou conviveu; não por escolha própria; presencialmente (não vale pessoas com quem você convive pela internet); e com quem tenha/teve uma relação difícil.
Pode ser cinco colegas de trabalho ou de time esportivo, pessoas com quem você já dividiu casa, familiares, etc. Melhor não usar nem ex namorados ou namoradas, nem amigos ou amigos, pois teoricamente essas são pessoas que escolhemos ter em nossas vidas.
Agora, escreva um pequeno parágrafo sobre cada uma delas, contando o que você quiser, com somente duas pequenas restrições:
1. Não critique a pessoa.
2. Não fale de você.
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Não critique a pessoa
Não inclua críticas, julgamentos de valor, ou comentários que possam ser interpretados como negativos ou pejorativos.
(Uma boa dica é não escrever nada que a pessoa em questão ficaria magoada ou chateada se lesse.)
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"Ela é uma mulher vaidosa."
No mundo machista em que vivemos, chamar uma mulher de vaidosa pode concebivelmente ser encarado como uma crítica, como uma maneira de sugerir que ela é fútil.
Nesse exercício, mesmo se você tiver certeza que a pessoa não se incomodaria em ser chamada de "vaidosa" (e, sinceramente, temos mesmo essa certeza sobre qualquer outra pessoa?), evitamos de usar essa ou outras palavras que podem e são concebivelmente utilizadas como críticas.
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Evite usar conjunções adversativas, como "mas", "entretanto", "porém" e afins. Considere as duas frases abaixo:
"Ela era perfeccionista e fazia seu trabalho muito bem."
"Ela era perfeccionista mas fazia seu trabalho muito bem."
O "mas", apenas por estar ali, já transforma "perfeccionista" de elogio em crítica.
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Não é um exercício de escrita criativa:
"Ele é muito apegado às suas próprias opiniões."
É a mesma coisa que escrever:
"Ele é um mala chato e teimoso."
Você só usou mais palavras para comunicar a mesma mensagem, a mesma crítica.
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Evite derrubar para criticar:
"Apesar de ser alcoolatra e semianalfabeto, essa pessoa conseguiu manter um emprego por anos e hoje está até bem de vida."
Por que essa introdução pejorativa? Será que a pessoa gostaria de ler isso sobre si mesma? Por que não simplesmente dizer:
"Ela está no mesmo emprego há anos e, hoje, está muito bem de vida."
Se temos um convívio intenso com uma pessoa, naturalmente sabemos muitos fatos sobre ela. O exercício é sobre quais fatos vamos escolher contar.
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Não fale de você
Não inclua nada relativo a você ou à relação dessa pessoa com você:
"Ele sempre me dava carona", "ela roubava minha comida da geladeira", "admiro muito essa pessoa", "foi minha orientadora", etc.
Escreva sobre essa pessoa sem se incluir na história, seja como observadora, seja como a pessoa com quem ela foi rude ou gentil.
Evitemos esse costume tão narcissista de ver os outros não como pessoas, mas como obstáculos ou apoios, amigos ou inimigos, sempre em relação a nós.
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Uma estrada de terra não é suja. Ela só é. O chão é o chão.
Entretanto, se eu piso nela com meu o pé descalço, o meu pé fica sujo.
Aquelas partículas da estrada de terra, que não eram sujas quando estavam no chão, se transformam automaticamente em sujeira quando entram em contato com o meu corpo e grudam na minha sola do pé, uma sujeira da qual eu preciso me livrar, uma sujeira que eu preciso lavar e purgar.
Se não existisse o meu pé, se não existissem seres humanos, não existiria sujeira. A terra seria só a terra.
A sujeira do mundo somos nós.
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Assim como a sujeira do mundo somos nós; assim como, sem o meu pé, a sujeira é só uma estrada de terra; a dificuldade da minha relação com outra pessoa sou eu.
Sem o “eu” para ser difícil, a outra pessoa não é uma “pessoa difícil”, ela é só uma “pessoa”, uma outra pessoa que não sou eu, uma outra pessoa que encerra um universo de vivências, emoções, memórias para sempre fora do meu alcance.
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Um exercício sobre nós mesmas
Não seja tolerante — pois só toleramos o que é ruim.
Não tente entender ou decifrar essa pessoa — ela não é um quebra-cabeça.
Simplesmente procure enxergá-la com um olhar generoso. Não por caridade ou condescendência, mas porque ela é tudo tanto quanto você.
Uma pessoa humana.
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Teoricamente, deveria ser fácil escrever poucas frases sobre pessoas que conhecemos bem apenas não criticando-as e não falando de nós mesmas.
Na prática, é dificílimo.
Se tivemos um convívio intenso com uma pessoa, e se, ao tentarmos escrever sobre ela, só conseguimos criticá-la ou falar de nós mesmas…
… o que isso nos ensina sobre nossas mentes e nossas prioridades?
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Exercícios de Atenção, a série completa
5. Cultivar o não-conhecimento
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Mudança de nome: de Empatia para Atenção
A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.
Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.
Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.
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Os encontros "As Prisões"
São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?
O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.
Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.
Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.
Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.
Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.
Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.
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Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.