Dentro ou fora da internet, todos nós já percebemos que tem existido uma polaridade muito grande entre pessoas e grupos. Tudo vem se convertendo em uma cruzada moral ou política. Cada grupo assume uma bandeira, um ideal inegociável, e acusa os demais grupos de serem responsáveis por todos os tipos de injustiças. No meio dessas disputas acaba sobrando pouco espaço para o diálogo, e é aí que perdemos de forma coletiva e individual.
No âmbito coletivo somos prejudicados pela impossibilidade de um debate saudável, pré-requisito de toda e qualquer democracia. Os grupos não se escutam e tudo passa a ser uma disputa de torcidas. Isso produz reflexos sobre os indivíduos que ficam com medo de explicitarem qualquer posicionamento que pareça polêmico, acovardados diante de um espaço público hostil a todos que pensem minimamente diferente. Não estamos estabelecendo trocas saudáveis necessárias para o crescimento pessoal. No máximo, conversamos com quem pensa parecido conosco e gritamos contra quem pense diferente.
Só para deixar claro como esse nosso comportamento polarizado tem nos tornado ridículos, vamos pensar no conjunto de informações falsas que temos compartilhado na internet só para tentar comprovar que estamos certos, a todo custo. Isso tem ocorrido tanto que a Universidade de Oxford elegeu o termo "pós-verdade" como a expressão representante do ano de 2016. O sentido da expressão é justamente esse que acabei de comentar: não importa a verdade, o que importa é que tudo esteja de acordo com minhas crenças pessoais.
Não existe condição em que não seja possível algum tipo de diálogo entre os dois pólos em oposição. O que acaba afastando os dois (eu e meu suposto inimigo) é um mecanismo psicológico tão velho quanto a consciência que dentro da psicologia chamamos de projeção.
Tem sempre alguma característica nossa que não conseguimos aceitar muito bem. Algumas delas podem ser tão desagradáveis a nós mesmos, que preferimos não percebê-las como partes de nossas personalidades. Por isso projetamos essas características em outras pessoas, passamos a identificá-las como algo que não é nosso e, assim, passamos a acusá-las em todo mundo, menos em nós mesmos.
Digamos que tenho uma tendência a ser intransigente e autoritário. Não aceito bem essas minhas características (aliás, alguém aceitaria, com facilidade, que é assim?). Por conta disso, tenho uma dificuldade imensa em debater qualquer assunto. Sou capaz de transformar uma conversa banal em uma disputa para saber quem está certo e quem está errado. Minha percepção é tão limitada que acabo entendendo qualquer posicionamento que fuja um pouquinho do meu como uma afronta. Logo, tenho a impressão de que todos são autoritários e tentam me obrigar a pensar como eles, quando, na verdade, eu também carrego uma boa dose de intransigência dentro de mim.
Como fazer?
Sei que é possível imaginar uma lista de pessoas que agem assim. Como dizem por aí… "o dedo de marcar chega a tremer". O problema é exatamente esse: não é para apontar para o outro, é para olhar para si. Não queremos ser pessoas melhores? Esse é um bom momento.
A questão é que, como tudo no mundo, temos que iniciar em algum lugar. Podemos começar com duas práticas interessantes, de simples execução, mas que pedem um exercício profundo de alteridade.
O primeiro ponto é sempre nos perguntarmos por que aquela pessoa e aquele posicionamento é capaz de nos incomodar tanto. Tudo que nos incomoda muito fala de algo interno a nós mesmos, alguma questão mal resolvida que precisa de maior atenção.
Uma boa parte de nós já deve ter sonhado algum dia que estávamos em uma situação em que tínhamos que concordar com alguém que não somos capazes de suportar no dia a dia ou, pior, que precisávamos da ajuda desse outro tão odiado. Esse tipo de sonho é uma tentativa de reequilibrar essa visão muito unilateral sobre a realidade. Mostra que ninguém é tão bom ou tão mau, e que uma ideia que não é capaz de suportar nenhum tipo de questionamento nunca conseguirá ser verdadeiramente abrangente. Aquilo que me irrita muito no outro possui algum tipo de reflexo dentro de mim. É muito importante reconhecê-lo e não deixar se dominar.
A outra prática é tentar estabelecer uma constante ponte com o pensamento do outro. Devemos praticar a empatia e tentar, minimamente, entender quais são os motivos que levam a pensar da forma que ele pensa. Quem sabe ele não precisa de ajuda para observar além do que está habituado?
Existe um abismo entre o nós, um abismo em nossas linguagens. Isso piora quando estamos em um ambiente virtual, que acaba nos privando de todo um conjunto de expressões faciais, tons de voz e outros contextos para o diálogo, abrindo muito espaço para mal-entendidos. É uma regra básica de negociação: certifique-se de que você e o seu debatedor realmente entendem um ao outro. Não iremos muito longe se não conseguimos entender, pelo menos um pouco, os motivos que levam o outro a pensar como pensa. O intuito não pode ser derrotar o outro, mas ampliar as possibilidades de análise sobre o tema para ambos.
No fim das contas, o que nos protege dessa mania de projetar tudo que temos de ruim nos outros é uma constante auto-análise. Saber aquilo que nos motiva, conhecer nossos piores ângulos, compreender nossas maiores fragilidades… um projeto para a vida toda.
Nada fácil. Mas vamos tentar fazer juntos?
Te vejo nos comentários!
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Nota do editor: juntamos uma série de práticas que têm beneficiado nossa comunidade há anos na busca de uma vida mais lúcida e as transformamos em nove textos. O percurso foi chamado de 9 práticas para 2017 doer menos, e o exercício que acabou de ler faz parte dele.
Ficou interessado em praticar os outros? Abaixo listamos todos, para facilitar a busca. Agora, mãos à massa. 😉
1. Pequeno manual para sobreviver ao Natal e ano novo com a família
2. Como parar de divulgar e ser enganado por notícias falsas
3. Como tornar seus debates mais produtivos
4. Respire antes de comentar na internet
5. Não deseje mais sexo nesse reveillón
7. A gente consegue sim melhorar nossa relação com a comida
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