Como lidar com a polarização de um jeito diferente? | Complicando as narrativas, parte 1

Tradução do texto de Amanda Ripley sobre como as polêmicas poderiam ser abordadas baseadas na maneira como os humanos realmente se comportam quando estão desconfiados e polarizados.

Nota da editora: este artigo de autoria de Amanda Ripley foi originalmente publicado na página Solutions Journalism e trata de um tema que interessa a todos nós: como lidar com conflitos de uma forma menos polarizada. O ponto de vista exposto aqui embaixo é muito interessante e relevante, então, decidimos traduzir e trazer pra vocês. Por tratar-se de um texto bastante longo, decidimos dividir em duas partes. Essa é a primeira parte e na próxima sexta divulgaremos a continuação.

Complicando as Narrativas

E se o jornalismo cobrisse temas polêmicos de um jeito diferente - baseado na forma em como humanos agem quando estão desconfiados e polarizados?

No verão passado, [o programa da CBS News] 60 minutes trouxe 14 pessoas— metade republicanos, metade democratas — para uma usina de conversão de energia no centro da cidade Grand Rapids, no Michigam. O objetivo era encorajar os americanos a falar — e ouvir — àqueles de quem discordam. A Oprah Winfrey guiou a conversa, sua estréia como uma correspondente especial do 60 Minutes Special — e seu retorno ao noticiário televisivo, onde ela começou sua carreira como âncora de Baltimore, quatro décadas antes.

Foi uma oportunidade extraordinária. Por três horas, nove câmeras capturaram a conversa do grupo sobre Twitter, o presidente Trump, saúde e possibilidade de uma nova guerra civil. 

A equipe até construiu uma mesa especial pra ocasião. O segmento editado de 16 minutos representaria o primeiro de uma série de episódios de 60 Minutes planejados e focados na América dividida. 

Era a chance de um veículo de notícias respeitável ir além dos clichês e etiquetações e escavar ricas e profundas verdades sobre a drástica divisão nos EUA.

No fim, não foi isso que aconteceu. O episódio atraiu aproximadamente 15 milhões de espectadores, tornando-se o terceiro programa mais visto da semana, de acordo com as estatísticas Nielsen. Mas a conversa que foi ao ar era estranhamente boba e superficial.

Primeiro, um homem bonachudo chamado Tom disse que ele amava mais o Trump a cada dia; depois, uma loira chamada Jennifer disse que o Trump dá náuseas nela. Em seguida, Winfrey circulou pela mesa pedindo que cada pessoa dissesse uma palavra para descrever o típico eleitor do Trump, repetindo suas respostas. “Frustrado”, disse Tom. “Frustrado”, disse Winfrey.

O que deu errado? Como pode uma das mais bem sucedidas e cativantes entrevistadora da história dos EUA criar um programa tão estéril?

Lá no fundo, apresentadores de talk-show (assim como jornalistas no geral) entendem certas coisas sobre a psicologia humana: a gente sabe como prender a atenção de uma mente e estimular medo, tristeza ou raiva. 

Somos capazes de provocar revolta com cinco palavras ou menos. Nós valorizamos o poder ancestral de contar uma história e entendemos que uma boa história precisa de conflito, personagens e cena. Mas na atual era de tribalismo, parece que atingimos nossa limitação coletiva. 

Conforme os políticos se tornaram mais polarizados, nós, progressivamente, nos permitimos sermos usados por demagogos de ambos os lados da via, aumentando os insultos ao invés de expor suas motivações.

De novo e de novo, nós temos contribuído para a escalada do conflito e abafado a complexidade da conversa. Muito antes da eleição de 2016, a grande mídia perdeu a confiança do público, criando abertura para desinformação e propagandas.

Se o propósito do jornalismo é "ver o público numa existência mais plena", como Jay Rosen escreveu uma vez, é difícil pensar que temos sido bem sucedidos.

“Conflitos são importantes. É o que faz a democracia andar para frente," disse o jornalista Jeremy Hay, cofundador da Spaceship Media, que ajuda veículos de mídia a engajar comunidades divididas. “Mas enquanto o jornalismo se contentar em deixar que os conflitos permaneçam assim, o jornalismo estará abdicando do poder que tem para ajudar as pessoas a encontrarem uma saída deste conflito."

Mas o que mais nós podemos fazer com os conflitos além de deixá-lo ali?Nós não somos advogados, e não deveríamos estar no negócio de fazer as pessoas se sentirem melhor. Nossa missão não é diplomática. Então que opções restam?

Para descobrir, eu passei mais de três meses entrevistando pessoas que conhecem muito bem sobre conflitos e que desenvolveram maneiras criativas de passar por eles.

Eu conheci psicólogos, mediadores, advogados, rabinos e outras pessoas que sabem como romper com narrativas tóxicas e botar as pessoas para revelar suas verdades mais profundas. Eles fazem isso todos os dias — com conjuges furiosos, sócios com sangue nos olhos, vizinhos rancorosos. Eles aprenderam como conseguir que as pessoas se abram a novas ideias, ao invés de se fechar em julgamentos e indignações. 

Fico envergonhada de admitir isso, mas eu fui uma jornalista por mais de 20 anos, escrevendo livros e artigos para a Time, the Atlantic, the Wall Street Journal e todos os tipos de lugares, e eu não sabia dessa lição.

Depois de gastar mais de 50 horas em treinamentos para várias formas de resolução de conflitos, eu percebi que tinha superestimado minhas habilidades de entender rapidamente o que leva as pessoas a fazerem o que elas fazem. Eu supervalorizei a racionalidade em mim e nos outros e subestimei o valor do orgulho, do medo e da necessidade de pertencimento. 

Eu estive atuando como uma economista, em outras palavras — uma economista da década de 1960.

Por décadas economistas supunham que humanos eram agentes racionais, atuando num mundo racional. Quando as pessoas cometiam erros no livre mercado, o comportamento racional iria, isso era suposto, prevalecer. Então, nos anos 1970, psicólogos como Daniel Kahneman começaram a desafiar essas suposições.

Seus experimentos mostravam que humanos estão sujeitos a todas as formas de parcialidades e ilusões.

"Somos influenciados por coisas completamente automáticas das quais não temos controle, e nós não sabemos que estamos fazendo isso", como Kahneman coloca. A boa notícia é que todos estes comportamentos irracionais também são altamente previsíveis. Então economistas gradualmente ajustaram seus modelos para considerar estes sistemáticos caprichos humanos.

O jornalismo ainda tem que passar por esse despertar. Nós gostamos de acreditar que somos investigadores objetivos da verdade. Que é a razão pela qual a maioria de nós fomos cortados pela metade nos últimos anos, continuando a fazer mais do mesmo tipo de jornalismo, apesar das montanhas de evidências que não estávamos tendo o impacto que já tivemos. Nós continuamos coletando fatos, capturando aspas, como se estivéssemos atuando num mundo linear. 

Mas foi ficando claro que nós não podemos pensar na saída para os nossos problemas como um decreto "FOIA"(documento do ato pela liberdade de informação). Se quisermos aprender a verdade, temos que encontrar novas maneiras de ouvir.

Se queremos que nossos melhores trabalhos tenham repercussões, temos de ser ouvidos. "Qualquer um que valoriza a verdade", escreveu o psicólogo social Jonathan Haid em A Mente Justa, "deve parar de adorar à racionalização."

Precisamos encontrar maneiras de ajudar nossa audiência a sair das suas tocas e levar novas ideias em consideração. E pra isso nos temos a responsabilidade de usar todas as ferramentas que pudermos encontrar — incluindo lições de psicologia.

“É tempo de parar de arrumar desculpas,” como escreveu o ganhador do Nobel de economias Richard Thaler em seu livro Misbehaving. Ele estava falando para economistas mas ele poderia estar se dirigindo a jornalistas. "Nós precisamos de uma abordagem rica... que reconheça a existência dos Humanos.”

Seu cérebro em conflito

Pesquisadores dão um nome para o tipo de divisão que os EUA vem experimentando atualmente. Eles chamam isso de "Conflito intratável", como o psicólogo social Peter T. Coleman descreve em seu livro The Five Percent, e esse conflito é muito semelhante ao tipo saguinolência doentia que surge em 1 a cada 20 conflitos ao redor do mundo.

Nessa dinâmica, os encontros de pessoas com a outra tribo (política, religiosa, étnica, racial ou outra categoria) fica cada vez mais tensionado. E o cérebro age de maneira diferente em interações carregadas. É impossível se sentir curioso, por exemplo, enquanto você também se sente ameaçado.

Neste estado de hiper vigilância, nós sentimos uma necessidade involuntária de defender o nosso lado do ataque do outro. Esta ansiedade nos deixa rendidos e imunes a novas informações. Em outras palavras: não há quantidade de relatório investigativo ou documentos vazados que mude nossa cabeça, independentemente.

Conflitos intratáveis se auto alimentam. Quando mais a gente tenta aplacar o conflito, pior ele fica. Essa voracidade "parece ter um poder próprio que é inexplicável e potente, levando pessoas e grupos a agirem de formas que vão contra seus próprios interesses e que planta a semente da sua ruína", escreve Coleman.

"Frequentemente nós pensamos que entendemos esse conflito e que  escolhemos como reagir a eles, que nós temos opções. No entanto, geralmente nós estamos errados."

Uma vez que nós estamos mergulhados dele, o conflito toma conta. A complexidade colapsa e a narrativa de nós-contra-eles suga o oxigênio da sala. "Com o tempo, as pessoas amadurecem cada vez mais certas de que suas visões são obviamente são corretas e vão ficando cada vez mais abismadas com as crenças e ações dos outros, que parece ser não razoável, ou maliciosas, extremas ou loucas", de acordo com a literatura de treinamento da Resetting the Table, uma organização que ajuda as pessoas do Oriente Médio e EUA a falarem sobre suas profundas diferenças.

O custo de conflitos intratáveis também são previsíveis. "Todo mundo perde", escreve Eyal Rabinovitch, cofundador da Resetting the Table. "Conflitos assim minam a dignidade e integridade de todos os envolvidos e se tornam obstáculos para o pensamento criativo e soluções sábias."

Há maneiras de romper um conflito intratável, como a história confirma. Ao longo de décadas de trabalho, em laboratórios e nas margens dos campos de batalhas, acadêmicos como Coleman, Rabinovitch e outros identificaram dúzias de maneiras de quebrar essa armadilha, algumas das quais são especialmente relevantes para jornalistas. 

Em todo caso, o objetivo não é apagar o conflito; é ajudar as pessoas a conseguir entrar e sair da lama de conflitos (e entrar novamente) com suas humanidades preservadas.

Ilustração de Michael Marsicano

Americanos continuarão discordando, sempre; mas com as articulações feitas no tempo certo, nós podemos ajudar as pessoas a reconquistar sua visão periféricas enquanto discordam. De outro modo, podemos nos assegurar de uma coisa: todos vamos perder coisas importantes. 

A conversa cochicha

Num difícil de achar quarto sem janelas na Columbia University, tem algo chamado Laboratório de Conversas Difíceis. Coleman e seus colegas usam o laboratório para estudar conflitos da vida real um ambiente controlado, inspirado em parte pelo Laboratório do amor, em Seattle (onde os psicólogos Julie e John Gottman têm conhecidamente estudado milhares de casais casados por muitos anos).

Na última década, o Laboratório de Conversas Difíceis e seus laboratórios irmão ao redor do mundo tem sediado e gravado cerca de 500 encontros polêmicos. Eles intencionalmente geram o tipo de desconforto que a maioria das pessoas passam as festas de fim de ano tentando evitar. Para fazer isso, os pesquisadores primeiro estudam os participantes para aprender sobre suas visões em alguns temas polarizados, como aborto, o conflito entre Israel e Palestina, então eles combinam cada pessoa à um alguém de quem esta discorde fortemente.

Quando os dois participantes se encontram, pedem que eles passem 20 minutos forjando um argumento sobre o assunto polêmico — um que, em teria, ambos concordem em deixá-lo público com seus nomes atrelados a eles.

Algumas dessas conversas são tão desastrosas que elas precisam ser encerradas antes do final do tempo. Mas muitas outras, não.

Com o tempo, Coleman e seus colegas perceberam que nas conversas que não são terríveis, as pessoas ainda experimentam emoções negativas, mas de uma maneira não tão consistente. Essas pessoas giram em torno da costumeira raiva e atitude culpabilizadora, mas elas também se sentem animadas em alguns momentos. Elas experimentam emoções positivas e negativas e positivas novamente, mostrando a flexibilidade que havia desaparecido nas conversas engessadas. 

Quando a conversa acaba, e os participantes se separam, cada um escuta o áudio da conversa e relata como se sentiram em cada ponto. Com o tempo, os pesquisadores perceberam uma diferença chave entre as conversas desastrosas e as não-desastrosas: as melhores conversas pareciam uma constelação de sentimentos e pontos, mais que um cabo de guerra. Elas era mais complexas.

Essa complexidade pode ser artificialmente induzida? Há uma maneira de cultivar conversas melhores? Para descobrir, os pesquisadores começaram a dar aos participantes algo para ler antes deles se encontrarem — um artigo rápido sobre outro assunto polêmico. Uma versão do artigo abordava os dois lados da controvérsia em questão, similar a uma notícia tradicional — argumentando a favor do direito às armas, por exemplo, e, em seguida, argumentando pelo controle.

A versão alternativa continha as mesmas informações escritas de uma forma diferente. O artigo enfatizava a complexidade do debate sobre armas, mais do que descrever um tema de dois lados. Assim, o autor explicou muitos pontos de vista diferentes, com mais nuance e compaixão. Este é lido menos como um discurso de advogado, e mais como notas de campo de um antropólogo. 

Depois de ler o artigo, os dois participantes se encontravam para discutir a paz no Oriente Médio — ou outra polêmica qualquer. O resultado foi que o material dado antes da conversa faz diferença:  nas conversas difíceis que seguiram, as pessoas que leram o artigo mais simplista, tenderam a ficar presas na negatividade. Mas aquelas que leram os artigos mais complexos não. Elas fizeram mais perguntas, propuzeram ideias de mais qualidade e saíram do laboratório mais satisfeitas com a conversa.

“Elas não resolveram o debate”, disse Coleman says, “mas elas tiveram uma compreensão da conversa com mais nuances e mostraram propensão a continuar o assunto”. Parece que a complexidade é contagiosa, o que é uma excelente notícia pra humanidade.

 

 

publicado em 06 de Setembro de 2019, 15:21
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Redação PdH

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