Reserva financeira: o direito de chutar o balde

Eu tenho um palpite de que, se eu fosse amigo do Neymar e o convidasse para jogar uma pelada em um campinho qualquer, ele jogaria de maneira ainda mais impressionante do que joga no Barcelona ou na seleção brasileira.

Seria arte pura.

Paradoxalmente, a não obrigação de chutar a bola na gaveta, aliada a um pouco de despretensão, faria com que as chances de que ele acerte a bola lá fossem muito maiores. Ele jogaria solto, ousado, sem pensar em quais seriam os comentários gerados por sua atuação. O futebol agradeceria.

O medo de agir de maneira mais livre e despreocupada priva o mundo de uma parte fantástica de cada um de nós, nos mais diferentes setores da vida. É o cara recatado que não consegue tirar a mulher do eixo, ou o funcionário quadrado que deixa de fazer o que acredita ser o melhor para a empresa ou para seu time.

Duas esferas, estreitamente ligadas, são especialmente afetadas por essa pressão: a financeira e a profissional.

 

O salário pode ser um fardo

É bem comum virarmos escravos do salário. Nos acostumamos com o valor que pinga em nossa conta bancária todo mês. Enxergarmos a empresa em que trabalhamos (ou a empresa que possuímos) como a responsável por nossa sobrevivência.

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Nos reservamos o direito de trabalhar quietos, sem palpitar, sem ousar, sem tentar enfiar a bola na gaveta porque temos a crença (muitas vezes correta) de que, se errarmos o chute, ficaremos desempregados. Falidos. Perdemos a chance de propor algo inovador, evitamos bater de frente com o chefe, contemos o questionamento. Muitas vezes, inclusive, deixamos de assumir a postura que a situação pede.

Seria fantástico ir para o trabalho da mesma maneira que um jogador de futebol vai jogar bola com os amigos no final de semana: livre de tantas expectativas. Nosso capitalismo selvagem, porém, nos impõe um pré-requisito bastante crítico para seguir vivendo bem: dinheiro.

 

A primeira reserva, na prática

Na série de textos sobre planejamento financeiro, começamos do zero, seguimos e abordamos pontos bem capciosos, mas ainda não abrimos espaço para falar de como montar uma reserva que possibilite se mover com mais facilidade.

Falamos também sobre realizar, mensalmente, uma transferência para a poupança ou para algum fundo de confiança. É o começo. A partir dessas transferências, formaremos a primeira reserva.

Depois de agendar a transferência, pode acontecer de perdermos a clareza do porquê estamos acumulando dinheiro. Cair num fetiche numérico sem propósito pode ser tão ruim quanto torrar rios de dinheiro sem pensar.

Vale a pena pensar em camadas. Para a primeira delas, chamada reserva de emergência, o valor equivalente a um salário é o suficiente.

Aqui, o foco não é rentabilidade. Precisamos colocar esse dinheiro em um local estável, que oscile pouco e, principalmente, que tenha liquidez. Tem uma série de definições técnicas e rebuscadas para liquidez, mas ainda não ouvi nenhuma melhor do que essa:

 

Liquidez é a capacidade de transformar o investimento em comida.

Se estivermos com fome e precisarmos comprar comida, ser dono de uma casa não vai resolver muita coisa. O tempo que vamos demorar para transformar a casa em dinheiro (e, consequentemente, em comida) é grande demais. A liquidez de um investimento imobiliário é muito baixa.

Se o dinheiro estiver na poupança, com alguns cliques (ou com uma ida ao banco), resolvemos. A poupança tem liquidez altíssima. Em minutos, o dinheiro já está no nosso bolso.

 

Não vai dar pra pedir sanduíche e pagar com a casa
Não vai dar pra pedir sanduíche e pagar com a casa

Pode ser bem tentador utilizar a reserva de emergência para alguma compra ou viagem. É reflexo da nossa mente que julga estar no controle de tudo, que acha que os imprevistos sempre acontecem com os outros, nunca com a gente.

Nas entrelinhas, ter a primeira reserva é respirar relaxado sabendo que os imprevistos vão acontecer e que, de um jeito ou de outro, vamos seguir.

Reserva de emergência montada. E ai?

Com ela bem cuidada, começamos a ganhar autonomia. Se as coisas derem errado, se perdermos o emprego, se um imprevisto acontecer, estamos cobertos por certo tempo, ganhamos fôlego para colocar a casa em ordem.

É natural que nossos sonhos e projetos cresçam e, com isso, surge a necessidade de traçarmos algumas metas de médio e longo prazo. A educação financeira chega a ficar chata, de tanto que bate na questão dos juros compostos. Mas, acredite, eles fazem a diferença.

Depois de uma primeira camada líquida, começamos a pensar em camadas mais rentáveis.

Explicando a rentabilidade com o exemplo da poupança, se tivéssemos colocado R$ 10.000,00 na poupança em janeiro/2012 e retirado no final do mesmo mês, teríamos R$ 10.048,00, pois a rentabilidade da poupança foi de 0,48%. Para cada 10 reais colocados na poupança, recebemos cerca de 5 centavos por mês.

Considerando os mesmos R$ 10.000,00 por períodos maiores:

 


  • Em 1 ano, teríamos R$ 10.540,00;

  • Em 5 anos, R$ 13.260,00;

  • Em 10 anos, R$ 17.679,00.


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É bastante dinheiro, se pensarmos que estamos considerando a poupança um dos investimentos mais seguros que o mercado oferece. Não vamos entrar em especificações técnicas dos fundos e das possibilidades, mas buscando uma rentabilidade melhor, de 0.65%  ao mês, o que é possível alcançar facilmente através de um fundo conservador, os números listados acima ficam mais interessantes ainda:

 


  • Em 1 ano, teríamos R$ 10.738,00;

  • Em 5 anos, R$ 14.655,00;

  • Em 10 anos, R$ 21.619,00.


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Isso tomando por base que não fizemos nenhum aporte extra. São só os R$ 10.000 iniciais.

Se após o planejamento percebemos que precisamos de R$ 3.500 reais por mês para viver, R$ 21.619,00 representam seis meses de vida. Seis meses para repensar a profissão, para respirar novos ares e fazer novas escolhas.

 

O Ernest Hemingway chutou o balde, foi pra Plaza del Castillo em 1959... beber
O Ernest Hemingway chutou o balde, foi pra Plaza del Castillo em 1959... beber

 

Investimento não é coisa de milionário

É comum acharmos que investir é algo a ser feito por quem tem muito dinheiro. Não é. Diversas opções surgem, para começar com cada vez menos.

Deveria ser uma preocupação do nosso dia a dia. Muitas vezes entramos em um ciclo de preocupação e desgaste, focado em ganhar mais e mais dinheiro, em correr cada vez mais rápido, sendo que faria muito mais sentido parar e entender onde estamos e pra onde estamos indo.

É como se planejar o acúmulo de capital fosse um lembrete material de um percurso que estamos percorrendo, sonho por sonho, escolha por escolha.

Olhar lá na frente nos ajuda a compreender que esse percurso é maior.

Bem maior.


publicado em 01 de Setembro de 2013, 21:00
Eduardoamuri

Eduardo Amuri

Autor do livro Dinheiro Sem Medo. Se interessa por nossa relação com o dinheiro e busca entender como a inteligência financeira pode ser utilizada para transformar nossas vidas. Além dos projetos relacionados à finanças, cuida também da gestão dO lugar.


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