Como saber a hora de abandonar um casamento? Até onde ceder?

Introdução: “Literatura prática”, nova coluna fixa do Alex Castro

Essa é a primeira coluna da série “Literatura prática”.

Ela foi inspirada na coluna Dear Sugar, mantida por Cheryl Strayed no site The Rumpus, recentemente coligida no livro Tiny Beautiful Things: Advice on Love and Life from Dear Sugar, de julho de 2012.

Esse livro foi uma das coisas mais importantes que já li na vida. Ele me derrubou e me levantou, me fez chorar e me fez rir. A Cheryl é minha deusa.

Entretanto, ao contrário do que sinto quando vejo alguém projetando um prédio ou operando um coração, eu pensei: “I can do it!” Isso é algo na minha esfera. É um trabalho duro e terrível e pesado, mas importante. Eu consigo.

Sou aquela pessoa que ouve longamente as histórias de estranhos no ônibus. As pessoas sempre me procuraram com seus problemas e dúvidas existenciais, talvez por saber que eu realmente ouviria com atenção e carinho. De certo modo, minha vida inteira me preparou para isso.

Coloquei em meu site um pedido por perguntas e, logo, me arrependi. Em menos de vinte e quatro horas, minha caixa de entrada já estava cheia de histórias dolorosas, lindas, insuportáveis, divinas.

Senti o peso do mundo nos ombros. Como se a decisão de manter essa coluna tivesse sido uma das mais importantes da minha vida. Como se a minha vida nunca mais pudesse ser a mesma depois de ler tantas confidências, partilhar tantos sentimentos, penetrar em tantas almas.

Comecei a andar pela casa e arrancar os cabelos, pensando que não tinha o que dizer, não tinha como ajudar, não tinha o que fazer. Ficou imediatamente, dolorosamente claro que eu não era a Cheryl. Só a Cheryl era a Cheryl. Eu não era nada. O que poderia fazer? Pedir desculpas pra todos e me esconder debaixo de uma pedra?

Mas eu era o Alex. E essas pessoas tinham mandado essas questões para mim sabendo que eu era o Alex. Então, meu trabalho não era incorporar a Cheryl, mas simplesmente ser, dentre todos os vários Alex possíveis, o Alex mais adequado, mais sensato, mais sensível para ajudar as pessoas que me procuraram.

Eu tinha que escolher ser a pessoa que teria sucesso nessa empreitada.

E escolhi.

Algumas frases selecionadas da Cheryl. Em inglês, foi mal.
Algumas frases selecionadas da Cheryl. Em inglês, foi mal.

De onde veio o nome dessa coluna

É importante sempre lembrar quem sou e minhas limitações pessoais.

O PapodeHomem já tem duas colunas de perguntas-e-respostas, a Id, escrita uma por um psicólogo clínico (o incrível Fred Mattos) e a WTF, por um filósofo budista (o amplo Eduardo Pinheiro, também conhecido como Padma Dorje). Ao lado desses dois, o que posso eu oferecer?

Não sou psicólogo, terapeuta, nada disso. Não tenho especialização em nada remotamente útil. Sou um romancista cujo pouco treinamento formal é em crítica literária. Sei inventar pessoas que não existem, e sei arrancar significado de um texto. E só.

Por outro lado, existe uma simbiose muito grande entre crítica literária e o método freudiano. Não é à toa que se estuda Freud em teoria literária: a psicanálise é, entre outras coisas, um método de crítica literária aplicada.

Já disseram que existem três tipos de escritores: os que escrevem com base em experiência, em criatividade ou em empatia. Sou do terceiro tipo: não vivi nada e não tenho imaginação nenhuma, mas sou um vampirinho por histórias. Ouço, ouço, ouço.

Não me arrogo em terapeuta. Sou um escritor, minha ferramenta é a literatura (aliás, como a Cheryl) e é só a partir desse lugar que eu falo.

Mas falo a partir desse lugar pois sei que um escritor, com treino formal em encontrar os significados atrás das palavras, que passou a vida inteira ouvindo atentamente os outros, cuja maior ambição sempre foi refinar ao máximo sua empatia e sua capacidade de entrar dentro das pessoas, bem… esse indivíduo tem uma contribuição a dar.

Se não achasse isso, não estaria aqui.

Literatura pode ser prática.

Mande suas histórias se quiser explorar essas possibilidades junto comigo.

Psicólogo: não sou.
Psicólogo: não sou.

As limitações dessa coluna

Agora, no início desse caminho que promete ser árduo, cabe estabelecer para mim mesmo algumas limitações e princípios.

Em primeiro lugar, não tenho como realmente salvar ninguém.

Especialmente de si mesmo. As pessoas se salvam sozinhas ou não se salvam. Podemos dar apoio, conselho, força, mas existe um limite bem claro. Sem ter noção dele, pode-se enlouquecer tentando salvar os outros.

Cresci em frente a uma praia de ondas revoltas e passei a infância inteira dentro d’água. Vi alguns dos melhores nadadores que conheci, garotos que eram quase anfíbios como eu, se afogarem tentando salvar um interiorano desesperado. Sem um distanciamento mínimo, sem uma reserva básica de autopreservação, é muito fácil afundar junto.

Em segundo lugar, lembrar sempre da “lei dos conselhos”, que articulei em um velho texto:

Lei dos conselhos (ou “acho que você deve mandar seu chefe tomar no cu”):
A contundência de um conselho é inversamente proporcional às consequências práticas que recairão sobre o aconselhador.

De longe, de fora, do outro lado de uma confortável tela de computador, é sempre muito fácil falar qualquer coisa. As minhas palavras, para mim, não tem consequência alguma. Isso tudo aqui poderia ser um exercício de escrita criativa.

Então, é importante lembrar que não. Que as situações são reais e que as palavras têm impacto na vida. Sempre.

Por fim, em terceiro lugar, minha tarefa não é validar ninguém.

As pessoas que buscam conselhos normalmente não querem mudar: querem permanecer as mesmas e que você as faça se sentir bem. Evitar mudança é a prioridade número um do narcissismo  — e, em uma sociedade como a nossa, sinto dizer, somos todos narcissistas. Clicamos em todas as campanhas fofas e só comemos ovos orgânicos free-range, mas não ajudamos a mãe a lavar a louça. Todos queremos mudar o mundo, ninguém quer mudar a si mesmo.

As histórias que recebo não buscam uma solução: pelo contrário, a própria articulação do problema já traz sempre em si a solução desejada. O que querem é validação: “Alex, deixa eu abandonar minha esposa?”, “Alex, eu não sou calhorda por cortar relações com minha mãe, sou?”, etc.

Mas essa validação eu não posso dar. Não é meu papel. Não tenho o contexto necessário. E, mesmo se tivesse, mesmo se conseguisse entender a situação em toda sua complexidade, ainda assim não seria desejável.

Só tenho contato com as palavras dos leitores, e são elas que vou interpelar, são com elas que vou lidar; e não com a situação em si, a qual não tenho nem nunca terei acesso. Meu raciocínio sempre vai ser algo na linha de não “por que ele fez isso?” mas sim “por que ele escolheu compartilhar esse detalhe e não outro?”

Estou aqui para ouvir, entender e aceitar. Para exercitar minha empatia da melhor maneira possível. Para redizer em outras palavras as coisas que me foram ditas. Para ajudar as pessoas a se darem conta das decisões que elas mesmas já tomaram. Para tentar lhes mostrar opções que talvez não estejam enxergando.

Se quer participar, mande sua mensagem. Você não precisa dar seu nome nem email verdadeiros. Tente fornecer o máximo de contexto possível. Releia para ver se está fazendo sentido. Infelizmente, não posso garantir que sua mensagem vai aparecer na coluna. E muito obrigado pela confiança.

Múltipla escolha

Literatura prática #1: A escolha do piloto de porta-aviões

Como saber a hora de abandonar um casamento? Até onde ceder?

A história:

“Como se faz para acabar um casamento?
Há momentos em que o cidadão se sente, como diz o Jeff Buckley, “too young to hold on and too old to just break free and run”. Nem dá pra segurar a onda, nem dá pra sair correndo e gritar adeus de longe.
Às vezes é o sentimento de que sozinho a vida seria melhor em algumas questões (como nunca mais ter que lidar com questões de decoração). Às vezes é o desejo de mudar, de fazer diferente. De não desejar ter um carro no futuro, e nunca mais pensar sobre isso, ou nunca mais pensar sobre comprar um apartamento, e ao invés de pensar num apartamento maior, dar vazão ao desejo de morar em um conjugado em Copacabana e empilhar meus LPs no chão mesmo, só pra não ter que gastar com móvel. Às vezes é só o desejo de não precisar mais checar com ninguém se vou ou não sair hoje, ensaiar até as 3h, ir pra noite atrás de buceta, viajar no fim de semana e ficar num hostel, albergue ou sofá e não necessariamente num hotel, porque “não temos mais idade pra passar perrengue”.
Rolam uns outros desencontros da vida, umas grosserias minhas por ego inflado aqui e acolá, mas ouvindo o Buckley e lendo o teu texto sobre as revistas femininas e o “ser ou não ser você mesmo”, não consigo fechar os olhos sem pensar que talvez não esteja sendo tão honesto comigo mesmo e com ela. Ou talvez seja a dor da convivência, querendo levar a gente pra outro nível de relação.
Não falta amor, sabe? É que às vezes sobra egoísmo: até onde vale ceder por um casamento?
Sempre fico com receio de passar a imagem de que minha mulher é uma FILHA DA PUTA, o que passa muito longe mesmo de ser. É só que o tempo de relacionamento está fazendo as diferenças ficarem mais e mais ressaltadas.
Ela adora mexer na casa, pensar viagens e quer ter filhos e, por conseguinte, um carro… Eu adoro a casa do jeito que está, basta estar relativamente arrumada, não costumo pensar em viagens, compro a passagem e vou, e desisti de ter filhos (quero meu dinheiro pra mim) e não quero sequer pensar em ter um carro na zona sul do RJ.
Somos diferentes. Algumas dessas diferenças fazem da gente mais bem-humorados. Como o jeito que ela separa a clara da gema quando vai fazer omelete. Aliás, ela faz omelete só com gema, outra peculiaridade. Pois ela quebra o ovo em uma mão e abre os dedos só um pouco, o suficiente pra clara ir escorrendo por entre os dedos, mas não abertos o suficiente pra gema cair, e fica balançando a mão de leve, com carinho, com atenção, até a clara toda ir descendo, e ainda fica com a outra mão embaixo, alerta — para pegar a gema, caso ela escorregue. Segundo ela, só assim a gema fica inteirinha, perfeita, e você pode fazer a omelete sem nenhuma clara. Não é doentio como um TOC, ela não deixa de comer se for preparado de outro jeito, mas se puder, ela prefere que seja feito assim, existe uma lógica. Saca?
Tenho uma amiga que vive pelo “juicy life”. Comprou um apartamento em Belo Horizonte mas não vive aqui há muitos meses. Já rodou EUA (e fez – ou iniciou os trabalhos – de um pornô alternativo), África, Europa… Vive de comprar passagem e ir pra onde dá vontade, pra onde tem mulheres bonitas e afins.
Não é essa a vida que eu quero, porque tenho raízes demais, sempre. A vinda do sul pro Rio foi para cortar as raízes de lá e fazer crescer outras aqui. Minha amiga não tem sequer rastro disso.
Porém, é a vida que eu queria. Virar a noite. Viajar sem planos. Acordar cedo nos sábados e não ter pela frente uma visita a muitas lojas de móveis atrás da pia de cozinha perfeita…
Há uma necessidade tremenda em CEDER, é o verbo mais praticado num casamento. Ela também CEDE muito, por óbvio. Já passamos pelo vale do término algumas vezes, sem nunca de fato adentrá-lo.
Isso tudo sem ignorar o amor. Não é costume, é amor. É acordar feliz ao lado. É ficar feliz de enfim chegar em casa. É amar até de madrugada. É ver o dia nascer juntos. É o amor, presente e vivo…”

Um dia normal no rio Mississippi.
Um dia normal no rio Mississippi.

“Faça como Jeff Buckley…”

Morei por seis anos em Nova Orleans, a poucos quarteirões do Rio Mississippi. Nenhum rio que eu conheça no Brasil é tão economicamente ativo quanto o Mississippi. É mais uma engarrafada e úmida autoestrada para enormes caminhões de carga flutuantes do que um rio no sentido natural e bucólico da palavra. Nadar nele é proibidíssimo em quase toda sua extensão. Basta ficar parado em suas margens por cinco minutos para entender o porquê.

Uma noite, Jeff Buckley decidiu dar uma nadada no Mississippi, sem tirar as roupas nem as botas, cantando a plenos pulmões. Seu corpo foi encontrado uma semana depois. Aparentemente, não foi suicídio. Não havia álcool nem drogas no seu organismo.

Por tudo o que sabemos, morreu por acidente. Ou por inconsequência, você escolhe. Quem sabe quais pulsões autodestrutivas podem fazer um homem no auge da carreira decidir nadar à noite, completamente vestido, no Mississippi?

O eu-que-quer-ficar e o eu-que-quer-ir

Sua carta parece ser alternadamente narrada por duas personas: o eu-que-quer-ficar e o eu-que-quer-ir.

O último está claramente no controle, e escreveu a carta em uma desesperada tentativa de validação:

“Alex, deixa eu ir? Posso ir? Você abençoa minha fuga? Eu não sou escroto por querer ir, sou? Eu não sou covarde por ir, sou?”

Mas, latente sob cada linha, o eu-que-quer-ficar faz questão de sabotar esses pedidos, essas justificativas, essas racionalizações:

“Ah, mas minha vida é tão boa, eu amo tanto minha esposa, não faz sentido ir embora…”

Quando você fala do Buckley, essa tensão salta aos olhos. Por um lado, o eu-que-quer-ir está se justificando:

“Está vendo? Não dá, não dá! Tenho que pegar a estrada!”

Mas, por outro, o eu-que-quer-ficar está insinuando:

“Bem, o Buckley foi… e sabemos como ele acabou, não?”

O eu-que-quer-ficar, cuja voz está abafada pelo travesseiro que lhe puseram na cara, está casado e relativamente contente. Ele acorda feliz ao lado da esposa e fica feliz ao chegar em casa. Apesar de todas as suas reservas e reclamações, ele vai sim escolher a pia de cozinha perfeita no sábado à tarde ao lado dela e sabe exatamente como ela separa a gema.

Leia também  Como usar quadrinhos para falar sobre gênero e masculinidades

Já o eu-que-quer-ir está ansioso e inquieto. Ele sonha poder sair de casa sem dar satisfação a ninguém e empilhar os LPs no chão. Ele tem inveja do seu eu-alternativo que poderia estar vivendo a vida boêmia dos seus sonhos.

A tensão entre os dois narradores se revela também nas suas menções à mítica amiga globetrotter. Depois de um resumo de sua interessante vida pelo mundo — aliás, por que mencionar o pornô? —, você escreve:

“Não é essa a vida que eu quero”.

E, logo após, enfatiza suas raízes; aliás, “raízes demais, sempre”, raízes que você aparentemente gosta e valoriza. Ponto para o eu-que-quer-ficar, fazendo ouvir sua voz em alto e bom som através do travesseiro.

Mas já o parágrafo posterior começa com uma frase radicalmente oposta:

“Porém, é a vida que eu queria”.

Ou seja, o eu-que-quer-ir rapidamente enfiou uma meia na boca do eu-que-quer-ficar.

Afinal, essa é a vida que você quer ou é a vida que você não quer?

A contradição é tão nítida, tão óbvia (e tão próxima no texto!) que fiquei pensando que talvez você tivesse feito de propósito. Por efeito. Por estilo. Mas depois concluí que não.

Que você está simplesmente tão dividido quanto todos nós.

A escolha do piloto de porta-aviões

Pois quem não poderia se dividir em dois? Quem não é, ao mesmo tempo, o dentista entediado e o artista que poderia ter sido? Ou o artista pobretão e o dentista que poderia ter sido?

Conheço muitos dentistas (e contadores e bancários e etc) que adoram fantasiar sobre a vida livre e interessante que levariam se tivessem mergulhado de cabeça nas artes plásticas (ou na poesia ou no teatro ou etc).

Mas é importantíssimo mencionar que todos os artistas plásticos (e atores e poetas e etc) que conheço também fantasiam sobre a vida segura e confortável que levariam se tivessem mergulhado de cabeça na odontologia (ou na contabilidade ou nas ciências atuariais ou etc).

De fato, alguns dentistas teriam sido excelentes poetas. De fato, alguns poetas talvez devessem ter se dedicado à odontologia. Mas quais? Essa é a questão. Questão que não tenho como responder. Cada escolha de vida tem delícias e custos que só conhece quem as escolheu.

Escolhi a vida de artista. Tenho 38 anos e nunca me assinaram uma carteira. Não tenho economias nem filhos, e vivo uma vida incerta. Mas tenho liberdade e tempo livre para criar. Todo dia, comparo minha vida a dos amigos que desfizeram a banda da pós-adolescência e se dedicaram à estatística: eu não trocaria minha vida pelas deles mas, talvez mais importante para essa conversa, eles também não trocariam suas vidas pela minha.

Meu pai largou uma carreira de tenista profissional e foi ser economista. Ficou rico e me criou com todas as vantagens inerentes ao excesso de dinheiro. Um dia, eu estava comentando que o Brasil era um de cinco países do mundo a fazer pousos noturnos em porta-aviões e ele imediatamente tascou:

“São uns egoístas, esses pilotos.”

Eu não entendi nada e ele disse:

“Um piloto capaz de pousar um caça supersônico num porta-aviões à noite pode fazer qualquer coisa com um avião. Qualquer coisa. Ao escolher ser capitão da Aviação Naval, ganhando um salário de três mil reais, ao invés de aceitar um emprego de comandante de Boeing na aviação privada, o que esse cara está dizendo é: meu prazer, pessoal e egoísta, de ser uma das poucas pessoas do mundo que pousam caças supersônicos à noite num porta-aviões é mais importante do que colocar aparelho na boca dos meus filhos ou lhes pagar uma boa escola particular ou talvez lhes deixar um apartamento de herança quando morrer.”

Naturalmente, como todos que abrem a boca para falar dos outros, meu pai estava falando muito mais sobre suas próprias escolhas do que sobre os pilotos da Marinha sobre os quais não sabia nada. Não é preciso concordar com ele (deus sabe que discordo de quase tudo) para ver o valor da comparação.

Sempre que alguém fala idilicamente e idealmente da escolha pelo teatro experimental e pela arte contemporânea (muitas vezes, esse alguém sou eu mesmo), ouço a voz do meu pai interpelando:

“E quem foi que ficou sem aparelho no dente por causa dessa escolha?”

Um pouso noturno em um porta-aviões. USS Enterprise, janeiro de 2004.
Um pouso noturno em um porta-aviões. USS Enterprise, janeiro de 2004.

O que define o amor?

Uma vez, comentei com um amigo sobre as dificuldades do meu tumultuado então namoro de cinco anos. Que tanto eu quanto ela já tínhamos tentado nos separar diversas vezes, mas que ainda estávamos juntos apesar de tudo, porque o amor e o tesão eram grandes demais.

Meu amigo, com uma terrível cara de superioridade, fez questão de apontar que estava com a mesma mulher há quatro anos e nunca, nem uma única vez, tinha cogitado a possibilidade de ir embora, de encerrar o relacionamento, de não estar com ela. E deu a entender que eu e minha namorada provavelmente não nos amávamos de verdade.

E eu — o que mais poderia fazer? — lhe dei os sinceros parabéns, com carinho e sem ironia.

Porém, cada um ama como pode. Não consigo me ver em nenhuma situação em que eu não imagine como seria não estar nela. Imagino até como seria se o mundo fosse acabar semana que vem, o que faria se me transformasse em mulher, pra onde correria se houvesse um tsunami. Minha imaginação não pára.

Se o simples fato de olhar para o meu atual relacionamento e pensar, “porra, o que é que estou fazendo aqui?”, significasse desamor, então eu sou incapaz de amar qualquer pessoa.

Assim, caímos no que talvez seja a questão central da história: o que é o amor? O que é o des-amor?

Acho que a chave do problema está nas repetidas vezes em que você enfatiza seu amor pela esposa.

A primeira coisa que me fez eriçar as sobrancelhas foi quando, de repente, fora do nada, você diz ter medo de passar a ideia de que sua mulher é uma FILHA DA PUTA — assim mesmo, em maiúsculas!

Aquilo foi uma surpresa total. Pois em nenhum momento você fala da mulher como uma filha da puta. Nunca chega nem perto disso. Tudo o que fala dela é sempre com muito amor. O amor transpira pelas entrelinhas para todo mundo ver. E, ainda assim, você repete a cada parágrafo que a ama muito, que ela é legal, que não falta amor — como se achasse mesmo que, sem esses avisos, poderíamos pensar essas coisas.

Existem mil maneiras tensas, irritadas, exasperadas, jocosas, críticas de descrever o modo como ela separa a gema da clara — mas a sua descrição, tão singela e carinhosa, só poderia ter sido escrita por um homem sensível, apaixonado e observador. E, ainda assim, você se esforça pra qualificar a descrição, ressaltar que ela não tem TOC, enfatizar que ela comeria omelete de outro jeito.

Do que você tem tanto medo?

A única explicação é que você sinceramente acha que tudo o que está escrevendo são coisas que só escreveria um homem que

1. não amasse a mulher (mas você ama muito!) ou

2. estivesse casado com uma FILHA DA PUTA (mas ela é muito legal!).

Ignorando a segunda hipótese, fica a dúvida: na SUA cabeça, o que foi que você disse que poderia indicar que não ama a esposa?

Será que é o fato de você pensar tanto em ir embora?

Para você, parece que o simples fato de sentir vontade de ir embora já significa que não ama a esposa, ou que não existe amor no casamento, e, daí, sua insistência em reiterar que sim, vocês se amam.

Mas não precisa. O amor está claro.

Meu único conselho prático: fale com ela

É normal termos dentro de nós o instinto de ir e de ficar. De ceder e de ousar. De bater e de abaixar a cabeça. Tudo ao mesmo tempo.

Você ter os seus momentos de querer pegar a estrada e viver como sua amiga nômade não quer dizer que não ame sua esposa. Assim como a sua vontade de ficar com sua esposa e valorizar suas raízes não quer dizer que não deva largar tudo e pegar a estrada.

A vida é uma só. E normal e humano e aceitável escolhermos um caminho e, depois, devanearmos sobre como teria sido seguir os outros caminhos.

Não tenho como escolher seu caminho por você, mas queria apontar que, seja indo seja ficando, e contrário ao seu receio, você ama sim sua esposa.

Por um lado, nada te impede de largar uma mulher que você de fato ama em prol de pegar a estrada, mas, por outro, nada também te impede de ficar a vida toda com a mulher que você de fato ama, apesar do forte chamado da estrada.

Por tudo isso, meu único conselho, concreto e prático, é: converse com ela.

Ela sabe tudo isso que me contou? Sabe do seu desespero com a ideia de ter filho ou carro? Sabe da sua necessidade de liberdade?

Mas entenda: não existe essa felicidade plena de livro de auto-ajuda. Enquanto você fica, tem uma vozinha na sua cabeça que te manda ir. Quando você vai, a vozinha te relembra as delícias de ficar.

A vida é um eterno trocar de uma vozinha por outra.

"Fale com ela", aliás, um puta filme que eu recomendo.
“Fale com ela”, aliás, um puta filme que eu recomendo.

Espaços de solteiro

Eu já fui casado e já fui solteiro. Todos temos necessidade de ambas as coisas.

O melhor de ser casado é que, dentro de um casamento, você pode criar espaços para ser solteiro. Quando se é solteiro, é impossível criar “espaços de casado”.

Então, se sua esposa quer procurar pela pia de cozinha perfeita no sábado de manhã e você não… Hmmm… Qual é exatamente o problema? Se pra você não faz diferença qual mesa ela compra, por que simplesmente não ir? Se ela gosta de bater perna e escolher móvel, por que não fazer isso com uma amiga que também goste de decoração?

Se um cônjuge gosta de Caetano Veloso e o outro não… Por que um deles teria que ir a um show que não gosta? Por que um deles teria que abdicar de ir a um show que gosta?

Não faz mais sentido o que gosta de Caetano ir ao show com um amigo que gosta de Caetano? E o que não gosta de Caetano aproveitar para ter uma noite livre — ou, quem sabe, fazer alguma outra coisa que o outro não gosta junto com amigos que gostam disso? Não é lindo que AMBOS tenham uma noite divertida? Todo mundo ganha.

Na mesma linha, se você tem necessidade de sair, de pegar a estrada, de ficar em albergues… Por que não ir? Por que não tirar uma semana livre para fazer o que gosta? E por que ela não aproveita essa semana pra curtir e arrumar a própria casa? Comprar mesa e escolher cortinas? Será que pra amar o cônjuge é preciso estar junto 52 semanas por ano? Amor é isso?

Minha esposa gostava de acampar. Eu não. Ela ia acampar na Ilha Grande. Eu não.

É tão difícil assim?

Essa expectativa insensata de que um casal tem que fazer TUDO junto já sufocou muitos relacionamentos.

Às vezes, basta que cada cônjuge tenha amigos próprios com quem sair para esvaziar essa pressão. Amigos impedem que um cônjuge despeje toda sua intimidade, toda sua carência, todas suas necessidades sobre o outro. Amigos são com quem criamos os “espaços de solteiro” que todos precisamos.

É uma coisa a se conversar. Mais uma.

A terceira escolha: mudar

Se uma situação é incômoda, você pode mudar a situação — mas também pode mudar a si mesmo e se transformar em uma pessoa a quem aquela situação não incomodaria.

Então, sim, você tem a escolha de ficar no casamento, e sonhar com a estrada. Sim, você tem a escolha de pegar a estrada, e sonhar com a vida doméstica.

Essas duas escolhas são relativamente fáceis: nelas, você é sempre a constante e todo o resto, variável.

Mas e se você se colocar como uma variável também? E se a terceira escolha, raramente mencionada, for você simplesmente… mudar?

E se a terceira escolha for você se tornar um outro tipo de marido? Um marido que conversa com a esposa sobre suas dúvidas, seus desejos, suas inseguranças? Um marido que construiu um outro tipo de amor, um outro tipo de relacionamento? Um marido que aprendeu a gostar da vida que tem? Um marido que perdeu o tesão pela estrada?

Ou, naturalmente, vice-versa: a escolha pode ser você se tornar um homem que não tem vocação para marido e nem saco para raízes, que vai sair pelo mundo sendo câmera dos filmes pornôs da sua amiga, sem nunca pensar nos amores que deixou para trás no Rio de Janeiro. Por que não?

Mudar talvez seja impossível. Ou intolerável. É sempre muito difícil. Mas deveria ser pelo menos articulado como uma das opções, não?

Antes de qualquer coisa, entretanto, fale com ela.

"Mude", poema foda do Edson Marques, muitas vezes atribuído à pobre Clarice Lispector, que nunca escreveu poemas.
“Mude”, poema foda do Edson Marques, muitas vezes atribuído à pobre Clarice Lispector, que nunca escreveu poemas.

* * *

Quer ver sua história aqui? Envie um email pra mim. Você não precisa dar seu nome nem email verdadeiros. Tente fornecer o máximo de contexto possível. Releia para ver se está fazendo sentido. Infelizmente, não posso garantir que sua mensagem vai aparecer na coluna. E muito obrigado pela confiança.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu