Philip K. Dick e a paranoia gnóstica | WTF #17

O “mito da caverna” é aquela alegoria platônica, talvez o mais conhecido experimento de pensamento da cultura ocidental, onde somos confrontados com a possibilidade de que não temos, normalmente, acesso ao que é realmente relevante. Isso que se apresenta no nosso cotidiano seriam simples sombras e distorções de uma realidade subjacente de formas e valores atemporais, perfeitos e puros.

Talvez algo dessas ideias já estivesse presente na tradição judaica, mas quando Platão passa a ser interpretado/usado pelo cristianismo, surgem miríades de derivações interessantes. Não só vivemos um engano em massa e prolongado com relação ao mundo, mas ganhamos esse, nas palavras de Erdős (e, nunca se engane, todo matemático é um platônico), esse Facista Supremo, esse grande outro ora benévolo, ora possivelmente enganador, Deus ou Demiurgo.

Urbi et Orbi

A manifestação popular do neoplatonismo é uma forma de cristianismo que chamamos de “gnóstico”. Porém, a paranoia já começa aqui. Como todos os proponentes de sistemas religiosos, os gnósticos tem como fonte e justificativa de suas ideias algum tipo de lastro mais pesado: a própria divindade ou a realidade. Assim, possivelmente gente como Platão, e Jesus, e etc., são todos decodificados como tocados pela mesma verve de paranoia essencial.

Uma ou outra seita gnóstica vai dizer e usar algum tipo de cálculo numerológico para provar, por exemplo, que o messias que traz a boa nova e salva o mundo é a serpente. Segundo essa gente, o pessoal que lê a bíblia literalmente está, na verdade, sendo ludibriado pelo grande enganador, o cara aquele que tem um nome de quatro letras e que os desavisados acham que é a entidade última. Não! Esse cara que todo mundo cultua, e que fez o “paraíso” (nossa prisão terrena atual) é o ruim da história: bom mesmo é a serpente Nosso Senhor Jesus Cristo. E assim por diante.

Eu achava divertidas essas coisas quando guri.

Pois bem, se você não viveu a onda gnóstica interpretativa do filme Matrix e, por acaso, não veio a conhecer Platão por causa do filme ou de alguém como Baudrillard, você provavelmente está se perguntando o que isso tudo tem a ver com um autor de ficção científica que escreveu dos anos 50 aos 70 e inspirou diretamente vários filmes famosos, tais como Blade Runner e Minority Report, e indiretamente tantos outros, como o próprio Matrix, Inception ou o ótimo Source Code (Contra o Tempo, 2011).

Talvez seja difícil conceber ou imaginar o que a paranoia decodificadora da gnose e interpretações abstrusas do Gênesis tenham a ver com nosso mundo “líquido” de ativismo anticorporação, cypherpunks, identidades construídas em redes sociais, big data, manufatura do consenso, bem como a simples fragmentação, velocidade e incerteza epistêmica de consciências que navegam numa cultura atemporal, filtrada, reificada e onipresente através de Nosso Senhor o Google – que se ainda não é uma entidade consciente provavelmente falta pouco.

O gnosticismo – a forma cristã/religiosa e mais paranoica do platonismo – foi, se olhamos com cuidado, a mais forte ideologia subjacente a todo pensamento popular no século XX. A psicanálise é embasada exatamente no mesmo tipo de paranoia interpretativa, e Jung foi basicamente um Papa Gnóstico (com anel e tudo). Tudo que chamamos de new age, a contracultura e a cultura da droga, as teorias de conspiração: são absolutamente banhados em gnosticismo.

Blade Runner

É tão prevalente que é difícil distinguir exatamente o que estaria livre da desconfiança de que aquilo que está sendo oferecido não é literal. A própria questão da ubiquidade da ironia nos faz viver num mundo, pelo menos no que é cultural e adaptativo, cheio de paranoia e interpretação.

Quando uso o termo "paranoia" aqui, uso no seu sentido mais geral e laico: é tender ou trabalhar mais com a hipótese de que algo não só está operando sem que você esteja ciente, mas que existe algum nível de ocultação deliberada dessa verdade.

Podem ser os mais óbvios colegas de trabalho maquinando contra você, o “sistema”, ou os Illuminati; mas pode ser também a percepção parcial e filtrada de seus órgãos dos sentidos, a própria estrutura explícita da realidade, quiçá a divindade, ou até mesmo a natureza da consciência. O enfoque é negativo e, por isso, em certo sentido, eu concordaria que é sempre, em todo caso, uma patologia.

Mesmo quando é verdade, como disse Joseph Heller em Catch-22:


“O fato de você ser paranoico não quer dizer que não estão atrás de você”


Quando criança, eu era fascinado por finais inesperados, um viciado em epifanias, ao estilo das que temos ao final do filme Planeta dos Macacos. É claro, epifanias são, no geral, avassaladoras, mas porque vêm da religião, falamos delas como positivas. Na ficção, porém, o choque geralmente é mais marcante quando vem junto do horror. Esse é um momento de “gnose”, do tipo que alguém introduzido à ideia de que o Jeová é o demiurgo e a serpente é, no fundo, nossa amiga, talvez tivesse, lá na era onde a heresia (segundo os Católicos) gnóstica estava na crista da onda.

E confesso que não era nem a má surpresa (o horror) ou um deus ex machina com uma justificação espertinha que me fascinava. O que eu gostava era da Zona do Crepúsculo, o Além da Imaginação, onde muitas vezes o choque era com o novo e o estranho, não com o ruim ou o bom.

Foi isso que me levou a ter, por um longo tempo, Philip K. Dick como autor favorito de ficção científica. Pelo que lembro meu primeiro contato com ele foi por breves descrições dos principais romances nos capítulos sobre universos alternativos e consciências artificiais do livro de Gilberto Schoereder, como esse em Ficção Científica (p. 110):

Flow My Tears The Policeman Said 8 (versão japonesa)

Obs: opa, pera lá! Spoiler alert! Embora eu mesmo tenha lido sobre muitas das reviravoltas das tramas dele antes de ler os livros, se você não quer spoilers, sinto dizer que terá que abandonar o texto a partir de agora!


“Nesse mundo, nessa terra, a Alemanha e o Japão não perderam a guerra, mas sim os Estados Unidos. Dessa forma, os EUA são dominados pelos dois países, principalmente pelo Japão, que mantém um domínio mais sutil que aquele que a Alemanha nazista impôs à África, Rússia e Ásia, causando eliminações raciais.


Nos EUA paralelo, a forma de vida oriental é tida como padrão, e o I Ching é um livro de consultas diárias, utilizado praticamente por todas as pessoas, orientais ou não. Nessa Terra surge um livro, escrito pelo Homem do Castelo Alto, assim chamado porque mora numa fortificação no alto de uma colina, para proteger-se de possíveis atentados nazistas. Este livro conta a historia do mundo como seria, caso a Alemanha e o Japão houvessem perdido a guerra.


O livro é proibido, mas todos o lêem. De certa forma, esse livro refere-se a nosso universo, à nossa Terra, com algumas distorções históricas causadas por alguma falha de entendimento que pode ser considerada normal e aceitável por um escritor que não vive nesse universo.”


E seguia descrevendo O Homem do Castelo Alto, livro de 1962 que ganhou o prêmio Hugo, e que K. Dick, óbvio, para fechar o padrão de estranho loop e recursão de realidades múltiplas, escreveu ele mesmo consultando o I Ching. Finalmente eu tinha descoberto o tipo de Ficção Científica que mais me interessava. Persegui obsessivamente livros de K. Dick nos sebos de Porto Alegre até meados de 1998, então já atrás de versões em português para mostrar para meus amigos anglófobos.

O Homem do Castelo Alto, por exemplo, só era disponível (pré-Amazon, óbvio, mas pré-eu-saber-inglês também) numa cara edição portuguesa. É o livro de K. Dick, entre os vinte e poucos que li, mais bem acabado. Muitos têm ótimas ideias, mas foram escritos apressadamente e isso fica evidente. K. Dick algumas vezes escreveu algo bem rápido só para, por exemplo, pagar a conta do supermercado. E sabe-se lá quais eram as exigências comerciais dos editores em revistas de Ficção Científica da época, daí que sua obra seja tão irregular.

Descrevo abaixo alguns de meus favoritos.

Philip K. Dick, por Robert Crumb

Philip K. Dick lutou diretamente com doença mental e abuso de drogas, e muitas das ocorrências em sua vida inspiraram sua obra. A Scanner Darkly, que virou um filme rotoscopado (e meio difícil, com bons momentos) dirigido por Richard Linklater, lida diretamente com a cultura da droga da Califórnia nos anos 60, mas entra em questões de privacidade e identidade muito relevantes hoje. O agente de narcóticos opera disfarçado, usando uma cobertura que transforma totalmente sua aparência, e, é claro, ele precisa usar as drogas com os drogados para manter o disfarce: acaba que ele passa a investigar essa figura que ele vê no vídeo, mas que é ele mesmo.

Flow my Tears the Policeman Said, pelo que lembro, é excelente, mas utiliza tanto e tão bem a técnica do narrador duvidoso e da fragmentação do enredo (e acho que na época que li eu ainda fumava maconha, para complicar), que não consigo descrever nada mais do que a namorada do cara o atacar com um parasita, que o transforma completamente, ao ponto dele não ser reconhecido e passar a ser perseguido pela polícia. É tudo numa versão dos EUA em que houve uma segunda guerra da secessão, não há democracia.

Eu diria que esse livro é do nível de Kafka, com pitadas de Borges – e mais algo de filme policial B dos anos 70.

Ubik é meu favorito. São dois cenários. Num deles as pessoas prestes a morrer no hospital são mantidas em animação suspensa indefinidamente. Elas podem ser ligeiramente acordadas de tempos em tempos, então a família vai lá ter uma conversa com elas de vez em quando. Detalhe: elas vivem nessa animação suspensa em um sonho muito longo, semelhante ao estado de Bardo do Budismo Tibetano, apenas que se prolonga indefinidamente.

Elas recebem os comunicados da família como se fosse publicidade projetada dentro desse sonho. O outro cenário, é claro, se passa dentro de um ou vários desses sonhos, onde os sujeitos estão tentando descobrir o que acontece com eles, e onde a publicidade (que também representa o sistema de animação suspensa e a manutenção do estado de quase morte) aparece vez após vez, na forma de todos os produtos possíveis. Por exemplo, “use a manteiga Ubik! É a mais fácil de passar no pão e o sabor... hmmmm!” Quando eles vivenciam as coisas se desgastarem e ficarem velhas no sonho, isto é a animação suspensa está falhando e eles estão morrendo, basta eles usarem um dos produtos Ubik e tudo se restaura.

E parece que em breve Ubik vai se tornar um filme em Hollywood!

O melhor de todos

Clãs da Lua de Alfa é meu segundo favorito. É extremamente engraçado. O sujeito trabalha programando androides para fazer propaganda anticomunista nos países soviéticos. Ele é tipo o programador da ideologia e das ideias subliminares que esses robôs têm que implantar numa guerrilha lenta e intelectual no outro lado da cortina de ferro... mas ele logo é demitido, e essa ideia toda se torna irrelevante: é só para descrever o que no fundo é considerado subemprego, que então ele perde, o que causa um divórcio dele.

Ela já o achava um perdedor com aquele trabalheco, imagine sem! A ex (entre muitas exes complicadas na obra de K. Dick, talvez a pior) é uma psiquiatra, convidada a trabalhar em Alfa, uma lua-manicômio. O que ocorreu é que os doentes mentais se rebelaram contra os enfermeiros e médicos 20 anos atrás e passaram a administrar o lugar, e ela é encarregada de retomar negociações para reestabelecer o planeta todo como um hospital.

Chegando lá, ela encontra toda uma organização social formada, onde os maníacos são militares, os paranoicos políticos, os depressivos leves algumas vezes fazem tarefas meniais e os esquizofrênicos são os religiosos. Nosso herói vai (de foguete) atrás da ex-mulher, ajudado pelo vizinho, um bolor limoso telepata e muito espirituoso.

Claro, sendo K. Dick, no fim a doutora fica no planeta como paciente! Grande vingança, a mulher (e a médica!) que é a louca, né, Dick? Mecanismos de defesa meio óbvios, hein? Mas o livro é adorável e fantástico, em todos os mundos possíveis.

Em The Three Stigmata of Palmer Eldrich, mineradores num planeta inóspito usam um conjunto de bonecas e uma droga especial para simularem, nas horas vagas, uma realidade mais afável e significativa. Um traficante intergaláctico que introduz uma droga nova que muda o equilíbrio social através de efeitos diversos, se chama Palmer Eldrich. Ele tem os estigmas, como Cristo.

Em V.A.L.I.S., um doppelgänger de K. Dick começa a acreditar que suas visões expõe fatos ocultos sobre a realidade da vida na terra. Dentro da trama um filme de ficção científica também chamado V.A.L.I.S. revela as mesmas coisas, o que o leva a acreditar ainda mais em suas visões. No entanto, ele vive, como o próprio K. Dick, em dúvida se é um mero esquizofrênico ou se é uma espécie de profeta gnóstico.

O livro deveria compor uma trilogia gnóstica com A Invasão Divina, onde K. Dick lida com ideias gnósticas e sua história pessoal (ele perdeu uma irmã gêmea com semanas de idade, e a divindade nessa obra é bipartida em um aspecto masculino e feminino, e algo de errado aconteceu com o aspecto feminino da deidade), e The Owl in Daylight, que não foi acabado. (Normalmente A Transmigração de Timothy Archer é incluído como o último item da trilogia por tratar de temas semelhantes).

Homem do castelo alto

Se a pessoa for um legítimo fanático por K. Dick, ao ler essa trilogia ela pode pegar o volumão The Exegesis of Philip K. Dick e mergulhar no mar de gnosticismo e loucura através dos diários religiosos do cara. Acho que não recomendo. Na verdade V.A.L.I.S. é um livro impressionante e interessante, mas os outros livros explicitamente gnósticos dele não são tão bons.

De toda forma, ninguém deve perder A Experiência Religiosa de Philip K. Dick, desenhada por R. Crumb, e que conta algo da história da origem do raio cor-de-rosa que em V.A.L.I.S. detonam as visões no Gordo Adoradordecavalos (Dick: gordo, Philip: que adora cavalos, o tal duplo, personagem principal em V.A.L.I.S.)

Nada que fale sobre K. Dick pode deixar de mencionar Blade Runner. Memórias implantadas, questões de identidade e individualidade, bioética, consciências artificiais: e o clima, o ambiente, a atmosfera. É claro que Ridley Scott e a absurda qualidade de produção daquele filme contribuem em grande parte para ele ser o neo-noir classudo que é. Mas o pior é que esses elementos estão mesmo lá no texto de K. Dick.

Quando George Lucas teve a brilhante ideia de projetar um futuro de máquinas avançadíssimas, mas usadas e sujas em Guerra nas Estrelas, esse elemento de futurismo retrô, desgastado, já estava lá em K. Dick talvez duas décadas antes – ainda que, como estamos vendo, a space opera não fosse o lance do K. Dick. Além dos futuros baunilha utópicos, e dos futuros ativamente opressivos e distópicos  (que K. Dick dominava), ele foi o iniciador de uma distopia de cansaço do sonho americano, de subúrbios e shopping centers, uma espécie de kitsch desgastado vindo diretamente das corporações.

Era só projetar a Califórnia dos anos 70 um pouco mais à frente, e o cenário não era bonito.

Mas além do kitsch, o camp. Eu não estava bem preparado em 1991, aos 16 anos, quando entrei no Cinema Scala para assistir Total Recall – ainda que eu fosse talvez naquela sala o único que havia lido meia dúzia de K. Dicks, e havia aguardado o filme com grande antecipação, depois que um anúncio ou resenha dele surgiu na Isaac Asimov Magazine.

Tão bem como Ridley Scott capturou o noir quase steampunk (uma breve tendência que, como todo o movimento Cyberpunk, ele influenciou), Paul Verhoeven capturou completamente bem o camp kadiqueano em Total Recall. Esse filme precisa ser visto tendo em mente a cena de K. Dick levando uma história – talvez semelhante a essa, ou essa mesma – a um editorzinho miserável para pegar 200 dólares suados para pagar a conta da bodega.

Total Recall

Essa conjunção de fatores torna a experiência toda de um blockbuster norte-americano ultraviolento com Arnold Schwarzenegger e Sharon Stone, mas cheio das pequenas temáticas gnósticas, políticas e sociais e de ótimos efeitos especiais (mutante de três seios? Disfarçar o governador Arnie de gorda? O robô que dirige o taxi? Kuatu na barriga do carinha? Epítomes do camp!), simplesmente imperdível.

E totalmente kadiqueana até mesmo em ser meio (totalmente) vergonhoso gostar de um filme assim. K. Dick não só descreve e critica, ele é também produto do wasteland infinito da América suburbana dos shopping centers de brilho gasto, pedindo reforma, que hoje são simplesmente nossa cultura globalizada por todo lado.

É a própria Disneylândia da Monsanto.

K. Dick não vivenciou a celebridade, ele teve um AVC fatal aos 54 anos de idade, logo antes de Blade Runner explodir: se é que Blade Runner explodiu... ele, como a obra de K. Dick, parece que ainda estão lentamente crescendo no imaginário.  Os filmes continuam saindo, e mesmo os piores (Paycheck, Next, The Adjustment Bureau, The Impostor) não chegam a ser totalmente ruins (na verdade o remake de 2012 de Total Recall é bem ruim, quase inassistível).

Não tenho certeza se foi K. Dick que transformou definitivamente o foco da crítica distópica dos governos totalitários para as supercorporações, mas com certeza sua obra inteira é cheia de requintadas críticas ao capitalismo, e à publicidade (talvez o primeiro também, na Ficção Científica) e a alienação social que produzem.

Não que ele fosse socialista, de forma alguma. K. Dick dá poucas soluções, sejam elas psicológicas, filosóficas ou sociais. Muitas de suas historias, quando não tem uma temática de horror mais explícita, são extremamente desagradáveis e opressivas. Quase não há amor no universo kadiqueano, as mulheres no mais das vezes só servem para ferrar o protagonista ainda mais. E até mesmo as amizades são raras – o bolor de Clãs da lua de Alfa é um dos poucos amigos em K. Dick de que posso lembrar. (É um escritor muito menos humano do que Vonnegut, por exemplo, outro que escolhi para comentar – e que tem exatamente essa como sua característica principal, ou seja, calor humano.)

O tema principal de K. Dick, se é que temos um, além das múltiplas realidades e das incertezas epistêmicas quanto a identidade e mundo, é a do “homem errado” (ou seja, o cara que se fode porque está no lugar errado e na hora errada) – que é um tema eterno da ficção paranoica, de Kafka a Hitchcock. Apenas que, pelo conteúdo filosófico, psicológico e político da obra, a hora errada e o lugar errado são, como para qualquer bom paranoico, onipresentes.

Sempre provocador, atualíssimo e profético, K. Dick vai ganhando o sabor de obra sedimentada num momento específico do espaço e no tempo, e em relação com o cinema e a cultura popular – o caráter estético de suas descrições, escolhas idiossincráticas e mistura de temas, bem como uma ou outra ousadia na estrutura da escrita, cada vez se tornam mais atraentes.

Seu caráter filosófico e psicológico não envelhece como acontece com boa parte da ficção científica. Mesmo que esse não seja um século gnóstico como reconheço o século passado, é bem difícil que essas ideias milenares parem de ser cogitadas – e o ambiente mais secular onde K. Dick conseguiu fazer suas investigações espirituais é cada vez mais adequado.

De toda forma, seria, claro, temerário tomá-lo como profeta, ou procurar sabedoria ou uma explicação das coisas (na Exegesis, por exemplo). K. Dick é interessante como expressão criativa da doença mental, do abuso de drogas e, talvez, das distorções da religião – e como pensador orgânico “pós-moderno”.

Normalmente falamos das distorções da religião organizada, e vez que outra atacamos a religião como um todo. Mas K. Dick pode sim ser lido como uma advertência. Uma sempre interessante e infinitamente criativa advertência, sempre deixando claro que há dragões nesse caminho. Se você quer estudar dragões: loucura, drogas, gnosticismo... tudo bem. Só não se identifique. E não deixe de aproveitar a promoção, só esta semana, dois Ubik pelo preço de um!

Obs: Pensei que preciso fazer duas observações sobre o gnosticismo. Primeiro é o termo Gnose, com o qual vamos encontrar publicidade em várias cidades. É um movimento moderno new age, que considero altamente falcatrua. Gnose é a mesma palavra que deu origem a conhecimento, knowledge e jnana (o nh, o kn e o jn são esse gn! Grego, português, inglês e sânscrito, mesma família: o indo-europeu.)

Outra coisa que creio pode surgir, por causa de minha conexão com o budismo, é o quanto essa coisa da realidade última oculta do platonismo/gnosticismo está presente no budismo. É extremamente complicada a relação desses conjuntos de ideias – até se não entramos no greco-budismo e influências mútuas –, mas para efeito de balde de água fria, a não ontologia budista da vacuidade nega essa realidade de sonho, como a gnose faz, mas nega também uma realidade última postulável. Para o budismo é nessas exatas formas imperfeitas que se apresentam, como se apresentam, e que são um sonho, que, quando vistas como sonho, são a realidade última. Não tem nada “por trás”. O budismo acusaria o platonismo de botar um sonho mais bonitinho e matemático por trás do sonho grosseiro, e de então reificar esse sonho como realidade última.

Como o K. Dick sabia – por exemplo em Blade Runner [final cut], Total Recall e o final mindfuck de Minority Report (este último talvez você tenha que ler a respeito para entender que não é bem o que parece) –, e como filmes kadiqueanos como Inception seguiram, na ficção fica mais interessante quando o sentido último fica ambíguo, ou, melhor ainda, quando o personagem se vê horrorizado, preso a um regresso infinito de realidades que se dissolvem. Sádicos, esses escritores. (Se bem que os gnósticos e gente que gosta de teoria de conspiração, e os paranoicos, sempre acham um jeito de duvidar da nova versão dos fatos... Masoquistas, estes. Criativos inventores da maquinação alheia.)


publicado em 08 de Abril de 2013, 21:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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