Em um texto recente, afirmei que as mulheres não buscam dinheiro, inteligência ou beleza nos homens.
Um leitor afirmou que muitas delas agem como se quisessem isso. E então respondi que todos nós agimos como se buscássemos dinheiro, poder, beleza, inteligência… E que, no fundo, não é bem que isso desejamos.
Agora vou desdobrar um pouco esse papo, fazendo uma estranha mistura com Maturana, Bentley, Sartre, Radiohead e Seinfeld.
Um fim de semana perfeito
Fácil. Vamos imaginar que sexta à noite você chega em casa e liga para seus melhores amigos dizendo que enfim seus investimentos deram certo: você não vai mais precisar trabalhar para o resto da vida. Trabalho agora só por diversão. E então convida todo mundo para a festa no dia seguinte.
Sábado você acorda se sentindo bem, em seu melhor dia, com tudo em cima e muita grana no bolso. Antes de acabar de ler o Tratactus, de Wittgenstein, você subitamente compreende o sentido da vida.
À noite, sai com seu Bentley Continental GT e chega em uma mansão com mulheres deliciosas por todos os cantos. Bebe muito, ganha no poker, toca bateria na banda de seus amigos bluseiros e sobe com 3 mulheres que nunca transam na primeira noite, mas resolveram abrir uma exceção.
No domingo, você acorda sem ressaca e se lembra que é final do Brasileirão. Liga a TV de plasma e vê seu time ganhar de virada no último segundo.
Nesse cenário ideal, me responda: o que foi produzido pelo Bentley, pelas 3 mulheres, pelo dinheiro e pela vitória do seu time?
A verdadeira substância da vida
A vida não é feitas de seres, fenômenos, locais, fatos, situações e objetos. A vida é feita de experiências.
Tome um banheiro, por exemplo. É um local, mas nunca existe como local per se. Ele é sempre a experiência de olhar para um banheiro, entrar em um banheiro, medir suas dimensões ou apenas analisar cientificamente os átomos da parede de um banheiro. São diversas experiências sensoriais que surgem em nosso contato com o banheiro, mas nunca há “o banheiro” em si.
Com fatos, já aprendemos com Nietzsche que são interpretações, mas com objetos e seres é mais complicado. Ainda assim, é só abrir bem os olhos. Você já encontrou a si mesmo sem ser por meio da experiência de se olhar no espelho, pensar, sonhar ou ver que outros estão tendo a experiência de ver e falar com você? Tanto em você como nos outros, não há “a pessoa” em si, apenas as experiências construídas nas quais aparecemos como um elemento no mundo sensorial de alguém.
Por não ser auto-existente ou possuir uma essência imutável, uma mesma coisa pode produzir experiências positivas ou negativas. Uma mulher gostosa: se apaixonada por nós, causa felicidade; se nos trai ou abandona, causa sofrimento Um Bentley: quando o dirigimos, prazer; quando batemos ou somos roubados; dor de cabeça.
Ou pode aparecer de formas diferentes: uma mesma mulher pode ser chata ou simpática ao mesmo tempo para duas pessoas; pode ser mãe, sobrinha ou filha, chefe ou subordinada; pode ser um monstro para o ex enquanto é a oitava maravilha do mundo sob o olhar do novo namorado.
É por isso que todas as nossas características (aquelas que pensamos ser nossa essência), negativas ou positivas, são apenas formas de relação que estabelecemos com os outros, com objetos, locais, situações, com o mundo em geral. Nós também somos experiências.
Timidez, chatice, liderança… Processos de relação. Não faz sentido apontar o dedo e dizer: “Ele é chato”. Ora, certamente ele não é chato para, no mínimo, uma outra pessoa. Então a chatice não é uma propriedade enervurada no âmago do seu ser. Ao apontar um adjetivo no outro, revelamos o tipo de relação que foi co-construída por ambos, o modo como nascemos um ao olhar do outro, o tipo de experiência que estamos produzindo.
Como é produzida uma experiência?
Uma experiência é fruto do encontro entre sujeito e objeto. Mais precisamente, ela é produzida pelo acoplamento entre um corpo e um ambiente, um mundo particular, um umwelt. Esse conceito alemão serve para dizer que o mundo ao nosso redor surge de acordo com nossa configuração. Se fôssemos uma abelha, veríamos outras coisas, ou melhor, viveríamos em outro mundo.
Na verdade, é uma ilusão achar que somos vários seres andando em um mesmo mundo. Os biólogos Humberto Maturana e Francisco Varela costumam dizer que, quando um ser morre, um mundo inteiro morre junto. Cessam todas as experiências que esse ser tinha com as coisas; e seu mundo inteiro era só isso: a experiência que ele tinha com outros seres, objetos, locais e fenômenos.
O que realmente define a qualidade do que surge não é o objeto, mas o sujeito. Não são as pessoas vistas, os ambientes, os eventos, as situações externas, mas o olho que vê, o corpo que se relaciona e sente, a mente que pensa e cria sentido.
Se duvida da importância do corpo, experimente assistir ao show de sua banda favorita depois de 48h sem dormir. O show vai rolar lá longe, perfeito, mas você mal vai conseguir abrir os olhos, ou estará com dor de cabeça, ou estará com todos os sentidos comprometidos.
Para testar a hipótese da mente ser decisiva para a produção das experiências (note: não para a produção dos fenômenos), vá a uma festa sensacional num dia em que estiver mal, totalmente depressivo. A festa vai ser animal, mas você vai ter uma péssima experiência. Ou seja, no seu mundo não vai existir essa festa animal compartilhada subjetivamente por outros.
O que realmente buscamos?
Há algo ordinariamente comum entre um orgasmo numa lua de mel em Fernando de Noronha e um prêmio em Cannes após um trabalho que rendeu muita grana. Durante toda a nossa vida, buscamos experiências positivas de felicidade, energia intensa e estável, sentido na vida, brilho nos olhos, diversão e ludicidade, criatividade, leveza e prazer.
E evitamos experiências negativas de sofrimento, energia baixa e oscilante, confusão, falta de sentido, opacidade, tédio, torpor, peso e dor – algo presente quando somos despedidos, perdemos dinheiro, vivemos em um local desfavorável, somos abandonados por nossa mulher ou vemos nosso filho morrer.
Quando perdemos o emprego, o apartamento ou a namorada, não é o apego a essas coisas que nos aflige, deprime e cria sofrimento. É o apego às experiências positivas, ao fluir da energia que o emprego, o apartamento e a namorada proporcionavam. Tanto é que se logo arrumarmos uma namorada melhor, um trabalho que pague mais e um apê mais bem localizado, pronto, imediatamente esquecemos dos antigos, nos “desapegamos” sem hesitar.
Nossos vícios não são pessoas, locais ou objetos, mas experiências. Quem fuma sabe bem disso…
As experiências, portanto, são ancoradas e sustentadas por seres, fenômenos, locais, fatos, situações e objetos. Um perfume, por exemplo, ativa uma atmosfera que muitas vezes não conseguimos acessar do nada. Músicas, filmes, locais, pessoas e relacionamentos atuam como um suporte para estados corporais e configurações mentais que não conseguimos reproduzir, acessar, ativar e incorporar de outro modo.
É por isso que ouvimos Radiohead para aprofundar nossa angústia e AC/DC ou Dave Matthews Band para liberar melhor nossa alegria ou tesão de viver.
Radiohead – “How to disappear completely”
Não critico nada disso, a vida é justamente o processo de usar todos os meios hábeis para produzir experiências. O problema é sofrermos quando algo deixa de ancorar nossa felicidade, o que muitas vezes nos leva a causar experiências negativas para nós e para os outros.
Para escapar desse processo cíclico, é necessário abandonar a esperança de que nossa experiência de felicidade possa ser estabilizada por meio de seres, fenômenos, locais, fatos, situações e objetos. E ir direto ao que queremos: estabilizá-la diretamente.
Nenhum de nós foca no que realmente queremos: felicidade e energia estável, liberdade e capacidade criativa, destemor e generosidade, prazer e capacidade de brincar, sorrir pra tudo, repousar até mesmo no desconforto.
Quando vamos atrás de mulheres, orgasmos, álcool, carros, grana, poder, locais paradisíacos, retiros espirituais, alucinógenos, comidas, noitadas, reuniões de negócio, na verdade não estamos querendo nada disso. Queremos apenas estabilizar, por meio desses suportes, algum estado de felicidade, prazer, diversão, visão ampla, tesão, vida com sentido e leveza que já atingimos alguma vez ou que imaginamos ser possível. Só isso.
Felicidade condicionada = frustração
O lance é que não conseguimos atingir e sustentar tal estado positivo diretamente, então o colocamos sob condições, na esperança de aumentar a probabilidade disso tudo acontecer. Por exemplo, durante um jogo de futebol, você coloca sua felicidade na mão de um time, ou melhor, em um tipo de camisa, pois jogadores e técnicos mudam o tempo inteiro.
Então, considerando que as camisas são praticamente iguais, na verdade, você permite que estampas controlem o batimento do seu coração:
Link YouTube | Seinfeld: monólogo de abertura do episódio “The Label Maker”
“Loyalty to any one sports team is pretty hard to justify. Because the players are always changing, the team can move to another city, you’re actually rooting for the clothes when you get right down to it. You know what I mean, you are standing and cheering and yelling for your clothes to beat the clothes from another city. Fans will be so in love with a player but if he goes to another team, they boo him. This is the same human being in a different shirt, they hate him now. Boo! Different shirt!!! Boo.” –Jerry Seinfeld
E não só com times e estampas. Fazemos isso com pessoas, relacionamentos, trabalhos, cidades, apartamentos, empresas, situações…
Ora, se o que nos deixa bem são as experiências positivas, vamos aprender a produzi-las e sustentá-las mesmo na ausência de dinheiro e mulheres, mesmo durante a derrota de nosso time. É impossível estabilizar a chuva (controlar os movimentos das ações na Bolsa, de nossas mulheres ou dos jogadores no campo), mas podemos estabilizar aquilo que realmente define se a chuva vai nos causar uma experiência positiva ou negativa: nosso corpo e nossa mente.
Como produzir experiências positivas
Livros como O Segredo e filmes como What the Bleep Do We Know!? representam uma abordagem new age que acredita que podemos controlar os fenômenos, alterar os eventos e assim produzir felicidade. Se você enxerga felicidade em um carro, tenha um pensamento positivo e imagine você dirigindo um Bentley até que um Bentley apareça na sua frente…
Podemos facilmente evitar tal equívoco se, em vez de tentarmos produzir fenômenos, nos dedicarmos a alterar a qualidade de nossa experiência. Como diz Lama Padma Samten, mudamos a casa inteira sem precisar quebrar nenhuma parede.
Esse processo é ilustrado por uma metáfora bastante simples em um diálogo do filme A Copa (1999), do cineasta e mestre budista Dzongsar Khyentse Rinpoche:
Abade: É possível cobrir a Terra inteira de tecido para que fique suave em qualquer lugar que pisarmos?
Monge 1: Não.
Abade: Então o que fazemos?
Monge 2: Colocamos sandálias de tecido.
Link YouTube | Trecho do filme A Copa (The Cup / Phörpa)
Em vez de nos esforçamos na tarefa sempre frustrada de gerenciar todos os cantos de nosso mundo e acabar como um equilibrista de pratos, nos dedicamos a estabilizar apenas nosso corpo e nossa mente. Colocamos bons sapatos para andar nas regiões mais confusas sem sermos perturbados, aumentando nossa capacidade de beneficiar, ajudar e produzir experiências positivas em todos ao redor.
A origem de nossa liberdade
“Não importa o que acontece com você, mas o que você faz com o que acontece com você”. Já ouviram essa máxima existencialista? Na verdade, Sartre fala muito mais do que isso:
“Os piores inconvenientes ou as piores ameaças que prometem atingir minha pessoa só adquirem sentido pelo meu projeto […], é insensato pensar em queixar-se, pois nada alheio determinou aquilo que sentimos, vivemos ou somos.”
“Tal responsabilidade absoluta não é resignação: é simples reivindicação lógica das consequências de nossa liberdade. O que acontece comigo acontece por mim [através de mim, passando por mim], e eu não poderia me deixar afetar por isso, nem me revoltar, nem me resignar. […] Tudo o que acontece comigo é, de algum modo, meu.”
–Jean-Paul Sartre, em “O Ser e o Nada”
Assumir a responsabilidade por todas as nossas experiências é o mesmo que resgatar nossa liberdade, já que a servidão é justamente ser condicionado, ser refém, ser afetado, reagir passivamente a fatores externos. Se nos descobrimos como autores de nossas experiências, algo que Espinosa sugeriu muito antes de Sartre, imediatamente nos tornamos livres.
Afinal, tudo o que nos acontece passa pelo nosso corpo e pela nossa mente, não é mesmo?
Com um corpo desperto e uma mente estável, seremos capazes de gerar e sustentar experiências positivas, não importa onde, como, com quem ou quando. Não importa se dispomos de muitos ou poucos objetos, se as situações e eventos se configuram de um jeito ou de outro, se a vida anda bem ou mal ao nosso redor, pois as experiências positivas não dependem disso.
E então podemos entrar num Bentley Continental GT e levar 3 mulheres pra cama, sem problema algum, pois isso será expressão de uma experiência interna de felicidade, não mais sua causa.
Entretanto, não é preciso ser muito inteligente para sacar que a grana investida em um carro importado, para benefício de no máximo 5 pessoas, pode ser usada para produzir experiências positivas em muito mais gente. Já em relação às mulheres, bem, é realmente muito mais benéfico levar 3 do que apenas uma para testar na cama o quanto nossa energia é estável…
P.S.: A questão não abordada neste texto é como estabilizar corpo e mente, mas isso é pura incompetência do autor. Deixo para depois, quando eu tiver pelo menos alguma experiência nisso. 😉
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