Dar um passo | Exercícios de Atenção, 16

Só efetivamente fazer alguma conta como fazer alguma coisa.

Tomar consciência de uma injustiça, sentir empatia por alguém que sofre, reconhecer nossos muitos privilégios: tudo isso só é desejável se levar a algum tipo de ação concreta. Caso contrário, serve apenas para inchar nossos já hipertrofiados egos.

A autocomplacência de fazermos somente o mínimo, nos autocongratularmos nas redes sociais ("pelo menos, eu problematizo!"; "pelo menos, tenho consciência do meu privilégio branco!"; "pelo menos, nunca bati em mulher!", etc) e, então, não fazermos mais nada é um dos maiores obstáculos para qualquer mudança efetiva.

Para contrabalançar essa tentação, busco sempre repetir para mim mesmo esse mantra:

Só efetivamente fazer alguma coisa pode ser considerado fazer alguma coisa. Só efetivamente dar um passo pode ser considerado dar um passo.

O 16º Exercício de Atenção é darmos esse passo.

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Só um passo é um passo

Nós, pessoas autocentradas e egocêntricas, não queremos realmente mudar (ou seja, nos tornar um outro tipo melhor de pessoa), pois mudar é difícil, incômodo, trabalhoso.

O que queremos de verdade é fazer o mínimo possível ("doei cinco reais para a Unicef!") para que possamos adquirir as identidades que desejamos ("logo sou uma pessoa boa e generosa") sem precisar efetivamente passar por nenhuma mudança significativa.

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O processo de reconhecer privilégios, cultivar empatia, tomar consciência de injustiças, é sempre longo, sofrido, trabalhoso. (Se não for, é porque não estamos fazendo direito.) No caminho, vamos descobrir muitas coisas desagradáveis sobre nós mesmas, nossas famílias, nossa sociedade.

Então, em algum ponto desse processo, nada mais natural que a gente se dê uns (merecidos?) tapinhas nas próprias costas:

"Bem, ok, sou homem em uma sociedade patriarcal, uma pessoa branca em uma sociedade racista, uma pessoa hétero em uma sociedade homofóbica, mas pelo menos tenho consciência disso. Já é um primeiro passo. Já é meio caminho andado. Já é alguma coisa, não é? Não é?"

Mas não.

Ter consciência de um problema não é meio caminho andado. Não é alguma coisa. Não é um primeiro passo.

Só um primeiro passo é efetivamente um primeiro passo.

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Um passo é uma ação.

Ter consciência, sentir empatia, reconhecer privilégios... não.

A empatia pode ser uma prisão justamente por esse seu enorme fator limitante: ela é passiva.

Já é tão difícil cultivarmos nossa empatia, despertarmos nossa consciência, percebermos nossos privilégios... que é enorme a tentação de simplesmente pararmos por aí.

Um homem que reconheceu seu privilégio masculino não deu o primeiro passo na luta contra o machismo: ele não deu passo algum. Ele não saiu do lugar. Tudo ainda está dentro dele. A mudança se restringe ao nível do discurso.

Às vezes, um amigo me diz, implorando pelo tapinha nas costas que ele tem certeza que merece:

"Mas, Alex, sem reconhecer meus privilégios masculinos, não tem como um homem como eu lutar contra o machismo!"

E eu respondo:

"Sim. Mas um homem reconhecer seu privilégio masculino não é lutar contra o machismo. A única coisa que conta como "lutar contra o machismo"... é efetivamente lutar contra o machismo. A única coisa que conta como primeiro passo é efetivamente dar o primeiro passo. Saber que dar o primeiro passo é importantíssimo não é dar o primeiro passo. Pelo contrário, quase sempre é uma maneira de não dar passo algum."

Sem compreender a diferença entre as coisas que acontecem dentro de nós (sentir, reconhecer, pensar) e as coisas que efetivamente fazemos no mundo (lutar, dar passos, etc) jamais transformaremos a realidade.

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Comprar os ingredientes e nunca assar o bolo

Toda receita culinária tem duas partes.

Primeiro, a relação dos ingredientes, ou seja, de algumas das pré-condições necessárias para que o prato venha a existir um dia:

Leite, ovos, açúcar, farinha, manteiga, fermento.

Depois, claramente separados e numerados, a relação das ações efetivas que precisam ser realizadas para que o prato venha a existir um dia:

1) bater claras;

2) misturar gemas, manteiga, açúcar;

3) acrescentar leite, farinha, fermento, claras;

4) levar ao forno.

De fato, não pode concebivelmente existir o bolo se não existirem antes a farinha e os ovos: uma vez iniciado o processo, até podemos olhar para trás e dizer que, se não tivéssemos comprado a manteiga e o fermento, não teria sido possível nem começar a fazer o bolo.

Mas simplesmente comprar os ingredientes não é o primeiro passo para fazer o bolo.

O primeiro passo da receita é bem fácil de identificar: é aquele onde o número "1" está seguido por um verbo de ação, "bater".

Se já bati as claras, então sim, posso bater também no peito pra dizer que dei o primeiro passo em direção ao bolo.

Naturalmente, de nada adianta o primeiro passo sem os passos seguintes: a única maneira de alcançar um objetivo, qualquer objetivo, seja ele extirpar a homofobia ou fazer um bolo, é progressivamente executando uma ação atrás da outra, dando um passo atrás do outro, em direção ao resultado que nunca saberemos se alcançaremos.

Não se faz um bolo tendo consciência plena da delícia que é um bolo, nem lendo e estudando dezenas de receitas de bolo, e muito menos arrumando os ingredientes na bancada da sua cozinha, tirando fotos lindas em tons de sépia ("está saindo o bolo, galera! #guiltpleasure") e contando as curtidas no Instagram.

"Reconhecer privilégios", "cultivar empatia", "despertar consciência" são excelentes buzzwords para colarmos em cima de fotos do pôr-do-sol e ganharmos biscoito no Facebook... mas falta fazer o bolo.

Sentirmos tudo isso e não fazermos nada é tão patético, tão inútil, tão ridículo, quanto comprar os ingredientes, postar a foto no Insta (#fica-vai-ter-bolo) e nunca fazer o bolo.

Só um passo é um passo.

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A empatia é um privilégio

A oportunidade de "ter consciência", "cultivar empatia", "reconhecer privilégios", é, em si mesma, um privilégio:

Para muitas pessoas — que nunca tiveram acesso à boa educação e que dispõem de poucos momentos de ócio — "ter consciência" é um luxo que não podem se dar.

Então, "ter consciência" e não fazer nada, "cultivar empatia" e parar por aí, "reconhecer privilégios" mas somente para nós mesmas, é muito pior do que simplesmente nunca ter feito nada.

É como comprar os ingredientes do bolo só para deixá-los estragando na despensa, enquanto assistimos pela janela milhões de pessoas passando fome.

"Ter consciência" não é algo para se gabar: é um privilégio que traz consigo responsabilidades.

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​​​​​​​A diferença entre fazer algo e não fazer nada

Muitas vezes, ao final de vários diálogos como esse, pessoas exasperadas e resignadas me perguntam, em tom de súplica ou de desafio:

"Ok, você venceu. O que eu faço então?"

E eu respondo uma variação de:

"Eu não sei o que você deve fazer. Eu não sei o que eu devo fazer. Eu não sei o que ninguém deve fazer. Passei a vida inteira fugindo de pessoas que achavam que sabiam o que as outras pessoas deveriam fazer."

O primeiro voto da Ordem dos Pacificadores Zen é praticar o não-conhecimento e abrir mão de certezas prévias.

Podem parecer somente palavras vazias e bonitas, mas quando começamos a praticá-las sistematicamente, em nosso dia a dia, percebemos que não temos subsídios nem para decidir sobre nossa própria vida, quem dirá sobre as vidas das outras pessoas.

Naturalmente, apesar de minha abissal ignorância, não posso evitar de tomar decisões práticas sobre minha vida, mas pelo menos reconheço que não estou em posição de cagar regra pra ninguém.

(Enquanto não me decido por fazer algo melhor, vou escrevendo textos como esse, que são uma maneira conveniente de não fazer nada.)

Sócrates dizia que tudo o que sabia era que nada sabia e que esse único conhecimento já lhe tornava mais inteligente que seus compatriotas, que nem ao menos isso sabiam. Em muitos diálogos, Sócrates não tem opinião alguma, não aporta conhecimento algum: ele apenas tenta demonstrar que as outras pessoas no debate também não sabem do que estão falando.

E eu, graças à minha vasta experiência de autocomplacente e egocêntrico burguês-odara feministo-esquerdomacho, sei apenas o seguinte:

Sei reconhecer na hora a diferença entre não fazer nada (pois é o que eu normalmente faço) e fazer alguma coisa, qualquer coisa que seja.

Não sei nunca qual é a coisa certa a se fazer, por mim ou por você, mas sei reconhecer na hora quando alguma coisa foi feita, certa ou errada, e quando nada foi feito, nem certo nem errado — apesar de muitos privilégios terem sido reconhecidos e muita empatia ter sido sentida.

Você, pessoa leitora, na sua condição de cidadã adulta, pode fazer o que quiser da sua vida e eu não vou ter nenhuma opinião a respeito.

Nada pode ser mais político, mais necessário, mais transformador (e mais raro!) do que simplesmente fazermos aquilo que decidimos livremente fazer.

Mas, se você não estiver fazendo absolutamente nada, e, ainda assim, estiver se autocongratulando por ter consciência, se gabando por sentir empatia, ganhando biscoito por reconhecer privilégios, recebendo parabéns públicos por ter dado o primeiro passo, então, sinto muito, vou lhe dar um tapinha no ombro e bater uma real:

"Mal aí, colega, mas você não fez nada: só um passo conta como um passo."

* * *

Esse Exercício, como todos os outros Exercícios de Atenção, foi escrito, antes de mais nada, para mim mesmo: por isso, está na primeira pessoa. Se a carapuça que costurei para meu uso pessoal também servir em vocês, sejam bem-vindas: cabe toda a elite brasileira aqui dentro.

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​​​​​​​Mudança de nome: de Empatia para Atenção

A série Exercícios de Empatia passou a se chamar Exercícios de Atenção.

Outro nome possível teria sido Exercícios de Cuidado, pois o grande objetivo da série é estimular nas pessoas leitoras um maior cuidado umas com as outras. Entretanto, nem todos os exercícios se referem diretamente ao Cuidado. Além disso, a Atenção é um pré-requisito necessário ao Cuidado: sem Atenção não há Cuidado.

Por isso, Exercícios de Atenção é um nome que reflete melhor o espírito da série.

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​​​​​​​Os encontros "As Prisões"

São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?

O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência,  Patriotismo, e a maior de todas, Eu.

Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.

Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.

Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.

Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.

Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.

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publicado em 07 de Novembro de 2017, 19:47
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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha vídeo-biografia, me siga no facebook, assine minha newsletter.


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