Este é um trecho do texto Deus está vivo nas fibras óticas, do Eduardo Pinheiro e oferece um bom recorte do que a religião como lastro moral nos dias de hoje representa.

Quando a expressão “Deus está morto” foi cunhada, ela queria implicar em particular a ausência de um Big Brother moral, aquele olho-que-tudo-veria, sempre atemporalmente ciente de nossos pecadilhos e ações desonestas de forma geral.
Hoje, quase ninguém (além dos religiosos remanescentes) consideraria que a consciência moral esteja atrelada a esse superego patriarcal, a um tempo transcendente e imanente, que nos vê como indivíduos mas de alguma forma permanecendo ligados ao senso comunitário dos costumes tribais.
Em outras palavras, a maioria das pessoas não se pensa vigiada por um deus, o que costumava fornecer lastro e julgamento – tanto na possibilidade de um fantasmão assim existir, como na possibilidade desse lastro e julgamento serem meramente fomentados dentro da pessoa com base numa ficção desse tipo. Tanto faz. Mas a consciência moral estava lá e, quando Deus morreu, não só se queria dizer que se perdeu essa consciência, mas que isso era, de certa forma, o pior problema.

Antonio Carlos Bôa Nova vem de um mundo que, para muitos de nós, pode ser considerado distante, repleto de imagens e símbolos que não estão mais tão presentes, mas que ainda exercem uma grande influência – às vezes não tão oculta – sobre o nosso modo de vida.

Basta observar, por exemplo, a ampla mobilização que a presença do Papa ainda movimenta.

Ele é um ex-seminarista. Entrou no seminário aos 12 anos e, aos 27, acabou desistindo e retornando à vida secular. Ele é apenas um exemplo de muitos jovens que acabam passando pelo claustro e se deparando com as mais variadas dificuldades e nuances da experiência.

Antonio Carlos Bôa Nova no lançamento do livro "Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular"
Antonio Carlos Bôa Nova no lançamento do livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular”

Recentemente, lançou o livro “Fora da Ordem: do claustro ao mundo secular“, no qual ele apresenta uma pesquisa com 24 ex-seminaristas da Companhia de Jesus que não chegaram a se ordenar. O livro vai desde o chamamento, a noção de vocação até os motivos pelos quais os estudantes decidiram deixar o claustro, passando desde a frustração de não enxergar modelos inspiradores nos padres mais velhos até a obsessão pelo sexo, a afetividade recalcada, a sensação de culpa e a perseguição invisível da noção de pecado constantemente presente.

Conversamos com Antonio Carlos Bôa Nova sobre quais motivações levam um jovem seminarista a seguir carreira, qual o impacto da pressão familiar, como a fé é trabalhada internamente, questões polêmicas como celibato, homossexualidade, e a questão da vista grossa sobre esses casos e a preservação da imagem da instituição sobre os direitos de vítimas de casos de abuso.

PdH: Que impacto a entrada e posterior saída do seminário teve na sua fé? Você ainda é religioso?

Antônio Carlos Bôa Nova: Com todo o respeito que tenho pelas pessoas religiosas, não é assim que me defino hoje, apesar de ter sido formado com esses valores. Aliás, a minha pesquisa constatou uma gama variada de posições: dos ex-jesuítas que entrevistei, alguns mantém rigorosamente a fé e a pratica e outros as descartaram por completo; entre esses dois extremos, há uma série de posições intermediárias.

PdH: Imagino que diferentes motivações levam jovens a entrarem no seminário. Mas, mesmo para quem entra por pressão familiar ou para quem vai por aspiração própria, creio que deve haver um retrabalho no sentido de lapidar ou aumentar determinadas inclinações. De que forma a fé é trabalhada lá dentro?

Antônio Carlos Bôa Nova: Os fatos recapitulados na pesquisa se deram entre 1945 e 1975. Na época, a entrada no seminário era estimulada por condicionamentos sociais, como o prestígio da figura do sacerdote, e também pelas estratégias da Igreja para atrair candidatos.

Leia também  Aos pais de meninos: deem uma boneca para seus filhos | Vida de pai #8

A partir, porém, do momento em que o menino entrava no seminário, todos esses condicionamentos eram “esquecidos” e se passava a falar de uma “vocação”, um “chamado divino”.

Escolhido pessoalmente por Deus para o sacerdócio, o menino tinha a obrigação de corresponder, de não “perder a vocação”, não trair o “chamamento”.

PdH: Desta vez, o processo de renúncia e troca de Papa aconteceu de uma maneira bastante atípica – um Papa não abdica do cargo desde o século XIII. Como você viu essa transição?

Antônio Carlos Bôa Nova: É interessante e algo paradoxal que justamente Bento XVI, Papa de perfil conservador, tenha tomado, com a renúncia, a iniciativa de quebrar uma tradição da Igreja. E ao admitir, com franqueza, que lhe estavam faltando as forcas físicas, ele deu o recado de que também o Papa tem corpo, o que o coloca mais perto do comum dos mortais.

PdH: Como você vê o novo Papa e o processo de ruptura com diversas tradições (e até imposições) inerentes ao cargo e mesmo de abertura à discussão com relação a pontos antes intocáveis pela igreja?

Antônio Carlos Bôa Nova: Desde sua eleição, o Papa Francisco vem despertando simpatia com seus gestos de despojamento e calor humano. Mas seu pontificado ainda está no começo. Para fazer um balanço objetivo de sua linha de ação, é preciso aguardar um pouco mais e ver as medidas concretas que ele tomará.

PdH: Você entrevistou um grupo de 24 ex-jesuítas para escrever seu livro. Pelo recorte que você teve, de histórias e opiniões, você acha possível que em médio ou longo prazo, a igreja passe por transformações mais radicais, como ceder às pressões em relação a casamento homossexual e aborto?

Antônio Carlos Bôa Nova: Tenho conhecimento de que há, dentro da Igreja Católica, grupos que defendem o repensar de certos temas de moral sexual e uma relativização de alguns posicionamentos tradicionais. Se eles conseguirão ter êxito ou não, é uma questão em aberto. Os dados de minha pesquisa não autorizam a fazer nenhuma previsão a esse respeito.

PdH: Um ponto bastante discutido e polêmico diz respeito a questões como a quebra de celibato e mesmo de abusos e homossexualidade dentro de igrejas e monastérios. Como essas questões são tratadas internamente? Há punições? Elas são abafadas? Ou há um consenso de que isso existe e é feito uma certa vista grossa?

Antônio Carlos Bôa Nova: Em vários países, as investigações de abusos sexuais cometidos por clérigos comprovaram uma sistemática ação de acobertamento por parte de autoridades eclesiásticas. A imagem da instituição tem sido colocada muito acima do direito das vítimas. Isso também apareceu na pesquisa, e foi registrado em certa passagem do livro “Fora da Ordem”.

PdH: É difícil negar que estamos em um mundo que passa por transformações comportamentais e sociais cada vez mais intensas e rápidas. Uma das mais evidentes é em relação ao papel que a religião tem na vida das pessoas. Você acha que o mundo está mais cético? Você sente que a fé perdeu importância?

Antônio Carlos Bôa Nova: O que seguramente se desmancha cada vez mais é aquele mundo muito homogêneo em que a religião majoritária estava fortemente enraizada na sociedade e em sua cultura.

Hoje, as pessoas se situam num leque mais amplo de opções religiosas. Inclusive a de não se filiarem a nenhuma religião institucionalizada, embora talvez cultivem, no íntimo, algum tipo de religiosidade a sua moda. Mais do que a morte, o que os estudos de sociologia da religião constatam é a diversificação.

Luciano Ribeiro

Cantor, guitarrista, compositor e editor do PapodeHomem nas horas vagas. Você pode assistir no <a>Youtube</a>