O choque dos conservadores com o show de Beyoncé e com o clipe de “Formation”, o mais recente single da cantora, é tão grandiosamente ridículo que o Saturday Night Live não teve outra saída senão lançar mão do maravilhoso quadro Beyoncé is Black.
Que baita momento pra se ter uma mulher fazendo esse barulho todo.
Ela não tem vergonha de ser quem é. Por que teria?
Corta. Fecha a cortina. Adeus, Santa Clara. Tchau, Califórnia.
Deixamos 2016 para voltarmos ao nefasto Estádio Olímpico de Berlim, em 1936.
Antes de chegar aos Jogos sediados pelo Terceiro Reich, Jesse Owens, atleta negro e bisneto de escravos, trabalhou nos campos de algodão e foi engraxate em Danville, Alabama. Sofreu desde sempre com o racismo sulista, caipira e violento, ainda que tivesse talento inabalável.
No colégio, foram 75 vitórias em 79 provas disputadas, cartel que o levou à Universidade de Ohio. Detalhe: Owens era corredor nos 100 e nos 200 metros rasos, além de ser um mito no salto à distância.
Esse cara daria em Hitler e no regime fascista o primeiro golpe da sequência que acabaria com alguns dos dias mais trevosos da história recente.
Em arquivo, nos lembra o jovem O Globo:
O Führer percebeu o imenso potencial (dos Jogos Olímpicos) como arma de propaganda: o evento foi meticulosamente organizado como um meio de mostrar ao mundo as maravilhas da Alemanha.
Para desgosto de Hitler, Owens venceu nos 100 e nos 200m, no revezamento 4 x 100m e no salto em distância. Nessa última modalidade, venceu o alemão Lutz Long.
A escovada moral no pensamento racista fez mal ao ditador. A reação de Hitler. Dizem que deixou o estádio às pressas. Ou que teria se recusado a entregar a medalha de ouro ao atleta negro. Pode ser os dois. E tanto faz, na realidade.
Quatro medalhas, quatro recordes.
Orgulho nacional nos Estados Unidos por vencer um regime opositor? A realidade seguiria dura.
“Quando voltei de Berlim, continuei não podendo entrar pela porta da frente dos ônibus e continuei não podendo morar onde eu quisesse. Também não pude fazer publicidade de alcance nacional porque não seria aceito no Sul. Hitler não me cumprimentou, mas também não fui convidado para ir à Casa Branca receber os cumprimentos do presidente do meu país.”
A história de Owens, que neste ano chega ao cinema, é das mais incríveis, ainda que longe de ser minimamente feliz.
Dificuldade financeira, racismo, falta de estrutura e uma carreira absurda como uma atração quase bizarra de atos circenses: Owens, o primeiro homem a derrotar Hitler, disputava corridas com cavalos para sobreviver no país onde nasceu.
A Medalha da Liberdade, a maior honraria civil americana, viria bem mais tarde, em 1976.
Jimmy Carter, que foi presidente da maior potência olímpica do planeta naquele final da década de 1970, diria: “Talvez nenhum outro atleta em todo o mundo, em todos os tempos, tenha simbolizado melhor a luta humana contra a tirania, a miséria e o racismo”.
Carter tem boa dose de razão na fala.
O que só faz a atualidade soar ainda mais sem graça: 80 anos após o rolo compressor Owens fazer a festa em Berlim, ainda perambulam aos milhões os que não entenderam nada.
Pode apostar: se possível fosse, Owens daria uma bela gargalha da pane instaurada por Beyoncé semanas atrás. Pode ser. Quem sabe? Ou talvez cedesse à diva pop uma de suas medalhas douradas em sinal de agradecimento. Com a humildade de quem mostrou o caminho e o sorriso leve de satisfação em ver o reinado seguir seu rumo natural.
Owens morreu de câncer no pulmão em 31 de março de 1980 em Tucson, no Arizona. Sem holofotes nem fortuna a perder-se de vista. Mas com a história cravada ao seu lado.
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