Dar-se conta das pessoas | Exercícios de Atenção, 2

Perceber a plenitude de todas as pessoas à nossa volta.

Vivemos cercadas de pessoas tão incríveis, tão humanas, com uma subjetividade tão profunda e única como a nossa.

Apesar disso, caminhamos pela vida como se fossem todas, ou quase todas, só figuras de papelão de quem desviamos para não trombar na rua.

Será assim tão difícil enxergar a humanidade das pessoas a nossa volta?

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Esse é o segundo Exercício de Atenção. Antes de continuar a ler, ou de fazer o exercício, por favor, leia o primeiro texto dessa série, onde eu contextualizo os exercícios. 

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História de um homem ridículo

Estava eu sentado em uma mesa de calçada, tomando meu café da manhã, quando passa por mim um homem ridículo.

Andando pela rua de forma confiante e decidida. Completamente ignorante do fato de ser tão ridículo. De estar tão fora do padrão, da regra, do correto. De ser tão feio, tão mal-vestido, tão tosco. O homem ridículo estava todo errado.

Não vou descrever o homem ridículo. Seria impossível descrevê-lo sem ser cúmplice de sua ridicularização, sem fazer vocês também o acharem ridículo.

Porque, um segundo depois, bateu a culpa, caiu a ficha, estourou a consciência.

E pensei: para uma ou mais pessoas, esse homem ridículo é a pessoa mais amada da vida, a pessoa mais importante do mundo. Para algumas pessoas idosas, ele sempre vai ser o bebê lindo que foi um dia, a criança cheia de promessa, o adolescente vigoroso e energético.

Que apesar dele estar passando pela rua a vinte metros de mim, de eu só estar enxergando-o por breves segundos, de eu nunca ter ouvido sua voz ou interagido com ele de qualquer maneira, de ele ser para mim só um figurante sem fala no ó-tão-importante filme da minha vida, de ele ser apenas uma figura de cartolina exemplificando o total oposto do padrão de beleza vigente….

Que ele era uma pessoa.

Caralho, uma pessoa.

Vocês entendem a enormidade disso?

Uma pessoa igual a mim. A MIM! Com os mesmos sentimentos. Que dá tanta importância a si mesmo quanto eu me dou. Que sempre viu tudo pelos seus próprios olhos. Que sempre sentiu todas as suas dores. Uma pessoa plena. Um homo sapiens adulto. Um indivíduo da espécie dominante do único planeta habitado que conhecemos. Por tudo que se sabe, ele é o ápice da evolução do cosmos. Ali, passando por mim, já se afastando. Tão ridículo.

Se esse homem ridículo morresse hoje, agora, fulminado por meu implacável julgamento, haveria gente sofrendo dor profunda, chorando, trabalhando o luto, relembrando melhores momentos compartilhados. Aquele homem ridículo deixaria um vazio talvez insuperável em corações que nem conheço.

Então, ele sumiu atrás de uma esquina, mas apareceu uma senhora de vestido verde, depois, uma adolescente patinadora, um ruivo e seu beagle, um gari de laranja, e foi quase que como uma sobrecarga de informação: todos pessoas. Cada um. Nenhum deles figurantes do filme da minha vida. Todos protagonistas de seus próprios filmes. Pessoas plenas.

Aí, finalmente, me dei conta: o único homem ridículo ali era eu.

* * *

Protagonistas do nosso próprio filme

Sempre que vemos um estranho no metrô e nos lembramos de já tê-lo visto no dia anterior na fila do banco, é um pouco como se Deus estivesse com poucos figurantes:

"Vai lá, Zé, pro metrô!"
"Mas, deus, já estive na fila do banco ontem!"
"Ah, ele nunca vai perceber...!"

A piada é do Louis C.K., mas a sensação é bem característica: de que somos os protagonistas do grande filme da nossa vida, repleto de figurantes que não importam, com um punhado de coadjuvantes que entram e saem de cena, tudo coroado pela brilhante narração em off dos nossos fulgurantes ó-tão-importantes pensamentos.

Pois bem. Vamos tentar superar isso.

Perceber que estamos cercadas de protagonistas de suas próprias histórias.

Que cada pessoa está protagonizando o seu próprio filme.

Que na verdade é um filme só e se chama o universo.

* * *

Um exercício para dar-se conta das pessoas a nossa volta

Quando estiver em um ambiente público com várias pessoas que você não conhece (ônibus, metrô, fila do banco, sala de espera, etc), tente dar-se conta da humanidade, individualidade, subjetividade de cada pessoa a sua volta.

Deixe expandir sua consciência. Saboreie o fato de estar cercado de pessoas. Recupere uma certa sensação de estranheza – que nem lembramos de ter perdido – de que cada uma daquelas figuras de papelão ali sentadas é um ser humano exatamente tão complexo, tão sublime, tão apaixonante, tão mesquinho quanto você. Uma por uma. Todas elas.

Não é preciso fazer nada externamente. As pessoas não precisam nem te perceber. Basta olhar para cada uma delas por poucos segundos e pensar:

Essa pessoa já foi um bebê fofo.

Esse aqui é a pessoa mais amada da vida de alguém.

Esse outro solta gemidos incríveis na hora de gozar que jamais escutarei.

Essa outra sentiu todas as suas dores e nenhuma das minhas, e eu nunca sentirei as dores dela, nem ela as minhas; etc.

Faça questão de ter realmente enxergado cada pessoa, de ter considerado sua humanidade individual por pelo menos alguns segundos antes de seguir adiante: aqui está uma pessoa, aqui está outra pessoa, isso aqui também é uma pessoa. Pessoa, pessoa, pessoa.

Evite interagir. Não desvie o olhar mas também não faça contato visual. Encarar já te coloca dentro da história da outra pessoa e pode até mesmo ocasionar uma reação indesejada. Para dar-se conta das pessoas a sua volta, você não precisa se mexer, trocar olhares, nada. É discreto e imperceptível.

Não pense muito sobre cada pessoa, quem é, de onde veio, quais são seus sonhos, nada disso. Nem mesmo interaja. Deixemos isso para as próximas lições. Essa primeira tarefa já é bastante difícil.

Se está achando fácil, é porque ainda não tentou. Além de dificílimo, é potencialmente enlouquecedor – mas também fascinante e instrutivo.

Talvez seja impossível. Ou não.

Só tentando para saber.

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Exercícios de Atenção, a série completa

1. Praticar um olhar generoso

2. Dar-se conta das pessoas

3. Ver na sua totalidade

4. Ouvir com atenção plena

5. Cultivar o não-conhecimento

6. Exercer a não-opinião

7. Não ser a constante

8. Colocar-se em outra pessoa

9. Escolher agir com cuidado

10. Visualizar o privilégio

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Mudança de nome: de Empatia para Atenção

A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.

Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado:  sem Atenção não há Cuidado.

Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.

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Os encontros "As Prisões"

São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?

O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.

Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.

Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.

Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.

Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.

Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.

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Três avisos importantes sobre meus textos

Eles falam sempre sobre e para as pessoas privilegiadas, justamente para tentar fazê-las ter consciência de seus enormes privilégios (Leia também Carta aberta às pessoas privilegiadas & Ação de graças pelos privilégios recebidos);

Buscam sempre usar uma linguagem de gênero neutra (Para mais detalhes, confira meu mini-manual pessoal para uso não sexista da língua);

E são sempre todos rigorosamente ficcionais(Ou não: Alex Castro não existesó o texto importa. Em caso de dúvida, consulte minha biografia do meu site pessoal.)

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publicado em 13 de Outubro de 2014, 21:05
File

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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