Me intriga quando leio matérias com a expressão "torcida cobra".

Em janeiro desse ano o time de basquete do Flamengo perdeu pro Bauru, em casa. A certo ponto da notícia, lemos que "a torcida demonstrou irritação com o revés, e muitos flamenguistas ameaçaram os jogadores de protestos em caso de derrota no próximo jogo", mesmo com o time ainda líder do campeonato.

O artigo dá a entender que "torcida" é uma referência genérica aos presentes no jogo. Mas nenhum trecho especifica qual a porção da torcida que estava irritada.

Como não há declarações nominais, deduzo que o repórter se baseou nos gritos, expressões faciais e corporais da parte mais barulhenta da torcida. E talvez os flamenguistas que fizeram as ameaças sejam os torcedores que apreciam a experiência tipicamente masculina de assistir um jogo exibindo agressividade exagerada.

Fora os sujeitos claramente agressivos de boné amarelo, vemos crianças tentando tocar a mão dos ídolos, um grupo olhando com um misto de interesse e curiosidade, assim como várias pessoas sorrindo e outras sérias, sem demonstrarem irritação aparente. Quem aí deve ser porta voz da torcida?

Mas será que suas ameaças representam a maioria dos presentes? E os torcedores quietos, o que eles pensam foi levado em conta? 

O conhecido fenômeno da "espiral do silêncio" nos explica como um grupo manifestar certa opinião de modo dominante tende a encorajar mais manifestações similares e desencorajar falas opostas.

Não seria um absurdo especular que flamenguistas fiéis e que entendam a natureza imprevisível do esporte, tenham terminado a partida em silêncio e sem qualquer intenção de ameaçar, ridicularizar ou atacar o time que amam.

Vemos prova de que isso é possível na recente demonstração de amor da torcida do Atalanta, que recebeu o time com festa após perderem de 7×1 para o Internazionale.

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A torcida sabe que foi um golpe duro para os jogadores e que eles estão fazendo uma excelente campanha no campeonato italiano. Apoiá-los seria mais efetivo do que invadir o Centro de Treinamento e ameaçar jogadores, como tanto acontece aqui no Brasil.

Que "torcida" é essa que tanto cobra?

Ao pesquisar os primeiros resultados dentre os 13.500 possíveis que a busca do Google para "torcida cobra" nos mostra, notamos um padrão.

Uma minoria excessivamente agressiva que às vezes acaba, de modo distorcido, representando o todo

É comum que as ditas cobranças ou ameaças tenham sido feitas por membros de torcidas organizadas. Elas esperam os técnicos e jogadores, quase em tocaia, nas saídas de estádios, nos vestiários, nos centros de treinamento e nas chegadas e saídas em aeroportos. E lá, em frente às câmeras, fazem seu show.

Mas ao escrever títulos ou chamadas com "torcida cobra", é subentendido que se trata de uma demanda de milhares de torcedores daquele time. Se cria a falsa noção de cobrança compartilhada pela maioria, o que acaba por espalhar essa percepção mesmo entre aqueles que inicialmente pensavam diferente.

Seguir esse script na cobertura esportiva tem duas razões principais, creio.

Primeiro, gera narrativas com mais intriga e emoção, aumentando a audiência. Supõe-se que mais pessoas vão ler o texto "Fla perde do Bauru em casa, e torcida cobra vitória no clássico com o Vasco" do que aquele com a chamada "Fla perde do Bauru em casa, e torcida se solidariza, apoiando o time do coração".

Segundo, é como estamos acostumados a trabalhar no jornalismo. Em uma indústria bastante hierárquica, com turnos de trabalho exaustivos e salários baixos, nem sempre sobra disposição pra questionar o sistema. Às vezes o que se quer, compreensivelmente, é garantir o emprego e o salário no final do mês.

Os danos desse tipo de cobertura jornalística

Notícias contaminam e podem criar ambientes de tensão emocional insuportável.

Não é raro vermos atletas e técnicos reclamando de como a mídia amplifica ou até mesmo inventa problemas que nem sequer estavam lá, pra começo de conversa. Isso acaba por estimular outros padrões nocivos do esporte, como a mania dos times de futebol brasileiros de demitir técnicos após alguns poucos resultados ruins, sempre pensando no curto prazo. Só entre o começo da última pré-temporada e hoje, 112 técnicos do futebol brasileiro já deixaram seus cargos. Não tenho dúvidas de que cobranças infladas pela mídia contribuem pra esse cenário.

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Gerard Piqué, o zagueiro do Barcelona e da seleção espanhola, descreveu nessa declaração a "guerra velada" entre profissionais da mídia e jogadores:

Piqué e seus companheiros na seleção espanhola

“Uma pequena parte da mídia erodiu a confiança com os jogadores, ao inventar, imaginar e criar histórias. Além disso, o imediatismo agora vem antes da verdade. Essa ordem é um dos problemas do jornalismo. Sempre há pessoas que preferem ser as primeiras, ao invés de checar as histórias.

Se eles entram no jogo, às vezes acertam. Mas se erram, isso rapidamente é esquecido. Infelizmente, é como o jornalismo trabalha.

O jornalismo, como profissão, precisa tentar se posicionar contra estes que causam os problemas. Eu não culpo o jornalismo, porque há pessoas que me tratam bem, mas eles precisam tomar o primeiro passo.

Se conseguirem limpar a imprensa sensacionalista, eu penso que isso quebraria as barreiras que atualmente separam os clubes, os jogadores e os jornalistas."

Sonhando outras maneiras do jornalismo relatar os anseios da torcida

Não vou ser o tio chato e dizer que torcidas não podem cobrar. Sou jornalista e fã de esportes. Entretanto, se o jornalismo deve escutar mais lados para apurar uma boa história, é justo que ele também escute mais lados da torcida.

Me ocorrem algumas sugestões pra viabilizar isso.

1.

E se os próprios times ou torcidas independentes menos radicais fizessem enquetes regulares com seus sócios/torcedores (quem sabe online ou via um app destinado aos sócio-torcedores?), perguntando a opinião deles diretamente, sem intermediação dos jornalistas? Com o tempo o resultado das próprias enquetes realizadas pelos clubes e outras alas da torcida poderia servir de fonte pra matérias.

Se 85% da torcida se solidariza com o time após uma derrota, a manchete não deveria dizer que "torcida ameaça o clube", mas sim "torcida se mantém em claro apoio ao clube".

2. 

Os editores-chefe e jornalistas poderiam fazer questão de entrevistar torcedores que parecem mais tranquilos e serenos após os jogos, não se baseando somente nos mais barulhentos e emotivos.

Ao entrevistar esses torcedores, poderiam fazer perguntas que não induzam as respostas que eles já querem (isso se chama "jornalismo de tese"). Questões como:

"Na visão do senhor/senhora, como um time tão cobrado pode fazer para lidar com a pressão emocional em um momento de derrota?

Qual mensagem de apoio você gostaria de transmitir agora aos jogadores do time que você tanto ama, se eles pudessem te escutar no vestiário?"

É uma mudança de perspectiva simples, menos difícil do que parece.

Ao invés de nos prender a narrativas obsessivas com a vitória, recheadas de boatos, intrigas e fatos distorcidos, as narrativas jornalísticas poderiam se transformar em cativantes diálogos sobre a real natureza do esporte, atravessando temas como: força, trabalho, persistência, paciência, companheirismo, fluidez, abertura, sonho, acolhimento, aprendizado, superação, erro, derrota, fracasso, inconstância, imprevisibilidade.

Onde estão mais dos exemplos positivos?

* * *

Qual seria o impacto dessas outras abordagens na cobertura esportiva?

Teríamos menos audiência e possível prejuízo de negócios, ou não? E os atletas, técnicos e dirigentes, como seriam afetados em seu cotidiano? Será que haveria mais prazer ao trabalhar, melhores performances nos jogos, mais facilidade para se defender projetos esportivos de longo prazo? E os jornalistas, gostariam de trabalhar desse modo?

Passo a bola pra vocês, nos comentários.

* * *

Jornalismo compassivo é uma série não-periódica que examina a mídia atual de maneira propositiva, nos ajudando a sonhar um jornalismo benéfico ao florescimento humano, sem perder o rigor e a eficiência. Essa é a visão editorial que experimentamos no próprio PdH, entenda mais aqui.

Guilherme Nascimento Valadares

Fundador do PDH e diretor de pesquisa no Instituo PDH.