6 bons motivos para maratonar os filmes do Studio Ghibli

Ou: A magia humana e filosófica do Studio Ghibli .

Há pouco tempo a Netflix anunciou que adicionaria todos os filmes do Studio Ghibli ao catálogo brasileiro. Eu só faltei cair da cadeira de tanta felicidade.

Na minha humilde opinião-que-não-importa, os filmes do Studio Ghibli, não apenas os do Hayao Miyazaki, são verdadeiras obras de arte no sentido mais literal da palavra.

Muito se fala sobre a maestria na animação dos filmes do Studio Ghibli como um todo.

Porém, vejo bem poucos comentários sobre os aspectos filosóficos e humanos que permeiam as histórias e que, na minha humilde opinião, tornam os filmes muito mais únicos do que a quantidade de detalhes que são colocados em cada quadro.

Essa é uma lista tanto sobre bons motivos para assistir a esses filmes, quanto uma lista de detalhes para se atentar, caso você já os tenha visto e pretenda ver de novo.

Espero que seja útil e que possamos conversar a respeito nos comentários.

Nota: sim, esse artigo contém alguns pequenos comentários que julgo necessários ao contexto de cada ponto e podem ser considerados spoilers, caso você seja muito sensível a isso. :)

1. Narrativas além da lógica de bem contra o mal

"Você precisa ver com os olhos desobstruídos pelo ódio. Ver o bem que existe no mal e o mal que há no bem. Não se comprometa com nenhum lado, mas ao invés disso, faça um voto de preservar o equilíbrio que existe entre os dois."― Hayao Miyazaki

Os filmes do Studio Ghibli, especialmente os do Hayao Miyazaki, às vezes conseguem ser difíceis de se compreender. O motivo é que, em uma quantidade significativa de casos não fica exatamente claro quem você deve amar (e entender como o bonzinho) e quem você deve odiar (e entender como o malzinho).

Em Princesa Mononoke, pra citar um dos melhores exemplos disso, aquela que parece ser a vilã, no começo da história, é mostrada ao mesmo tempo como uma líder justa que cuida de diversas pessoas doentes e que, de outra forma, não poderiam ter o seu sustento.

E, se você observar mais profundamente, vai ver que os animais da floresta, quem supostamente deveriam ser os heróis, são bastante cruéis, não pensam muito nas consequências dos seus atos, matam indiscriminadamente e são bastante agressivos.

"O conceito de retratar o mal e depois destruí-lo — eu sei que é o considerado convencional, mas eu acho que isso está podre. Essa ideia de que sempre que algo mal acontece alguém em particular pode ser culpado e punido por isso, na vida e na política, é desespero." ― Hayao Miyazaki

Não é raro os vilões do Studio Ghibli, dentro da história, mudarem de lado, lutarem ao junto aos heróis, se arrependerem ou se transformarem. 

Há também conflitos construídos de tal forma que você fica perdido achando que todo mundo ali está certo de alguma forma.

Aliás, há alguns filmes nos quais sequer há algum conflito. O estúdio foca em histórias nas quais os protagonistas precisam se adaptar e crescer, mais do que propriamente vencer ou acabar com o mal.

Por mais que os filmes raramente se detenham em longas explicações dando contexto, fica claro que Miyazaki e seus parceiros de trabalho enxergam um mundo multifacetado e com cores bastante nuançadas.

2. Pacifista, antifascista, ambientalista e (talvez) feminista

"Muitos dos meus filmes têm protagonistas mulheres fortes ― garotas corajosas, autossuficientes que não pensam duas vezes antes de lutar pelo que acreditam de todo coração. Elas vão precisar de um amigo ou apoiador, mas nunca de um salvador. Qualquer mulher é tão capaz de ser uma heroína quanto qualquer homem." ― Hayao Miyazaki

Miyazaki é bastante conhecido por seu lado ativista e sua obra está envelopada pelas suas convicções políticas.

Seus filmes, normalmente, tratam ou exibem faíscas de temas como os horrores da guerra e como elas afetam a vida das pessoas no cotidiano, como ideologias de violências e desumanização nos desconectam, como o ser humano é responsável pelo que ocorre com o meio ambiente e como deve tomar a proteção dele pra si, como as mulheres podem e devem ser retratadas de maneiras que não apenas sirvam ao propósito dos homens nas histórias, as consequências da ganância e do consumismo e por aí vai.

A violência em filmes do Studio Ghibli não é glorificada como vemos em filmes ocidentais. Não há heroísmo nisso. Em Nausicaa, por exemplo, a guerra é assustadora e deixa os personagens completamente desamparados frente ao poder de destruição de armas que exibem imagens bem parecidas com bombas nucleares e ataques aéreos da II Guerra Mundial. Quando os protagonistas entram em conflitos, ou é por um repente de descontrole emocional ou para impedir um mal maior e dar fim à agressão.

Porco Rosso soltando a melhor fala de todos os filmes do Studio Ghibli

Nausicaa, na minha opinião, é o filme mais carregado destes temas, mostrando um mundo no qual a humanidade, suas guerras, seu egoísmo e sua cegueira destroem a natureza.

Muito se fala, especialmente, sobre a representação de mulheres nos filmes do Studio Ghibli. De fato, a maioria dos filmes do estúdio contam com protagonistas mulheres muito bem desenvolvidas. Metade dos funcionários do estúdio são mulheres, mas há uma controvérsia que gira ao redor do fato do estúdio contar com poucas mulheres em posições de destaque e que nem sequer uma mulher dirigiu um de seus filmes.

Eu não sei se o Miyazaki ou mesmo qualquer um dentro do Studio Ghibli se definiria como um feminista nos mesmos termos que nós, ocidentais de 2020 entendemos, mas seus filmes certamente fogem ao padrão.

3. Enquanto filmes ocidentais correm, os filmes do Studio Ghibli respiram

"O que meus amigos e eu estamos tentando fazer desde os anos 1970 é aquietar as coisas um pouco; não apenas bombardear com barulho e distração. E para seguir o caminho das emoções e sentimentos das crianças, nós fazemos um filme. Se você se mantiver fiel à alegria, espanto e empatia, você não precisa ter violência e não precisa ter ação. Elas vão te seguir. Esse é o nosso princípio." ― Hayao Miyazaki

Muito se fala sobre como a atenção das pessoas está cada dia mais fragmentada e como devemos produzir conteúdo com isso em mente. O cinema hollywoodiano, claro, segue essa cartilha, muitas vezes correndo de tal forma que fica difícil entender o que está acontecendo.

Pra dar um exemplo recente, eu fui ver A Ascensão Skywalker, o último filme que saiu de Star Wars e fiquei chocado como eles cortaram todas as aterrissagens e decolagens de naves, o que era uma marca registrada da franquia e ajudava a dar um senso de "chegada", de se estar em um novo lugar. Você vê um planetinha ou a nave aparece sobrevoando algo e depois corta pro Kylo Ren acendendo a espadinha laser com cara de bravo. Assim, você nem percebe que a história passa por 9 planetas diferentes. E, na verdade, nem importa.

Os filmes do Studio Ghibli, por outro lado tomam o tempo que for necessário pra deixar as emoções fluírem. 

Mesmo quando uma informação chocante é passada, eles te deixam com ela. Você tem longas sequências que representam as mudanças emocionais pelas quais os personagens passam. Às vezes, nada acontece e o mundo é mostrado como ele é, apenas sendo.

Algo bastante diferente pra nós, acostumados a animações da Disney, é que os filmes do Studio Ghibli também contam com longas sequências silenciosas, onde a sonoplastia toma a frente e traz textura às imagens.

O Castelo no Céu, por exemplo, tem uma belíssima trilha sonora, mas também longas cenas silenciosas, onde você ouve os passos dos personagens ecoando pelos corredores vazios. Há o vento, a solidão e o desamparo de quem não sabe o que vai encontrar.

É famosa a história de que, quando a Disney comprou os direitos de distribuição desse filme no ocidente, pediu que se adicionasse mais de meia hora de trilha sonora, pra cobrir os silêncios que, segundo eles, deixariam o público ocidental desconfortável.

Eu considero um crime.

4. Exemplos de como operar além das óbvias reações usuais

"[...] seria falso afirmar que porque estamos do lado da justiça, podemos avançar e destruir nossos oponentes e o mundo estaria em paz. [...] Agora, eu sei que existe bem e mal no mundo, e que as pessoas fazem boas coisas. Mas pessoas que fazem boas coisas não necessariamente são boas pessoas. Elas por acaso fizeram boas coisas. No próximo momento elas podem fazer algo ruim. E se não levamos isso em conta na nossa visão dos humanos, vamos constantemente cometer enganos quando tomarmos decisões políticas ou decisões sobre nós mesmos." ― Hayao Miyazaki, Starting Point: 1979-1996

Um dos momentos do cinema que mais mexeram comigo está em um filme do Studio Ghibli. É rápido e, se você estiver distraído pensando nas notificações que chegam no celular, você perde.

Quando Nausicaa se vê encurralada por Kushana, com uma arma apontada pra si, sem nenhuma alternativa de escapatória, ela não pensa em uma forma de arrancar a arma da mão da vilã ou de inutilizá-la. Ao invés disso, ela olha firmemente e pergunta "do que você tem tanto medo?", como se visse muito além da capa de ferocidade. "Você parece um esquilo assustado."

A vilã reage rapidamente, também, como se estivesse sido vista nua e tenta ampliar a agressividade em uma tentativa de intimidar que não mais convence ninguém.

Quando a cena seguiu, eu não pude fazer outra coisa a não ser ficar bastante chocado pela profundidade daquela situação.

Os filmes do Miyazaki (e do Studio Ghibli) são repletos de sutilezas emocionais assim. Ao final, você acaba percebendo que mesmo pessoas que são duras e agressivas, podem estar apenas colocando uma capa quando, na verdade, estão assustadas e não sabem o que fazer.

Os filmes do Studio Ghibli são convincentes não porque seus desenhos são realistas ou bonitos aos olhos, mas porque seus personagens são emocionalmente intrincados e nos ajudam a compreender mais sobre a natureza humana por meio da empatia que nos leva a projetar.

5. A bondade humana existe e se manifesta nos detalhes

"Eu gostaria de fazer um filme que diga pras crianças 'é bom estar vivo'." ― Hayao Miyazaki

Uma das características que eu mais admiro nos filmes do Studio Ghibli, em especial do Miyazaki, é como eles estão repletos de bondade humana expressa em ações tão simples de cotidiano. As pessoas se ajudam, oferecem bolos e frutas, trocam informações de maneira absurdamente gentil. Dá vontade de morar ali, de conhecer essa terra onde as pessoas são tão puras e verdadeiras.

Miyazaki, enquanto artista, fala bastante sobre como prefere que suas criações inspirem bondade e compaixão e há uma citação famosa na qual ele condena bastante um animador que tenta mostrar uma criação de aparência bem monstruosa.

"Todas as manhãs eu costumava ver um amigo deficiente. Até mesmo um high five era difícil pra ele. A sua mão ficava estática e eu que tinha que levar a minha até tocar a dele. Eu penso nele e não consigo dizer que gosto disso [que vocês fizeram]. Quem quer que tenha feito isso não reflete sobre a dor. É muito desagradável. Você pode fazer coisas horríveis, se quiser, mas eu não quero ter nada a ver com isso. É um terrível insulto à vida."

6. Isao Takahata, o outro gênio do Studio Ghibli

"É uma experiência emocional tão poderosa que força a repensar a animação. É um filme dramático poderoso que, por acaso, foi animado. E eu sei o que o crítico Ernest Rister quis dizer quando o comparou à 'Lista de Schindler' e disse, 'é o filme animado mais profundamente humano que eu já vi...'". ―  Roger Ebert, sobre O Túmulo dos Vagalumes

Isao Takahata é, também, um diretor e co-fundador do Studio Ghibli. Seu trabalho é tão icônico quanto o do Miyazaki, embora muito menos aclamado e comentado pelas nossas bandas. Takahata tem um pé no drama, o que, por si só, já o destaca no gênero da animação.

Em seus filmes, Takahata explora situações muito mais enraizadas no mundo real do que o Miyazaki, embora a maior parte de seus filmes utilize de elementos visuais diametralmente opostos. Com exceção de O Túmulo dos Vagalumes, seus outros filmes como A Princesa Kaguya, Pom Poko e Meus Vizinhos Os Yamadas, são feitos em um estilo visual muito próprio e distinto do que se vê em obras do Miyazaki.

Não que os filmes do Ghibli não façam o mesmo, mas Takahata abusa ainda mais de metáforas visuais, cores exuberantes, transformações e metamorfoses para expandir os limites do que pode transmitir como mensagem, levando o gênero da animação a um outro lugar.

Eu me empolgo tanto que poderia escrever um outro artigo só sobre o Takahata, mas vou terminar por aqui.

O ponto é: veja os filmes dos outros diretores do Studio Ghibli com igual carinho. Vale a pena.

Minha recomendação de filme para se ver com um lencinho, além de qualquer um dos dirigidos pelo Takahata, é Sussurros do Coração, de Yoshifumi Kondō. Se você tem alguma verve artística, então, leve dois lenços.

* * *

A essa altura você já deve ter percebido que a minha opinião é muito enviesada. Eu sou um óbvio fanboy do Studio Ghibli e de tudo o que gira ao redor. Por isso, vou ficar bastante feliz em conversar com você a respeito nos comentários.

Esqueci de alguma coisa que valha destacar nos filmes do Studio Ghibli? Qual filme você recomendaria pra quem está começando agora?

Vejo vocês aqui embaixo.

* * *

Minha recomendação: Sussurros do Coração

Link Youtube

Fiz um vídeo sobre o filme Sussurros do Coração, analisando os paralelos com o caminho de um artista, seus bloqueios e suas dificuldades. Se interessar, você pode dar o play aqui em cima e seguir o canal. Logo, logo, vem mais disso por lá. :)


publicado em 14 de Fevereiro de 2020, 10:00
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Luciano Ribeiro

Cantor, guitarrista, compositor e editor do PapodeHomem nas horas vagas. Você pode assistir no Youtube, ouvir no Spotify e ler no Luri.me. Quer ser seu amigo no Instagram.


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