O 15º Exercício de Atenção consiste em cultivarmos um saudável ceticismo em relação às nossas próprias certezas. Somente quando habitamos esse estado de não-saber podemos efetivamente enxergar as outras pessoas com a Atenção e o Cuidado que merecem.
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Pelo direito de estarmos confusas
Uma vez, em sala de aula, eu acabara de expor um tempo verbal bem complexo para o qual não existia equivalente na língua materna das pessoas alunas. Uma delas, a que tinha mais dificuldade, levantou o braço e disse que ainda estava muito confusa. Perguntei se tinha mais alguém confusa na sala. Muitas levantaram o braço.
E expliquei:
Vocês acabaram de ser expostas a uma quantidade grande de informação sobre um tempo verbal totalmente novo, que funciona de um modo bem diferente da lógica da língua nativa de vocês. Diante disso, a reação mais correta, mais apropriada e mais humana é mesmo ficar confusa.
Se, agora, nesse momento, vocês estivessem seguras de ter entendido tudo, provavelmente seria uma falsa confiança, fruto de um entendimento incompleto. Vocês ainda vão passar vários dias confusas, mas não tem problema. O teste é só daqui a um mês. Enquanto isso, vamos treinar isso juntas, em sala, em grupos, sem valer nota, até vocês de fato saberem como usar esse tempo verbal.
Até lá, ficar confusa só faz bem.
A aluna que fez a primeira pergunta me olhou com um alívio tão grande, mas tão grande que fiquei até emocionado, e desabafou:
"Nunca ninguém tinha me dito que eu podia ficar confusa!"
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E se eu estiver errado?
Nenhuma pessoa pode estar certa o tempo todo. Racionalmente, portanto, sei que estou errado em muitas das minhas certezas.
Se penso no meu eu-de-dez-anos-atrás, posso facilmente listar várias certezas equivocadas dessa pessoa que agora me parece tão distante.
Por outro lado, hoje, vivo imerso na segurança das minhas certezas, tão lógicas, tão abalizadas, tão autoevidentes!
(Afinal, se não achasse que minhas opiniões estão certas, elas automaticamente deixariam de ser minhas opiniões, certo?)
Entretanto, apesar dessa minha imensa segurança nas minhas certezas, a não ser que eu queira sinceramente me colocar na insustentável posição de única pessoa do mundo que jamais está errada, eu tenho que presumir que muitas das minhas certezas atuais são equivocadas.
Daqui a dez anos, se eu ainda estiver vivo, quais serão as falsas certezas que verei no eu-de-hoje?
Em que estou errado hoje, apesar de jurar que estou certo?
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E se as pessoas souberem mais da vida delas do que eu?
Vivo cercada de pessoas que (me parece!) estão autodestruindo suas vidas diante dos meus olhos: amigas apaixonadas por namorados canalhas, amigos sem talento sonhando ser artistas, parentes insistindo no negócio fracassado.
Essas opiniões sobre as vidas alheias surgem dentro de mim com extraordinária clareza, quase verdades divinamente reveladas:
"Como pode ela não enxergar que esse namorado é abusivo?! Como pode ele não ver que esse negócio está comendo suas economias e vai falir de qualquer jeito? É tão claro, tão óbvio, tão autoevidente!"
Então, decido interferir. Afinal, essas pessoas — ofuscadas por seu amor romântico, por seus sonhos de estrelato, por seus desejos de liberdade — não sabem o que estão fazendo. Ainda bem que eu sei: eu vejo a verdadeira verdade que elas não veem. E vou falar!
Mas… e se eu estiver errado?
E se minha amiga entender mais do seu relacionamento, dos seus sentimentos, de suas necessidades… do que eu? E se meu amigo entender mais dos seus sonhos e de suas expectativas em relação à arte… do que eu? E se meu parente entender mais de seu mercado, de seu negócio, de quanto pode investir… do que eu?
Afinal, se observo a vida dessas pessoas e considero que estão fazendo tudo errado… quantas pessoas não observam a minha vida e consideram que eu estou fazendo tudo errado?
Se não dou a elas o direito de interferir na minha vida, por que eu teria o direito de interferir na vida dessas outras pessoas?
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Dois conselhos bem-intencionados
Quando decidi ficar no Brasil, ao invés de fazer graduação nos Estados Unidos, a consultora vocacional da minha escola disse que eu estava jogando a minha vida fora.
Décadas depois, quando decidi largar o meu doutorado nos Estados Unidos e voltar para o Brasil, minha orientadora disse que nunca soube de ninguém que fez isso e não se arrependeu amargamente.
A consultora vocacional era uma norte-americana, morando no Brasil há um ano, dedicada a colocar as pessoas alunas da minha escola no máximo possível de universidades nos Estados Unidos: era compreensível que enxergasse nosso país como um deserto educacional e que ficasse mortificada que uma aluna que considerava promissora escolhesse estudar em uma universidade de terceiro mundo que ela nunca tinha ouvido falar, ao invés de em uma universidade norte-americana famosa em todo o mundo.
Minha orientadora no doutorado era uma pessoa que dedicara toda a sua vida e todos os seus esforços ao meio acadêmico, para formar-se doutora e para formar novos doutores: era natural que considerasse que uma carreira bem-sucedida no meio acadêmico fosse superior a uma carreira bem-sucedida em outras áreas. Além disso, conheço muita gente para quem abandonar o doutorado foi a melhor decisão que tomaram, mas, por uma falácia de amostragem, suponho que as ex-doutorandas que ainda mantém contato com suas ex-orientadoras sejam desproporcionalmente as arrependidas, em oposição à ex-doutorandas cujas vidas foram em outras direções, que estão se realizando em outras áreas e, assim, perderam o contato com as pessoas de suas encarnações acadêmicas.
Eram ambas pessoas boas, que desejavam o melhor para mim, me dando conselhos cheios de boas intenções — e cheios também, como não poderia deixar de ser, de suas próprias expectativas, sonhos, preconceitos.
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Minhas certezas não estão automaticamente certas
Eu me pergunto "e se eu estiver errado?" não como uma justificativa para a inação e para a apatia (afinal, se não posso ter certeza de nada, para que me envolver, para que lutar, para que interferir?) mas como um contrapeso ao narcisismo das minhas ó-tão-firmes certezas.
Por mais firmes que sejam minhas certezas, por mais óbvias que sejam as maneiras pelas quais as outras pessoas parecem estar destruindo suas próprias vidas, ainda assim minhas certezas não estão automaticamente certas.
Sim, pode ser que minha amiga seja uma vítima e que esteja sendo abusada por seu namorado, como me parece tão óbvio, tão simples, tão autoevidente.
Mas… pode ser que ela esteja vivendo o relacionamento que deseja e que precisa; pode ser que aquilo que eu vejo como problemas para ela não sejam; pode ser que sejam problemas que ela considera toleráveis em troca de vantagens que não vejo e não tenho como julgar.
Também pode ser que eu esteja projetando no namoro dela a relação abusiva que eu vivi e da qual demorei anos para me livrar; pode ser que eu esteja sendo influenciado pela memória de todas as minhas amigas que viveram relações de fato abusivas; pode ser que eu esteja querendo redimir minha culpa por não ter interferido em outras relações abusivas que acompanhei e não fiz nada.
Afinal, apesar da irresistível força das minhas autoevidentes certezas, se minha amiga e eu temos opiniões diferentes sobre a vida dela, por que a minha opinião estaria automaticamente certa?
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Somos péssimas juízas de nós mesmas
Não estou afirmando que as pessoas sempre sabem melhor de suas próprias vidas do que as outras. De fato, o oposto provavelmente é verdadeiro.
Somos péssimas juízas de nós mesmas: além de autoindulgentes, levamos excessivamente em conta nossas intenções. Já as outras pessoas têm a enorme vantagem de nos analisar somente por nossas ações.
No meu dia-a-dia, nas interações cotidianas com as pessoas, me vêm à mente dezenas de respostas ácidas, comentários grosseiros, patadas engraçadinhas, e eu, pessoa autocontrolada e bem educada que sou, censuro quase todas antes de serem ditas. Então, antes de dormir, olhando para trás e pensando em todas as grosserias que, ao custo de muito esforço, não verbalizei, eu penso, satisfeito comigo mesma:
"Hoje, consegui não ser uma pessoa rude."
Mas a palavra-chave é quase.
Uma ex-namorada, que andou comigo para cima e para baixo por anos e me conhecia muito bem, se dizia às vezes envergonhada pela minha rudeza. De início, esse comentário me horrorizava, eu me sentia um pobre injustiçado:
"Rude, eu?! Depois de tanto trabalho que tive o dia todo?! Depois de não xingar o cara que me cortou no trânsito?! Depois de não brigar com a garçonete que me sujou de café?!"
Mas minha ex-namorada, ao contrário de mim, não tinha acesso às dez grosserias filtradas pela minha autocensura naquele dia, mas somente às duas patadas que eu não tinha conseguido segurar. Para ela, portanto, eu não era a pessoa autocontrolada e bem-educada que se abstivera de verbalizar dez grosserias. (Toma um biscoito, você merece!) Pelo contrário, eu era a pessoa rude que, em um único dia, dera duas patadas grosseiras em gente que não merecia.
Não importa se passei décadas e décadas todos os dias nunca matando ninguém: basta passar alguns poucos segundos matando alguém e sou uma assassina.
O que importa é o que a gente faz.
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Interferir é sempre uma difícil decisão política
Será que a outra pessoa está destruindo mesmo sua vida ou não? Se estiver destruindo sua vida, até que ponto ela tem esse direito e tenho que respeitar, e até que ponto tenho o direito e obrigação de interferir? Onde termina a omissão e começa a invasão?
Essas são questões políticas que encaramos todos os dias, tanto em nossas relações humanas, quanto em nossas relações diplomáticas. Cada vez que estoura uma guerra civil ou acontece um massacre genocida, a comunidade internacional enfrenta o mesmo dilema moral que qualquer pessoa diante do relacionamento abusivo de uma amiga.
A resposta nunca é fácil, nunca é simples. Quem acha que é, provavelmente está se enganando.
Ou vai ver estou errado.
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Para evitar o narcisismo autocongratulatório das certezas indulgentes que tenho sobre mim mesmo ("não sou uma pessoa rude") e para evitar a interferência invasiva das certezas que tenho sobre outras pessoas ("ela está destruindo sua vida, tenho que fazer alguma coisa") a melhor solução que encontrei foi sempre me perguntar:
"E se eu estiver errado?"
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Mudança de nome: de Empatia para Atenção
A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.
Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.
Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.
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Os encontros "As Prisões"
São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?
O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.
Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.
Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.
Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.
Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.
Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.
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