Ontem fui ver dois documentários na Ciranda de Filmes, primeira mostra brasileira focada em educação e infância.
O primeiro, Paulo Freire contemporâneo (2006, disponível online na íntegra), de Toni Venturi, é um belo retrato da vida, do pensamento e dos desdobramentos da ação de Paulo Freire, mostrando experiências educacionais atuais nas mais afastadas regiões. De chorar o relato de uma senhora de Iguape sobre a primeira vez que olhou para palavras e enfim conseguiu ler.
Logo depois, sem pausas (o que criou um constraste absurdo, agradeço às organizadoras por isso!), começou Room to breathe (“Espaço para respirar”, 2013), de Russell Long e Gail Mallimson, sobre uma sala infernal na Marina Middle School, em São Francisco (EUA), que começa a receber a visita de Megan Cowan, co-fundadora e diretora da ONG Mindful Schools.
O documentário começa retratando o problema da escola no estilo daqueles clássicos filmes sobre uma sala de alunos problemáticos que serão salvos pela Michelle Pfeiffer ou pelo Samuel L. Jackson. Especialmente depois de ouvir Paulo Freire, fica evidente que está tudo torto ali: o ambiente desconectado da realidade (um presídio, um depósito de crianças e jovens, como disse Viviane Mosé), o método (eles colocam alunos da sétima série em fila!), as expulsões constantes, a separação entre avançados e medianos, o racismo, a linguagem do professor e da direção. A vantagem é que o desespero cria abertura: “Vamos testar isso de mindfulness…”
As primeiras tentativas de Megan são angustiantes: ela está lá falando sobre observar a respiração enquanto as crianças gritam, se atacam com papel, não sossegam de modo algum. Ela alterna focos de atenção (respiração, sons externos, mastigação) e começa a pedir que eles mesmos conduzam a sessão. É bonito e triste quando ela sugere aos alunos que pensem “Que eu seja feliz” e depois pede que levante o braço quem nunca tinha parado um momento para desejar a própria felicidade. A maioria levanta. Para mim esse é o momento em que ela começa a realmente se comunicar. Autocompaixão parece ser um grande antídoto à cultura americana em geral.
O documentário acerta ao mostrar a vida e as famílias dos vários adolescentes, um a um. Em casa, cada criança é completamente outra: mais serena e responsável, sem a agitação que vive no ambiente escolar. E os pais reproduzem a cobrança escolar, como se felicidade fosse igual a boas notas e uma carreira de sucesso.
Foram apenas quinze encontros de cerca de 20 minutos, duas vezes por semana. Dá para ver como quase nada de trabalho com nosso mundo interno — parar, respirar, observar emoções e pensamentos surgindo, direcionar a própria mente, cultivar relações positivas — já impacta a vida. Os depoimentos ao fim são muito tocantes.
Link Vimeo | Trailer de “Room to breathe”
Algumas notas para abrir conversa
Saí do cinema feliz e muito triste. O trabalho da Mindful Schools parece ser incrível, mas há um grande problema na cultura em que ele surge.
Vou listar o que eu falaria se tivesse tomado um café com alguém logo depois do filme.
1) É uma tragédia precisarmos de uma consultora externa para oferecer técnicas básicas de introspecção, de compaixão e de bondade amorosa em uma escola como algo curto e pontual. Os educadores e os pais poderiam fazer isso sempre, não? Vejam nesse vídeo como é simples o trabalho. Tudo o que precisamos é de tempo não preenchido, espaço para sentar, ouvir, silenciar, refinar a linguagem usual para conversarmos mais em primeira pessoa, por dentro da mente, do corpo sentido. Por que não fazemos isso com as crianças? Porque não sabemos direito fazer isso nem entre adultos!
2)Room to breathe tem um pressuposto que nunca é evidenciado, muito menos criticado durante o filme: são as crianças que precisam mudar, serenar, aprender a focar e se adequar à escola; não é a escola, não são os professores, não é a cultura inteira que precisa respirar e mudar.
Técnicas de meditação podem virar meios refinados de disciplina e servidão, o extremo oposto de seu verdadeiro propósito. Pseudomeditação, pseudocompaixão, tudo para que o professor consiga dar aula com mais silêncio, para que as notas aumentem, as expulsões diminuam e a escola permaneça intocada.
Aqui vale citar um importante texto sobre o que vem se chamando de “McMindfulness” (aqui o original e aqui a tradução):
“Quando a prática de ‘mindfulness’ é compartimentada desta forma, a interligação de motivos pessoais se perde. Há uma dissociação entre a própria transformação pessoal e o tipo de transformação social e organizacional que leva em conta as causas e condições do sofrimento num ambiente mais amplo. Tal colonização de ‘mindfulness’ também tem um efeito de instrumentalizar e reorientar a prática às necessidades do mercado, ao invés de uma reflexão crítica sobre as causas do nosso sofrimento coletivo ou dukkha social.
O Buda enfatizou que seu ensinamento era sobre a compreensão e erradicação de dukkha (“sofrimento” no sentido mais amplo). Então, como fica o dukkha causado pela maneira como as instituições funcionam? […]
O resultado é uma versão atomizada e altamente privatizada da prática de ‘mindfulness’, que é facilmente cooptada e limitada ao que Jeremy Carrette e Richard King descrevem, em seu livro Selling Spirituality: The Silent Takeover of Religion como uma orientação “acomodacionista”. O treinamento em ‘mindfulness’ tem grande apelo porque se tornou um método moderno para subjugar distúrbios dos trabalhadores, promovendo uma aceitação tácita do status quo, e como uma ferramenta fundamental para manter a atenção focada em objetivos institucionais.”
—Ron Purser and David Loy
3) A técnica isolada tem seus benefícios, claro. O filme é sobre isso. E talvez um pouco de introspecção ajude alunos e educadores a acordarem e exigirem mudanças. Lá pelos 5 minutos dessa fala Megan Cowan admite que a coisa pode dar muito errado sem compaixão e como o treinamento da atenção pode impulsionar uma mudança no sistema educacional.
4) A escola tradicional não tem mecanismos nem espaços de escuta. No filme, em apenas uma sala, várias crianças reclamaram de não terem ninguém nem onde desabafar. É muito incrível quando uma menina barulhenta, que passa o dia inteiro tocando o terror, confessa seu desejo por um lugar tranquilo e silencioso, que não existe isso em sua vida. Sem escuta, os sonhos e qualidades das crianças passam batidas. O menino Gerardo, por exemplo, sonha em ser grafiteiro. Se houvesse um modo da escola ajudar nisso, ele imediatamente seria capaz de focar mais a atenção, não?
5) Quem começou com o que hoje chamamos de “mindfulness” foi Jon Kabat-Zinn. É importante esclarecer que essa técnica, como ensinada atualmente na maioria das iniciativas “minful”, não chega a ser uma adaptação da técnica milenar de pacificar a mente (shamatha). Se fosse, sua instrução seria diferente e ela nunca seria desvinculada de pelo menos três outras categorias de treinamento: ética, sabedoria e compaixão.
“Yoga and meditation without ethics and wisdom are merely techniques for exercise and stress-reduction.”
—Miles Neale
Sobre os benefícios da uma meditação isolada, ainda não achei um vídeo melhor do que esse do Robert Thurman sobre a importância de vincular a prática a toda uma visão de mundo mais ampla:
6) Se pudéssemos introduzir apenas uma coisa dentro de uma escola ou de uma empresa, o que seria mais benéfico? Uma técnica isolada de atenção à respiração (num trabalho pontual) ou uma visão ampla sobre felicidade, sofrimento, sabedoria, compaixão, operação em rede, sonhos locais, escuta, diálogo, impermanência, interdependência, emoções, trabalhos e relações mais satisfatórias (dentro de um processo bem mais longo e contínuo)? E se pudéssemos fazer ambos?
7) Ensinar técnicas contemplativas simples para crianças pode ser realmente benéfico, principalmente porque isso exige que pais, mães e educadores as pratiquem. O trabalho de Susan Kaiser Greenland, recomendado por Alan Wallace, vai nessa direção. Ela coordena a fundação InnerKids e escreveu o livro The mindful child.
Corrida para lugar nenhum
Quando até os métodos mais profundos de emancipação humana (treino da atenção, equilíbrio emocional, sabedoria, compaixão) são cooptados pela cultura do sucesso pessoal, alguma coisa está muito errada. Estamos sendo aprisionados por aquilo que foi desenhado para nos libertar?
Parece que o filme que verei hoje, às 14h, é justamente sobre isso:
Link YouTube | Trailer de “Race to nowhere”
Se você for de São Paulo, recomendo demais: a Ciranda de Filmes vai até quinta-feira no cinema da Livraria Cultura, é só chegar meia hora antes (veja a programação).
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