Em nossa sociedade narcisista, onde somos criadas para achar que o mundo gira à nossa volta, tendemos a dar um valor excessivo a nossas próprias opiniões. (Afinal, são opiniões dessa pessoa tão incrível: eu!)
Pior, achamos não só que temos um direito divino de ter opinião sobre tudo, como também de expressar essa sabedoria a todo momento, e, mais ainda, que é um favor que fazemos às pobres mortais dizer a elas o que pensamos sobre suas vidas.
Mas essa constante e infindável salva de opiniões que atiramos umas contra as outras é uma violência, é uma intrusão, é puro egocentrismo.
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Esse é o sexto Exercício de Atenção. Antes de continuar a ler, ou de fazer o exercício, por favor, leia o primeiro texto dessa série, onde eu contextualizo os exercícios.
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Perguntar ofende sim
Raramente percebemos como nossas opiniões podem ser agressivas, invasoras, violentas.
Quando perguntamos a nossa amiga casada quando ela vai finalmente ter filhos ou filhas, a pergunta nos parece inócua e amigável. Afinal, só estamos perguntando porque temos intimidade, certo?
Entretanto, para a pessoa que está do outro lado, o comentário é opressivo. Porque não é a primeira, nem a vigésima, nem a centésima vez que é feito.
Como essa pessoa pode se sentir acolhida, feliz, aceita entre suas amigas e familiares se praticamente todo dia alguma delas a interpela sobre uma das escolhas mais importantes de sua vida?
A mensagem passada por essa constante enxurrada de comentários, uma mensagem ao mesmo tempo violenta e invasiva, é que a sua escolha de vida, que deveria ser íntima e indevassável, causa enorme desconforto às suas pessoas mais próximas. Se não, por que tanta insistência? Se não, por que tanta intrusão?
Durante algum tempo, eu achei que isso só acontecia com as pessoas que escolhiam caminhos não-convencionais — como não ter crianças em uma sociedade onde praticamente todas as pessoas têm.
Mas não é verdade: porque se a pessoa finalmente ceder à pressão e tiver um bebê, a nova pergunta intrusiva será:
"E quando vai ter o segundo?"
E não só isso. As pessoas amigas e familiares querem saber quando vai finalmente largar o teatro, parar de se vestir assim, fazer faculdade, defender a tese, prestar concurso, prestar um concurso que ganhe mais, arrumar um emprego, largar esse emprego, arrumar namorada, casar com namorada, comprar um imóvel, comprar um imóvel maior, comprar um carro, comprar um carro melhor, virar hétero, abraçar a monogamia, encontrar Jesus, tomar jeito, etc.
A lista é tão infinita quanto são infinitos os comportamentos das pessoas.
Todos esses comentários são violentos. Todos eles são pequenos espinhaços diários que cravamos justamente nas pessoas mais próximas a nós.
Por que fazemos isso? Por que nos damos ao direito de ter opinião sobre questões tão pessoais das vidas de outras pessoas?
Mais importante, mesmo se essas opiniões aflorassem à revelia em nossas mentes (coitadas de nós, indefesas contra nossos próprios pensamentos!), por que nos damos ao direito de articulá-las em voz alta?
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Somos as vítimas e somos as algozes
Nesse ponto, algumas pessoas se defendem:
"Mas, pôxa!, eu só falo isso com quem tenho intimidade!"
Exatamente. A senhorinha que encontramos na fila do banco raramente invade nossas vidas.
A violência constante e contínua dos comentários invasivos é exclusivamente perpetrada pelas pessoas mais próximas a nós. Justo aquelas que deveriam nos amar e nos respeitar, e não nos oprimir com sua avalanche de opiniões não-solicitadas.
Em um dos encontros "As Prisões", uma moça que tinha acabado de contar sobre a pressão violenta que sofria da família para ter bebê ("é como se todo dia houvesse um teste que eu nunca passo!") de repente começou a chorar.
Pensamos que estava chorando por si mesma, mas não.
A moça tinha acabado de se dar conta que ela, a família, as amigas, faziam a mesma coisa com seu irmão caçula, que namorava uma moça há catorze anos e "ainda" não tinha casado. As perguntas incessantes, a cobrança constante, a zoação bem-humorada.
O mesmo inferno.
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De onde emanam as leis que aplicamos umas contra as outras?
Nossa sociedade é governada por uma tirânica ditadora, constantemente julgando, criticando, oprimindo todas as suas súditas.
É ela que decide que "ninguém pode namorar catorze anos sem casar" e que "toda mulher casada deve ter bebê". Que temos que ser pessoas heterossexuais, monogâmicas, religiosas. Que precisamos ter casa própria, automóvel na garagem, emprego em tempo integral.
Essa tirana, entretanto, não possui existência concreta. Ela não tem como fisicamente impor sua vontade sobre nós.
Para exercer sua opressão, ela precisa converter suas súditas oprimidas em opressoras policiais do senso comum, ao mesmo tempo vítimas e algozes, eternamente julgando e condenando umas às outras, sempre implementando suas regras, seus julgamentos, suas leis.
O sexto Exercício de Atenção é conscientemente deixarmos de trabalhar para a polícia secreta dessa tirana.
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O direito de verbalizar minhas opiniões
O primeiro passo é nos perguntarmos:
Por que me dou ao direito de ter opinião sobre as decisões pessoais de outros seres humanos?
Parece a coisa mais normal do mundo, passamos nossas vidas inteiro dando pitacos nas vidas umas das outras, mas, se paro para pensar, sinceramente… por quê?
Penso em algumas das opiniões que articulei recentemente sobre pessoas próximas e me pergunto:
Quem sou eu para mesmo ter essas opiniões? Por que esses julgamentos tão peremptórios sobre as escolhas de outra pessoa surgem em minha mente?
Isso me afeta? O que tenho a ver com a vida dela? Que impacto pode ter na minha vida se ela casa ou não, tem bebê ou não, etc? Aliás, mesmo se tiver algum impacto na minha vida, isso me dá o duplo direito de ter opiniões e de emitir opiniões?
Mais que isso, mesmo se eu tiver esse duplo direito, será que tenho conhecimento o suficiente? Será que conheço essa pessoa tão a fundo, seus anseios, seus traumas, suas prioridades, para realmente ter uma opinião abalizada e responsável se ela deve largar ou não o emprego, cursar biologia ou direito? Aliás, mesmo se eu tiver conhecimento para ter a opinião, isso me dá o direito de verbalizar essa opinião?
De onde vem esse direito? Quem me deu esse direito? Por que me parece tão natural que tenho sim o direito de ter opiniões, e de verbalizar essas opiniões, sobre as vidas de todas as pessoas à minha volta?
Ao cultivar o não-conhecimento, ao sair um pouco de mim, ao deixar de lado o meu Eu e suas certezas, percebi que minha fé nesse meu direito divino de opinar simplesmente se esvaiu.
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Empatia pelas vítimas da minha saraivada de julgamentos
Em meus delírios egocêntricos, qual é o meu cenário ideal? Como penso que meu bombardeio de opiniões será recebido?
"Puxa, ainda bem que o Alex veio me dizer que ele acha que, afinal, depois de catorze anos de namoro, já está na hora de eu casar! Que alívio! Eu estava mesmo me perguntando o que ele achava! Agora finalmente posso tomar minha decisão, para minha própria vida, mas sempre levando em conta as opiniões de todas as pessoas que conheço!"
É assim que acho que minha intrusão será recebida?
Mais ainda, é assim que eu recebo as intrusões das outras pessoas? É assim que reajo quando amigas, família, colegas se metem nas minhas decisões, no meu trabalho, nos meus relacionamentos?
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Canalizando o rio das minhas opiniões
O primeiro passo é fácil: perceber que não tenho direito de formular e emitir opiniões sobre as escolhas pessoais de outras pessoas.
O segundo, muito mais difícil, é de fato não emiti-las.
Um exercício mental que tenho feito é tentar visualizar as opiniões não-solicitadas que surgem em minha mente como se fossem a água brotando de uma fonte, borbulhando sem parar, correndo incontrolável por entre as pedras.
Não tenho como impedir a água de nascer, mas tenho como canalizar o rio que vai se formar. Não tenho como impedir as opiniões de brotarem, mas tenho como não canalizá-las boca a fora.
Reconhecer o direito das outras pessoas de viverem livres da opressão de minhas opiniões também é uma maneira de agir politicamente no mundo.
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Um exercício escrito
Ao longo de vários dias, faça duas listas:
Na primeira, enumere todas as opiniões que teve sobre a vida de outras pessoas e que normalmente teria articulado, mas não articulou… por causa desse nosso exercício.
Na segunda lista, enumere todas as opiniões não-solicitadas que recebeu sobre a sua própria vida, opiniões que você hoje já não teria verbalizado… por causa desse nosso exercício.
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Exercícios de Atenção, a série completa
5. Cultivar o não-conhecimento
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Mudança de nome: de Empatia para Atenção
A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.
Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.
Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.
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Os encontros "As Prisões"
São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?
O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.
Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.
Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.
Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.
Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.
Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.
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Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
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