Etnocentrismo cavalar: não sabemos NADA sobre a Ásia | WTF #4

Etnocentrismo?

É um conceito antropológico, que ocorre quando um determinado individuo ou grupo de pessoas, que têm os mesmos hábitos e caráter social, discrimina outro, julgando-se melhor, seja pela sua condição social, pelos diferentes hábitos ou manias, ou até mesmo por uma diferente forma de se vestir.
Essa avaliação é, por definição, preconceituosa, feita a partir de um ponto de vista específico. Basicamente, encontramos em tal posicionamento um grupo étnico considerar-se como superior a outro.
Do ponto de vista intelectual, etnocentrismo é a dificuldade de pensar a diferença, de ver o mundo com os olhos dos outros.
(Wikipedia)

Não sei como foi para os mais jovens, porém creio que todos nós (exceto os nipo-brasileiros) com algo mais de 30 anos de idade, ouvimos de alguém mais velho em algum momento da infância sobre as proverbiais paciência e sabedoria orientais.

Era uma mistura de assombro reverente com advertência, com resquícios de camicases e budas gordos. Então vieram os anos 80 e o Japão virou potência, e em seguida os outros “Tigres Asiáticos”, e agora só se fala em China. Vivemos submersos em montanhas de cacarecos industriais produzidos por asiáticos em regime de escravidão parcial ou completa, e ocasionalmente sentimos uma culpinha classe-média por isso.

Quando crianças, confundíamos tudo: asiático era “japonês”.

Na verdade vi “pessoas humildes” falarem dessa forma recentemente, uma para se referir ao Dalai Lama (“o japonês já pegou o elevador”), outra minha faxineira, que comprou uma escova dessas elétricas “do Japão” (querendo dizer “da China”).

Mesmo entre pessoas educadas, doutores, vamos dizer assim, quando converso com eles sobre a diversidade cultural de pequenas e restritas regiões da Ásia, a não ser que se trate de um linguista, o que vejo é grande surpresa. Algumas vezes as pessoas comentam do desconhecimento do estadunidense médio sobre o Brasil ou a América do Sul: Samba, capital Buenos Aires, essas coisas.

Mas isso é o Homer Simpson médio, certo?

Agora, quanto à Ásia, você pega um, sei lá, Umberto Eco da vida: o que ele sabe sobre a Ásia é mais ou menos equivalente ao que você sabe. Talvez ele apenas desconfie mais da vastidão da coisa.

E sim, isto é um etnocentrismo cavalar.

Sutra do Diamante, o mais antigo livro impresso (886 dc)
Sutra do Diamante

Nas universidades temos toda essa discussão sobre quotas, mas ninguém ensina epistemologia iorubá (para mencionar um conhecimento africano, do qual temos representantes étnicos no Brasil): para aprender isso você tem que ir a Stanford.

Em algumas universidades na Europa e nos EUA existe o que se chama “estudos asiáticos”, é só aí que vamos encontrar conhecimento da profundidade e vastidão do pensamento sistemático de várias culturas asiáticas ancestrais, de dimensões tais como a grega (ou com até mais textos sobreviventes): nada ou quase nada disso no Brasil. Quando muito temos cursos de algumas línguas (algumas formas de chinês mais úteis para os negócios, ou japonês.)

Conheço um pouco de algumas formas de budismo (uma de dezenas de religiões asiáticas importantes), e já me perguntaram quantas formas de budismo existem. Um pouco mais de uma dezena na cidade de São Paulo, centenas vivas hoje... milhares se considerarmos as escolas que não existem mais. Cada uma com peculiaridades, nomes importantes, e registros relativamente históricos (anedotários). Algumas vezes eu resolvo dar uma olhada breve sobre um tópico que não conheço nada, do budismo Chinês, por exemplo, e lá vem um novo galho com infinitas ramificações recursivas de miríades de detalhes.

Boa parte de nosso estranhamento é linguístico.

O chinês é bem mais distante do tibetano, por exemplo, do que o sânscrito do português. O sânscrito é da mesma família linguística que as línguas latinas, o grego, o russo e as línguas germânicas e anglo-saxãs. Já o chinês é de outra família, o tibetano de uma terceira família. Quando uma coisa é muito estranha, a gente diz que aquilo é “grego” para nós... mas linguisticamente falando, o português e o grego (e o russo, e o sânscrito) são quase iguais se comparados ao chinês, ou mesmo comparando o chinês ao tibetano, por exemplo.

Só no sul da Ásia, mais diversidade linguística, em termos de famílias, do que na Europa toda
Famílias de Idiomas no Sul da Ásia

Dentro da China ocorre até mesmo o absurdo de gente que fala línguas muito obscuras ou quase mortas, extremamente diferentes do chinês (como o tibetano) falar com os que falam Chinês usando o inglês: o inglês é mais familiar para ambos do que o abismo que separa suas línguas, no mesmo país, e onde se fala muito pouco inglês!

Para nós, aprender o inglês é fácil: muitas palavras do inglês vêm do latim ou do francês... precisamos apenas nos habituar a algumas mudanças gramaticais e aprender vocabulário. Agora, para aprender várias línguas asiáticas precisamos mudar hábitos mentais mais profundos: algumas línguas possuem, por exemplo, o que é chamado de marcadores epistêmicos. Isso quer dizer que formações sintático-morfológicas indicam como a informação foi apreendida, sem que isso seja opcional.

Então dizer certas coisas em certas línguas asiáticas implica em explicitar, necessariamente, a fonte dessa informação: se ouvimos por aí, se vimos com nossos olhos, se sonhamos, se foi uma surpresa para nós. Estamos acostumados a isso ser opcional, e algumas vezes estar presente (no caso da surpresa) meramente na entonação.

Claro, essa é só uma dificuldade peculiar de algumas línguas: o mais comum é a pessoa já esbarrar na fonética (com os tons) e nem sonhar com a escrita. No ocidente aprendemos as línguas com que se faz negócios, mas o Chinês ou o Hindi são complexos como as ramificações das línguas latinas: alguns linguistas mais cínicos dizem que a diferença entre um dialeto e uma língua ser considerada separada da outra é o poder político.

Quando falamos da China, e algumas vezes estereotipamos o país, não damos conta de perceber a vastidão da diversidade mesmo considerando só essa parte da Ásia.

É claro que essa diversidade foi afetada por duas grandes homogeneizações: primeiro a “revolução cultural”, e agora a era da comunicação de massa e internet, a onda de globalização geral.

Então hoje a China é, de fato, um país menos diverso do que era 100 ou 200 anos atrás.
Revolução Cultural Chinesa

Mas ainda são números populacionais assombrosos, uma divisão básica em 5 grandes etnias, e várias culturas de 5.000 anos – culturas acostumadas a serem desafiadas por décadas e séculos a fio, e por isso mesmo bem adaptadas para sobreviver vários cataclismos culturais.

Os europeus que primeiro chegaram à China não receberam muito crédito: o imperador achou que eram súditos trazendo presentes.

A China nunca se pensou nada menor que um império total, ainda que nem sempre propriamente ansiando por dominar territórios: e, até o sec. XVIII, se olharmos com clareza, toda sofisticação europeia não era essencialmente superior de qualquer forma aos grandes centros asiáticos. Foi só com a revolução industrial e a ascensão do império britânico que a Ásia foi conquistada, na verdade, tristemente subjugada, e no caso da China pelo ópio britânico.

O racismo asiático é e sempre foi tão grande quanto o racismo europeu.

Os japoneses tratam os coreanos como sub-raça, as etnias chinesas subjugam umas às outras. Não temos contato com asiáticos em posição de poder, mas eles por muito tempo apenas viam os ocidentais com desprezo. Posteriormente o que ocorreu foi uma era de fascínio, o Japão ao ser submetido pela guerra se tornou súdito da cultura ocidental, particularmente do jeito americano de fazer negócios.

A China primeiro misturou seu confucionismo com o marxismo, e agora mistura capitalismo frenético com pré-sindicalismo. Ao se adaptarem para o mundo, a mistura cultural asiática se torna cada vez mais ilegível para nós, que não entendemos a complexidade de forças ideológicas novas e milenares operando em conjunto.

Mas nós ainda tratamos a China como se fosse culturalmente homogênea, e até certo ponto “simples” como um país europeu relativamente homogêneo, como a Itália ou a França. E talvez seja a ideologia chinesa dominante que também projete essa homogeneidade, mas nada disso sobrevive a longo prazo. A diversidade cultural da Ásia vai cada vez mais se salientar, quanto mais entendermos da história e da língua desses lugares. Quando os ingleses primeiro começaram a formar “orientalistas”, nós imaginamos que 50 ou 100 anos depois, teríamos um vislumbre da cultura asiática.

Hoje, 150 anos depois, vemos que vai levar mais alguns séculos.


publicado em 26 de Setembro de 2012, 14:16
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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