Mesmo que tenhamos sucesso na hercúlea tarefa de ouvir as outras pessoas com atenção plena, muitas vezes fracassamos no próximo passo: não tratar suas vidas como um problema a ser resolvido.
Ao cultivar o não-conhecimento, perdemos aquela profunda certeza na propriedade dos nossos conselhos.
Então, em vez de julgar e opinar, podemos simplesmente aceitar e acolher.
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Esse é o quinto Exercício de Atenção. Antes de continuar a ler, ou de fazer o exercício, por favor, leia o primeiro texto dessa série, onde eu contextualizo os exercícios.
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Três votos budistas
— Praticar o não-conhecimento, abrindo mão de certezas prévias;
— Testemunhar a alegria e o sofrimento, não virando o rosto à dor alheia;
— Agir no mundo de acordo com essas duas posturas.
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Praticando os três votos
Sou escritor, professor, crítico. Décadas de estudo formal e de pesquisas acadêmicas, em três países e em três idiomas, me treinaram a acumular, demonstrar, repassar conhecimento.
Não seria exagero dizer que cultivar uma postura de não-conhecimento vai literalmente contra tudo o que fui treinado em minha vida adulta.
Assim, ao reconhecer a enormidade do meu não-conhecimento, a primeira coisa que perdi foi aquela profunda certeza na solidez das minhas opiniões.
Sem essa certeza, eu já não me sentia mais tão impelido a julgar e opinar sobre as vidas alheias.
Sem julgar e sem opinar, minhas interações humanas começaram a se tornar menos egocêntricas e autocentradas.
Agora, já era possível simplesmente estar ali, ao lado de outra pessoa, de maneira plena e aberta, não como mais um juiz que tudo sentencia ou como mais um mestre que tudo aconselha, mas apenas como um outro ser senciente, falho e ignorante, mas capaz de ouvir e de aceitar, de acolher e de abraçar.
Durante algum tempo, eu temia que cultivar o não-conhecimento e exercer a não-opinião significasse me omitir de agir politicamente no mundo.
Mas não.
Ao testemunhar a alegria e a dor alheias a partir de uma postura de não-conhecimento, eu podia agir no mundo de forma mais efetiva e mais generosa, menos egóica e menos violenta, mais transformadora e mais política.
Nem sempre consigo. Aliás, quase nunca.
É um processo, um caminho, uma prática.
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Interagir de forma menos egoica
No encontro "As Prisões", durante o exercício da Escutatória, as pessoas contam suas histórias de vida e as outras escutam, com atenção plena e sem interromper. Quando a narradora termina, é hora de interagir com sua história.
Eu só peço que as participantes se abstenham de:
1. Contar um caso equivalente que aconteceu com elas ou com pessoas conhecidas:
"Menina, meu tio foi assaltado desse mesmo jeito!"
2. Dizer o que a narradora deveria ter feito:
"Você não devia ter reagido, tá louca!"
3. Dizer que teriam feito no lugar da narradora:
"Se fosse comigo, eu virava a mão na cara dele!"
Ocasionalmente, algumas das pessoas participantes questionam as regras do exercício:
"Não pode falar nada, é isso? É pra falar o quê?!"
Mas contar um caso equivalente, dizer o que a pessoa deveria ter feito ou o que você teria feito não são as únicas formas de interação com uma pessoa que acabou de abrir sua intimidade para nós.
São apenas as maneiras mais comuns, mais rasas, mais egoicas de interagirmos com os relatos de outras pessoas.
São apenas três diferentes maneiras de pegarmos uma história de outra pessoa e transformá-la em uma história… sobre nós, sobre nossa vida e sobre nossos valores, sobre nossos julgamentos e sobre nossas opiniões.
O objetivo da prática da Escutatória, para quem acha que o exercício vale a pena, é justamente quebrar esse padrão e promover interações menos rasas, menos egoicas.
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Outra objeção que costuma surgir é:
"Não pode aconselhar? Não pode ajudar? Temos que nos omitir? E se a pessoa pedir conselho? E se ela quiser saber o que eu faria, o que eu acho que deveria ter feito?"
Não cabe a mim dizer o que ninguém pode ou não pode, deve ou não deve fazer. A Escutatória é proposta como uma prática voluntária: qualquer pessoa que a considere insensata ou impraticável pode simplesmente não participar.
Mas, antes que desistam, conto uma historinha.
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Como não aconselhar: a chefa da minha amiga
Uma vez, uma pessoa amiga veio desabafar comigo:
"Minha chefa tem estado uma pilha de nervos a semana inteira. Por causa disso, todas as pessoas do escritório estão tensas, estressadas. Aí, hoje, de repente, na frente de toda a minha equipe, ela desancou meu último relatório, me chamou de idiota pra baixo. O que acha que devo fazer?"
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Quase toda pergunta já traz em si a resposta desejada
Muitas vezes, pedimos conselhos não para "saber o que devemos fazer", mas para validar as decisões que já tomamos — nem que essa decisão tenha sido tomada apenas em um nível ainda não consciente.
Nesse caso, minha amiga aparentemente queria minha benção para mandar a chefa à merda e se demitir desse emprego.
Caso sua decisão fosse outra, outra teria sido sua história. Digamos que tivesse me contado o seguinte:
"Lembra aquela chefa de quem te contei? Que foi a primeira a me dar uma chance quando eu ainda nem tinha currículo? Que me promoveu várias vezes dentro da empresa? Pois é, descobriu que o marido está com câncer na semana passada e está uma pilha. Dando patada em todo mundo. Hoje, por exemplo, me desancou na frente da minha equipe toda, maior humilhação da minha vida. O que acha que devo fazer?"
Quem conta essa segunda história está em busca de outro tipo de validação, um outro tipo de resposta:
"Fica assim, não. Perdoa sua chefa. Ela está nervosa. Daqui a pouco, com certeza, vai pedir desculpas. Todas as colegas sabem que ela está uma pilha, vão dar um desconto. Pensa em tudo o que ela fez por você e pela sua carreira. Não é fácil encarar um câncer na família. Etc etc."
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Não existe mensagem sem contexto
Ao narrar uma história, escolhemos não só os fatos que vamos contar e os que vamos omitir, mas escolhemos também para quem vamos contar esses fatos.
No meu caso, por exemplo, como já escrevi que o trabalho é uma prisão, as pessoas em geral esperam que o meu conselho seja uma variação de:
"Larga essa vida! Sai desse emprego! Vai fazer o que te faz feliz! Etc."
(Nunca é.)
Então, quando precisam que alguém valide sua decisão de sair de seus empregos, a tendência é escolherem contar suas histórias para mim — e não, por exemplo, para a prima que trabalha para o Banco do Brasil há vinte anos.
Muitas vezes, pulamos de amiga em amiga recontando o mesmo conto e aumentando vários pontos até finalmente encontrarmos alguém que valide nossa decisão prévia.
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A vida das outras pessoas não é um problema para resolvermos
Quando uma pessoa escuta um problema e já corre para aconselhar, o que ela está dizendo, na verdade, é:
"Você achava que tinha um problema só porque ainda não tinha falado comigo. Senta aí e prepare-se para beber as soluções que vão jorrar da minha fonte de sabedoria."
Mas será que realmente temos como resolver as vidas das pessoas à nossa volta com a mera articulação de nossas ó-tão-sábias opiniões?
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Cheias de conhecimentos, insufladas de certezas, borbulhantes de opiniões, nossa tendência é supervalorizar a originalidade de nossos incríveis conselhos.
Mas, com exceção de possíveis casos hipotéticos onde a pessoa aconselhadora de fato possui algum conhecimento técnico ou exclusivo…
("Hmm, olha, eu sou dermatologista e vou te dar um conselho: não coça essa mancha não, e vamos fazer uma biópsia já!")
…eu raramente testemunhei algum conselho que realmente trouxesse uma contribuição original, uma ideia que ainda não tinha ocorrido a ninguém: minha amiga sabe que, se quiser, pode sair do emprego, assim como sabe que, se quiser, também pode ficar.
Esse tipo de conselho, previsível e convencional, só teria alguma utilidade se minha amiga estivesse tratando sua vida profissional como se fosse um plebiscito entre colegas e parentes:
"Hmm, agora com o voto da Tia Belinha, acho que o placar da apuração finalmente virou: 7 a 8, vou ter que me demitir!"
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Mais importante do que determinar qual é a atitude "certa" que minha amiga deve tomar; mais importante do que encarar sua história como um problema a ser resolvido ou como um teste que tem uma resposta certa; lembrando sempre que não leio pensamentos e posso estar errado; minha atitude é simplesmente ajudá-la a entender ou articular o que ela mesmo já decidiu ou está prestes a decidir.
"Estou aqui, do seu lado, pra te acolher, pra te ouvir, pra te ajudar na decisão que escolher, mas não tenho conhecimento o suficiente para saber o que você deve fazer. Pela história que contou, porém, me parece que você quer pedir demissão."
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O verdadeiro conhecimento é mais do que a soma de todos os fatos
Minha amiga não gostou:
"Como assim "não tem conhecimento o suficiente?" Acabei de te contar a história toda!"
Nesse ponto, a pessoa ostensivamente em busca do conselho pode se sentir tentada a empilhar detalhe em cima de detalhe sobre nós, até não podermos mais alegar falta de conhecimento para opinar.
O problema é que o somatório de todos os detalhes do universo não seria jamais suficiente para nos fornecer o conhecimento necessário para saber como outra pessoa se sente, para saber o que outra pessoa deveria fazer.
Em relação à história da minha amiga, somente alguns exemplos de coisas que eu não sei e que poderiam influenciar minha opinião sobre o que deveria fazer:
Foi a primeira vez que a chefa foi rude com ela? Ela é rude com outras pessoas ou só com minha amiga? Ela tem outras características positivas? Quais? Que tipo de pessoa ela é fora do trabalho? Há quanto tempo trabalham juntos? Como é sua relação profissional? O tal relatório que desancou estava ruim mesmo? Era um relatório importante? Como está o mercado de trabalho em sua área de atuação? Seria difícil arrumar um novo emprego nessa área? Se saísse desse emprego, aliás, continuaria na mesma área? Minha amiga é conhecida ou renomada em sua área de atuação? Já tem alguma oferta de trabalho engatilhada? Comparada às outras profissionais dessa área, ela é mais ou menos competente do que a média? Tem dinheiro economizado para os meses sem renda? Tem despesas altas que se acumulariam caso ficasse sem renda? etc etc.
Se minha amiga poderia empilhar fatos eternamente para me dar os subsídios para opinar, eu também poderia empilhar perguntas eternamente para demonstrar minha falta de subsídios para opinar.
Nem todos os fatos do mundo seriam suficientes para me dar acesso à enormidade e à complexidade da experiência de minha amiga consigo mesma, com seu trabalho, com sua chefa.
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Ouvir, aceitar, acolher, abraçar
A partir de uma postura de não-conhecimento e de não-opinião, eu de fato não tenho como dizer à minha amiga o que deve fazer, mas isso não quer dizer que não posso ajudar.
Caso decida ficar no emprego, posso dar dicas sobre como evitar conflitos com a chefa nessa fase estressante, ou posso aparecer em sua casa com uma garrafa de vinho e fazer um jantar.
Caso decida sair do emprego, posso ajudá-la a conseguir outra colocação, posso revisar seu currículo, posso hospedá-la em minha casa, posso lhe emprestar dinheiro.
Decida ela o que decidir, posso continuar me dispondo a ouvi-la, uma das principais maneiras de ajudar qualquer pessoa.
Sem nunca me colocar na posição de "guru-que-tudo-sabe", eu sempre posso…
Ouvir. Aceitar. Acolher. Abraçar.
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Uma prática constante de não-conhecimento
O quinto Exercício de Atenção é menos um exercício e mais uma prática diária e constante.
Para muitas de nós, e com certeza para mim, ocupar esse espaço do não-conhecimento pode ser especialmente penoso. Para fugir desse incômodo, aproveitamos qualquer oportunidade ("sobre isso, eu sei mesmo!") para outorgar nossa ó-tão-importante opinião, lastreada em nosso ó-tão-profundo conhecimento.
Os monges e as monjas budistas, quando se sentem tentadas a violar seus votos de castidade, apelam para o seguinte truque mental: tentam visualizar seu objeto do desejo não como uma pessoa, mas como um saco de órgãos, coração, fígado, rim, sangue circulando pelas veias, fezes se acumulando no intestino reto, tudo isso lentamente apodrecendo em direção à morte.
Então, sempre que me sinto tentado a subir no atraente pedestal do conhecimento, para assim distribuir sábios conselhos à pobre ralé lá debaixo, eu tento apelar para um truque mental semelhante:
Listar minhas dúvidas, visualizar minhas lacunas, corporificar minha ignorância.
Ao fazer isso mentalmente, algumas vezes (mas nem sempre) eu até consigo erodir minhas certezas ao ponto de não verbalizar opiniões ou conselhos.
Ao fazer isso verbalmente, algumas vezes (mas nem sempre) eu até consigo fazer minha interlocutora refletir sobre sua própria situação e decidir por si mesma o que fazer — sem que sejam necessários meus ó-tão-sapientes conselhos.
E, de qualquer modo, mesmo que eu consiga refrear meus impulsos intrusivos e egoicos, será sempre uma vitória efêmera: na próxima frase, na próxima interação, na próxima pessoa, no próximo pedido de conselho, zera tudo e preciso, mais uma vez conscientemente, ativamente, habitar o não-conhecimento.
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Exercícios de Atenção, a série completa
5. Cultivar o não-conhecimento
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Mudança de nome: de Empatia para Atenção
A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.
Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.
Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.
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Os encontros "As Prisões"
São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?
O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.
Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.
Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.
Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.
Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.
Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.
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Três avisos importantes sobre meus textos
Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios. (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas e Ação de graças pelos privilégios recebidos);
Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);
E são sempre todos rigorosamente ficcionais. (Ou não: Alex Castro não existe, só o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.