Masculinidade e Religião: Está havendo transformação nos espaços cristãos?

Reunimos reflexões sobre cristãos falando sobre gênero no YouTube e iniciativas que tem discutidos as masculinidades nas igrejas

Falar de gênero e de religião, principalmente entre as vertentes cristãs, tem sido sinônimo de polêmica nos Brasil. A disputa dentro do tema se torna inevitável porque o senso comum entende que qualquer estudo de gênero é contrário aos valores e tradições cristãos. 

Partimos de uma pesquisa sobre cristãos falando de gênero no YouTube, para notar como essa conversa têm mudado e, a partir daí, conversamos com o Pastor Rodolfo, do Espírito Santo, que tem puxado rodas de conversa sobre masculinidades dentro da sua comunidade. 

Masculinidades e Religião

Eu estudo sexualidade e YouTube e, nesta jornada, fiquei curiosa para entender como os youtubers cristãos estavam desenrolando conversas sobre gênero em seus canais. 

Sem pretensão de dar um diagnóstico sobre a questão, fiz um artigo investigando o tema para dar pistas sobre como tem sido o diálogo sobre sobre gênero nesta rede e levantar perguntas para novas pesquisas.

Sem querer te convencer a concordar ou não com esta ideia, gostaria de ter a oportunidade de definir brevemente o que, dentro da acadêmia e das universidades, se entende como gênero (até para desfazer alguns mitos):

Gênero não é uma teoria ideológica que nega a existência dos sexos. Simplificando, gênero é um conceito que busca entender como se estabelecem as “caixinhas” que definem os estereótipos de homens e mulheres e como se espera que estas duas caixinhas se relacionem.

Quando, aqui no PdH, discutimos a “caixa do homem”,  ou "O silêncio dos Homens", junto de todas aquelas expectativas criadas ao redor da masculinidade, estamos conversando sobre gênero. Nenhum bicho de sete cabeças, não é mesmo? 

A maioria das polêmicas se desenvolvem quando as pessoas pensam em gênero como sinônimo de “transgênero” (de pessoas que nasceram com uma designação biológica, mas se identificam de outra forma). Bem por hora, vamos só definir que transgênero é um dos temas que podem ser pensados pelos estudos de gênero, mas que uma coisa não é igual a outra, combinado?

E o que gênero tem a ver com religião?

Bem, a religião de uma pessoa faz parte da maneira como ela forma sua visão de mundo: faz parte de como ela dá sentido para as coisas (“Foi vontade de Deus”), de como ela desenvolve as relações (“É perdoando que se é perdoado”) e de como ela funda seus valores, sonhos e objetivos.

Segundo o IBGE  de 2010, 86,8% da população brasileira é Cristã (considerando segmentos católicos e evangélicos) e, segundo estatísticas da mesma pesquisa, o crescimento da população evangélica pentecostal deve continuar.

Para entender o mundo em que vivemos, é importante considerar os valores religiosos e outros aspectos que formam a cultura da nossa sociedade (como a mídia). Foi justamente isso que eu quis fazer neste artigo.

O que eu pude ver nesta breve pesquisa:

Não quero entrar nos detalhes acadêmicos e tediosos, mas algumas considerações são importantes: utilizei as palavras-chave “Gênero” e “Cristão” para encontrar vídeos, filtrei os mais visto, selecionei três os primeiros e analisei suas narrativas.

Nesta breve exploração deu pra perceber o seguinte:

  • Os videos mais vistos eram de líderes de vertentes evangélicas do cristianismo
  • Mesmo sem usar a palavra ideologia, estes vídeos se referiam ao gênero como algo ideológico, como uma teoria criada para manipular a população.

Muito do que foi visto nos vídeos representava, em partes, uma enxurrada de clichês que os progressistas esperam de conservadores:

  • Discursos polarizados com pitadas de intolerância
  • Associação dos estudos de gênero com perversividade, pedofilia, zoofilia
  • Referências a "ideologia de gênero" como uma investida do “demônio” que quer “matar, roubar e destruir o maior presente de Deus para a humanidade: a família"

Esta lógica de repúdio ao assunto gênero se dá porque, segundo os líderes evangélicos que analisei, questionar comportamentos (papéis dos homens e das mulheres), acabaria com os casamentos e com a família.

Por outro lado, estes líderes tampouco reconhecem os casamentos e famílias que não sejam heterossexuais, (que, segundo eles, não gera descendentes e está em desacordo com a bíblia). Este tipo de união é vista como prenúncio da extinção da espécie ou como o fim derradeiro da humanidade.

"Não vamos generalizar..."

Há algumas semanas divulgamos um texto extenso e rico sobre como quebrar a polarização ao tornar as narrativas e as histórias mais complexas, então quero aproveitar algumas destas descobertas para fazer justamente isso. 

Veja bem, eu sou uma jornalista, feminista, mestranda da Universidade de São Paulo, de cabelo curtinho, seria a personificação da “esquerdista que quer destruir a família e odeia cristãos.” 

No entanto  queria contar que eu não sou contra a religião e seu princípios... Ao contrário, cresci na igreja católica por vontade própria e tenho poucas experiências ruins para relatar. Eu gostava tanto da igreja, que eu queria ser Padre.

Agora, para complexificar os resultados da pesquisa, no artigo notei que, ao mesmo tempo que estes líderes rechaçavam o feminismo e qualquer discussão sobre desigualdade e/ou identidade de gênero, estes mesmos líderes de vertentes evangélicas também revisaram algumas regras de comportamento dos homens. 

Revendo a submissão da mulher

Os pastores do YouTube, ao mesmo tempo que diziam que feminismo apoiava a “inversão de papéis” e que isso era negativo para a família, também defendiam que a bíblia não era machista e revisavam o trecho da bíblia que coloca a mulher na posição de submissão do homem.

Diziam: “Veja bem, submissão aqui, não quer dizer estar abaixo, quer dizer 'estar sob a mesma missão'”. 

Por mais que eu prefira ouvir pastores pregando que a mulher não tem de ser submissa ao homem, dizer que a palavra submissão vem de “sob a mesma missão” é uma fakenews. A etimologia (origem da palavra) submissão vem do verbo “sub-meter” (colocar abaixo).

Independente do significado original, há um esforço por parte dos líderes de reconstruir trechos da bíblias, tirando a mulher da posição de inferioridade e obediência. 

Revisando o papel dos pais

Em determinado momento de seus cultos, dois dos pastores analisados chamam a atenção dos homens para o seu comportamento em casa e com seus filhos: “Que tipo de pais vocês tem sido?”

Nestas narrativas há um forte chamado à paternidade e ao cuidado do lar, à responsabilidade parental. Por mais que este venha embalado em um discurso “anti estudos de gênero”, ainda que de forma conservadora, notamos que este chamado está promovendo uma mudança no sentido de diminuir as desigualdades de gênero.

"O Silêncio dos Homens" na Igreja

Um outro fato nos levou a ver como as narrativas são mais complexas que a antítese "Religioso/Conservador" versus "Não-religioso/Progressista".

Pouco antes de lançar o documentário “O silêncio dos homens” notamos uma grande exibição sendo organizada no Espírito Santo, para 400 pessoas — era a maior do estado e, olhando mais de perto, vimos que a exibição seria sediada num templo evangélico.

Para nós do PdH foi um prazer imenso notar que a discussão sobre masculinidades e transformações estava entrando por portas fora dos padrões comuns. Ligamos para conversar com o Pastor Rodolfo, que organizou a exibição, porque queríamos saber, do ponto de vista dele, como a comunidade recebeu o tema. 

O Pr. Rodolfo nos explicou que a comunidade dele é da Igreja Batista e que, apesar da grande diversidade de pensamento, considera que sua comunidade seja bem aberta a pensar alguns temas atuais. 

Como as comunidades têm muita liberdade para decidir por si, Rodolfo quis esclarecer que ele falaria sobre a sua atuação na comunidade e que não gostaria de soar como se fosse um porta voz de todo um segmento da Igreja Batista. 

Ano passado, sua comunidade criou uma roda de conversas sobre masculinidades. Os encontros acontecem uma vez por mês e são abertos para todos. Nosso documentário, "O silêncio dos homens", foi apresentado em um desses encontros, gerando uma roda de conversa em seguida.

Rodolfo conta que ele e sua comunidade falam sobre masculinidades porque pretendem abordar os assuntos da atualidade, combatendo discursos de ódio e promovendo o respeito. Ele também explica que, para isso, é preciso ter muito cuidado ao colocar as coisas, afinal, a comunidade evangélica inclui pensamentos muito plurais.

Para o pastor, repensar as masculinidades dentro da igreja é muito importante porque a igreja serve como referencial para muitas pessoas e porque o que se ouve ali dentro pode se desenrolar na vida pública. 

Ele se preocupa com compreensões da bíblia que possam ser interpretadas como um pretexto para que homens se sintam no direito de controlar e até mesmo de agredir suas esposas e diz:

“Será que nós como igreja não temos um papel nessa luta? Será que esses agressores não tem, dentro de si, uma crença religiosa de que o homem é maior que a mulher?”

Como a igreja pode mudar o pensamento?

No artigo em que eu analisei os discursos de cristãos no YouTube, fica muito evidente o quanto alguns conceitos morais, por estarem pautados na bíblia, são considerados imutáveis por líderes religiosos. Por exemplo, para os líderes religiosos que foram analisados (os que tinham maior audiência), não é possível normalizar que um homem se deite com outro, porque na bíblia está escrito que é condenável e a bíblia é palavra divina que não deve ser questionada

Perguntamos como o Pr. Rodolfo, encara o desafio promover respeito e aceitação à diversidade, diante da palavra da Bíblia como algo inquestionável. Para o pastor, é preciso fazer a comunidade refletir sobre esta supremacia intocável da bíblia. 

Ele busca tirar o livro sagrado da posição de idolatria, contextualizar os conteúdos para que as pessoas entendam algumas das coisas ali registradas precisam ser bem compreendidas a partir daquele contexto e repensadas: será que precisaria ser assim ainda nos dias de hoje?

O pastor ainda ressalta é que preciso considerar as mudanças de traduções que ocorreram ao longo dos séculos e opina que a bíblia deve ser usada como inspiração para aprender lições que vão além da realidade que está descrita ali.

Compreendendo a bíblia a fundo:

Uma das descobertas que fiz recentes é canal do Murilo Araújo, um YouTuber cristão católico que tem feito um trabalho muito bacana de falar questões de diversidade dentro dos pressupostos cristãos. 

Em um dos seus vídeos, ele reuniu uma bibliografia extensa de trabalhos acadêmicos e históricos que trazem novos olhares e contextos para os trechos da bíblia que se referem a sexualidade e a homossexualidade, por exemplo. 

Esse vídeo é uma super aula e eu não poderia deixar de recomendar.

A jornada não é fácil (e é longa).

Longe de querer enxergar um mundo onde tudo está perfeito ou caminhando para isto, quis que este texto trouxesse uma luz sobre um tema que tem sido tão presente nas discussões familiares e políticas. Ver exemplos que transcendem a polarização nos dá a chance de pensar em encontrar alternativas de comunhão de ideias e de propostas. 

No entanto, a jornada é longa e não é fácil. A fatia de intolerância entre cristão fundamentalistas ainda é grande. Vale lembrar das igrejas americanas que foram queimadas por aceitar abertamente a membros LGBTQ (caso em Ohio em 2012, caso em New Orleans na década de 1970)

Tanto Rodolfo quanto Murilo relatam enfrentar críticas e rejeições de diversos companheiros de fé. "Muita gente não gosta de conversar sobre certos assuntos, mas temos buscado oferecer um espaço onde temas como esse sejam abordados para que cresçamos juntos", diz Rodolfo, que termina ressaltando a importância de pensar a teologia como algo que combate a intolerância.


publicado em 16 de Outubro de 2019, 05:40
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Gabriella Feola

Editora do Papo de Homem e autora do livro "Amulherar-se" . Atualmente também sou mestranda da ECA USP, pesquisando a comunicação da sexualidade nas redes e curso segunda graduação, em psicologia.


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