“…o Brasil sempre foi, ainda é, um moinho de gastar gentes. Construímo-nos queimando milhões de índios. Depois, queimamos milhões de negros. Atualmente, estamos queimando, desgastando milhões de mestiços brasileiros, na produção não do que eles consomem, mas do que dá lucro às classes empresariais.” –Darcy Ribeiro

Foi com um misto de perplexidade e indignação que no início desse ano escrevi um texto para o PdH sobre a proposta de emenda constitucional 215, que pretendia tornar atribuição do poder legislativo delimitar a marcação de terras indígenas no Brasil, e criei uma petição de assinaturas contra aquela proposta.

De lá para cá duas coisas ficaram sedimentadas para mim: a primeira é que o Estado Brasileiro, em especial os poderes legislativo e judiciário, continuam a reafirmar nossa história de excluir e massacrar o povo indígena e outras minorias, e a segunda é que precisamos agir e nos mobilizar de utilizando outros meios, que não apenas listas de assinaturas e posts, caso contrário não vamos conseguir promover alguma mudança efetiva quando se trata de um Estado onde a noção de bem público e o interesse coletivo há muito tempo (desde o descobrimento?) foram substituídas pelas noções de bem particular e o interesse econômico de alguns grupos.

Entenda a situação

Cerca de 170 pessoas da etnia guarani-kaiowá ocupam uma área de 2 hectares da fazenda Cambará que possui 762 hectares, no município de Iguatemi, Mato Grosso do Sul, desde 29 de novembro de 2011. A área ocupada faz parte da reserva de mata nativa, que não pode ser explorada economicamente. Desde que ocorreu um ataque de pistoleiros armados, no qual crianças e idosos chegaram a ser feridos, e o acampamento que os índios haviam montado à beira de uma estrada foi destruído, a área de mata nativa passou a ser ocupada.

Essa área vem sendo disputada há décadas por índios e fazendeiros, mas em setembro deste ano o Tribunal Regional Federal da Terceira Região determinou a reintegração de posse e retirada das famílias indígenas do local. Por meio de uma carta ditada no dia 8 de outubro, os índios se recusam a deixar a região e dizem estar dispostos a resistir, preferindo morrer e ser enterrados juntos no local que é a terra de seus antepassados: “Decretem nossa extinção e nos enterrem aqui”.

Esse fato foi interpretado como um suicídio coletivo e ganhou as redes sociais na semana passada. Se o suicído coletivo é simbólico não importa, o que de fato se coloca em discussão é a ausência do Estado em assegurar os direitos de uma minoria.

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Nosso etnocentrismo nos impede de ver; porque não vemos excluímos

“Assim, entendemos claramente que esta decisão da Justiça Federal de Navirai-MS é parte da ação de genocídio/extermínio histórico de povo indígena/nativo/autóctone do MS/Brasil, isto é, a própria ação da Justiça Federal está violentando e exterminado e as nossas vidas. Queremos deixar evidente ao Governo e Justiça Federal que por fim, já perdemos a esperança de sobreviver dignamente e sem violência em nosso território antigo, não acreditamos mais na Justiça Brasileira.” (Carta dos índios Guarani Kaiowá de Mato Grosso do Sul)

A carta dos índios Guarani Kaiowá é só mais uma evidência do descaso do governo para algumas das questões históricas que nós ainda não conseguimos resolver, como a questão indígena e a reforma agrária.

Ao expor a situação a qual estão submetidos, uma das coisas que mais me chamou a atenção na carta dos índios Guarani-Kaiowás foi a total descrença de que a situação em que eles se encontram possa ser resolvida. Ou seja, os índios não acreditam mais que seja possível sobreviver, não acreditam que o governo e a justiça sejam capazes de assegurar seus direitos.

Assim como na época da escravidão, o açoite sobre as minorias continua acontecendo sempre que essas insistem em se rebelar contra os dominadores. Agora com a diferença que o senhor é personificado pela elite agrária, que é quem determina os maiores lucros para um país que mais do que nunca prima pelo modelo agroexportador, e o feitor representado pelos governos.

Essas pequenas feridas que nós só conseguimos dimensionar quando se tornam chagas, como a resistência dos Guarani-Kaiowás, acontecem todos os dias debaixo dos nossos narizes, e não é preciso ir muito longe ao tempo para perceber isso, essa é a mesma história do ambientalista José Claudio Ribeiro e sua esposa mortos no Pará, do massacre dos Sem Terra em Eldorado dos Carájas, da morte do ambientalista Chico Mendes, e dos índios em São Felix do Araguaia.

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O discurso de que os índios não trabalham é só mais uma reclamação que tenta encobrir nossa falta de atitude, mais um argumento covarde e excludente. Esse o mesmo tipo de argumento pelo qual já vi várias pessoas criticando algumas ações equivocadas de integrantes do MST, por exemplo. Esse mesmo tipo de crítica poderia ser feita para a existência de um parlamento, já que muitos dos políticos que estão lá são corruptos. No entanto, nunca vi ninguém propor acabar com o Congresso por causa da atuação corrupta de um político.

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Essa analogia, talvez até caricata, serve bem como exemplo de que criticar um movimento porque existem pessoas que participam dele e tem ações contrárias é estreitar uma discussão, e não ajuda a avançar de maneira a ver quais os pontos que precisam ser melhorados naquele movimento para que aquele tipo de ação não aconteça.

Pierre Clastres diz que nosso etnocentrismo é a barreira que nos impede de ver outra cultura a partir da perspectiva dela. Como nos enxergamos sempre no centro, não conseguimos ver as categorias e a forma de organização de outra cultura como cultura.

As sociedades ocidentais, como a nossa, construídas com base no poder político coercitivo do comando-obediência enxergam sociedades sem poder (sociedades indígenas, por exemplo) como primitivas. Mas no argumento daquele filósofo as sociedades indígenas são destituídas de poder não porque tenham sido incompetentes para fazê-lo, mas simplesmente porque negaram se constituir sobre a base do poder coercitivo de comando-obediência.

Uma sociedade tem como premissa educar as gerações futuras dentro de sua cultura para que a própria estrutura social possa se manter. Compreender a sociedade a partir de suas próprias categorias criadas no interior daquele grupo e conseguir mantê-las é o que se chama de tradição (produção histórica) e cultura. Onde há cultura há história, e assim Clastres refuta a ideia de que as sociedades indígenas seriam primitivas em relação à nossa sociedade. Tão absurdo quanto parece para a cultura ocidental uma estrutura social sem poder é para a sociedade indígena a ideia da divisibilidade com base no poder.

Um sistema em que não somente um ou dois grupos econômicos sejam beneficiados é o que de mais revolucionário poderia acontecer nesse país. Isso seria romper com essa brincadeira de mau gosto que é a chamada democracia, como bem explica o escritor José Saramago.

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Acredito que se queremos de fato fazer algo para os índios e ao mesmo tempo resgatar nossa dignidade enquanto coletivo de seres humanos que se entendem como iguais, temos que usar os outros meios. A linguagem que se impõe sobre os interesses da maioria é a linguagem econômica. Listas de assinatura e compartilhar posts são um instrumento para mostrar divulgar ideias e mostrar opiniões, mas se apenas mostrar e expor nossa opinião fosse suficiente para que o poder público nos escutasse com certeza não teríamos chegado na situação em que os Guarini-Kaiowás se encontram.

Um mar de soja, cana-de-açúcar e pastagens para o gado bovino o que se vê, hoje, sobre as terras reivindicadas pelos guarani-kaiowá. Outra forma de agirmos seria organizar boicotes aos produtos que vêm dessas culturas, das mesmas culturas que enxergam os índios como peças velhas que tem que ser jogadas fora para que o sistema possa continuar aumento os lucros dos donos das máquinas. Um boicote certamente traria prejuízos econômicos e uma ação como essa no mínimo abriria a possibilidade de diálogo e mudança de verdade.

A situação dos Guarani-Kaiowás nesse momento

O Tribunal Regional Federal da Terceira Região (TRF-3) na terça-feira (30/11/2012) suspendeu a reintegração de posse da área ocupada pelos índios guaranis-kaiowás, na fazenda Cambará, no município de Iguatemi, Mato Grosso do Sul. Assim, os índios poderão continuar ocupando a área em disputa, pelo menos por enquanto. A necessidade agora é de agilizar os estudos antropológicos necessários para determinar a demarcação do território indígena, como afirmou a ministra Maria do Rosario, da Secretaria de Direitos Humanos, após se reunir com os índios na tarde de terça-feira.

A carta dos índios Guarani-Kaiowás nos coloca na necessidade de repensar as bases nas quais apoiamos e construímos diariamente nossa sociedade. Mas para fazermos algo será preciso que deixemos nosso etnocentrismo de lado: vamos precisar inverter os lugares e olhar com os olhos dos índios.

* Dedico este texto aos índios, a Dom Pedro Casaldáliga, a Darcy Ribeiro e Pierre Clastres.

Arildo Dias

Biólogo por formação e aspirante a escritor. Alguém que já utilizou uma única definição para se descrever e agora prefere dispensar tal necessidade. Mora em Campinas - SP.