A maioria de nós sente falta de espaços seguros em nossas vidas.

Quem consegue falar livremente ou se sentir verdadeiramente acolhida em seu ambiente de trabalho ou templo religioso, clube ou vizinhança?

Até mesmo a família, teoricamente a célula fundamental da sociedade, quase nunca é um espaço seguro para sairmos dos nossos muitos armários e nos revelarmos não-monogâmicas ou ateias, anarquistas ou assexuadas, ou quaisquer outras quebras dos scripts socialmente aceitos.

Então, frustradas e carentes, escaldadas e ansiosas, saímos em busca dos tais espaços seguros.

O 12º Exercício de Atenção é uma proposta para que sejamos nós mesmas, em um ato de criação e de cuidado, esse espaço seguro que tanto buscamos.

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Assim como não existe "autoconhecimento" — pois o que há para ser descoberto em nós é o lixo dos séculos posto aí por nossa sociedade outrofóbica — e sim a autoconstrução de praticarmos ser quem decidimos nos construir para ser, igualmente "espaço seguro" não é algo que encontramos pronto por aí, e sim algo que criamos diariamente na nossa prática.

Assim como não estamos presas no trânsito e sim somos o trânsito, não existe espaço seguro para mim sem que eu esteja ali dentro ativamente criando e construindo, garantindo e praticando, a tal segurança que almejo que exista nessa espaço.

O espaço seguro sou eu.

O espaço seguro é a bolha de Cuidado que carrego à minha volta e na qual posso escolher envolver as pessoas que me procuram, que falam para mim, que interagem comigo.

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Em um dos encontros "As Prisões", uma moça que tinha acabado de contar sobre a pressão violenta que sofria da família para ter bebê ("é como se todo dia houvesse um teste que eu nunca passo!") de repente começou a chorar.

Pensamos que estava chorando por si mesma, mas não: tinha acabado de se dar conta que ela, a família, as amigas, faziam a mesma coisa com seu irmão caçula, que namorava uma moça há catorze anos e "ainda" não tinha casado.

As mesmas perguntas incessantes, a mesma cobrança constante, a mesma zoação bem-humorada. O mesmo inferno.

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Sim, muitas vezes, de fato, as famílias não são espaços seguros para nós.

Mas somos nós um espaço seguro para nossas famílias?

No primeiro Exercício de Atenção, do Olhar Generoso, proponho falarmos um pouco sobre alguém que conhecemos bem, mas sem criticar a pessoa e sem falarmos de nós mesmas.

Parece fácil, mas como falar da minha mãe sem dizer que ela é minha mãe?

Quando não estou perto dela sendo seu filho… quem é a minha mãe?

Será que minhas familiares, minha mãe ou minha irmã, minha sobrinha ou minha madrinha, sentem que eu sou um espaço seguro para que dispam esses rótulos e exponham suas vulnerabilidades?

Se eu não sou um espaço seguro para elas, que direito tenho de esperar ou exigir que sejam esse espaço seguro para mim?

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Uma moça, veterana de vários encontros "As Prisões", trazia sempre a mesma questão: precisava sustentar, além de si mesma e da filha, seu pai, sua mãe e seu irmão, todos inválidos.

Lia meus textos, praticava Atenção e Cuidado, queria ser voluntária em um centro para pessoas em situação vulnerável, mas não conseguia porque trabalhava sempre no limite de suas forças e nunca lhe sobrava nenhum dinheiro, nenhum tempo, nenhuma energia para si mesma e para seus outros projetos.

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Sentia-se presa e limitada, tolhida e sugada, e dizia:

"Eu poderia estar aí, no mundo, ajudando as pessoas, se não estivesse aqui…."

E caiu a ficha:

"… ajudando essas pessoas."

Hoje, ela continua se sentindo oprimida e limitada por sua situação familiar (pois é realmente uma situação opressora e limitante) mas já ressignificou sua própria narrativa: criar sua filha e sustentar seus familiares inválidos é a maneira através da qual, na medida do possível, na atual conjuntura, ela está mudando, melhorando, agindo no mundo.

Porque mudar o mundo é fácil: difícil é lavar a louça da nossa própria casa.

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Não podemos nunca deixar de nos importar com as opiniões das outras pessoas, mas podemos escolher com quais pessoas vamos nos importar: cabe a cada uma de nós decidir quem estará em nosso círculo íntimo. (Esse é o tema da Prisão Autossuficiência.)

O 12º Exercício de Atenção é sermos, na nossa prática diária, para as pessoas à nossa volta (não necessariamente nossa família), o espaço seguro que queremos que exista no mundo.

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Outras leituras relacionadas

Sobre autodescobrimento versus autoconstrução: Prisão Eu.

Sobre desconstruir o lixo dos séculos dentro de nós: Prisão Verdade.

Sobre escolher nosso círculo próximo: Prisão Autossuficiência.

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Mudança de nome: de Empatia para Atenção

A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.

Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.

Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.

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Os encontros "As Prisões"

São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?

O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência,  Patriotismo, e a maior de todas, Eu.

Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.

Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.

Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.

Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.

Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.

Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu