Quando era criança, meu irmão mais velho me deu de presente a revista Heróis da TV nº 7. Era uma HQ em que se publicavam aventuras de heróis da Marvel. Até hoje lembro da história principal, pomposamente intitulada “Combate no Reino Eterno” em que era narrada a luta entre Thor e o Surfista Prateado. Um deus nórdico lutando com um Hamlet alienígena nos céus de um reino mítico. Qual menino não iria curtir?
Na época, o sétimo número de Heróis da TV já era publicação antiga, e o título estava próximo de sua centésima edição. Quando soube disso, decidi que compraria todas as anteriores e todas as outras publicações Marvel no Brasil também. Para isso, abdicava do lanche no recreio e juntava o dinheiro.
O pequeno nerd em mim não tinha ideia de onde estava se metendo.
As primeiras coleções que se tem notícia, curiosamente, estavam relacionadas com o interesse então nascente pela pesquisa científica e exploração do mundo natural. Lá por 1572, o naturalista italiano Ulisse Aldrovandi começou uma coleção de curiosos objetos da natureza, que viajantes traziam a sua terra natal, a Bolonha: ovos de pássaros bizarros, minerais, estranhos chifres, amostras de plantas e até mesmo o cadáver de um filhote de dragão.
Sua coleção ficou tão famosa na época que chegou a ser visitada pelo próprio Papa, e por décadas ele se dedicou a ampliá-la, catalogando meticulosamente cada um dos objetos.
Graças a seu catálogo, sabemos que em 1577 sua coleção já tinha 13 mil itens; em 1595, 18 mil; em 1600, cerca de 20 mil objetos. Logo, Aldrovani já não estava sozinho, e por toda a Europa surgiram colecionadores de objetos pitorescos.
Menos pretensiosos eram meus colegas na escola, quando decidiram colecionar selos. Por alguns meses, tornou-se uma febre, e a molecada se reunia no recreio para trocar entre si e comparar coleções. Mas todos esqueceram disso quando a Copa do Mundo começou e passamos a juntar cartões com a foto dos jogadores de todas as seleções.
Em meus colegas de escola e/ou nos contemporâneos de Aldrovani, talvez encontremos uma das razões do prazer de colecionar. Crianças contemporâneas e naturalistas de uma civilização recém egressa da Idade Média tem diante de si um mundo grande e complexo demais. Colecionar um determinado tipo de objeto é segmentar parte do mundo, é estar determinado a conhecer e amar essa fatia da realidade.
O convite que muitas campanhas publicitárias fazem para colecionarmos versões diferentes (cor, forma, temática, etc) de um mesmo produto apelam a essa nossa necessidade de encontrar a diversidade no padronizado, de conciliar a variedade com a uniformidade.
Quando minha coleção de Heróis da TV e outras publicações Marvel já tinha um tamanho considerável, coloquei cada revista em um saco plástico individualizado e guardei todas nas grandes gavetas de uma velha cômoda. A seguir, fiz a mão uma tabela em que registrei todas as edições que possuía e as que faltava encontrar.
Objetos colecionados são, para nosso universo pessoal, o equivalente a relíquias sagradas: são pontes para um outro mundo. Sejam selos, latas de cerveja ou chaveiros, eles abandonam sua função original e se tornam totens, fetiches. Colecionar, essencialmente, é algo animista e transcendente pelo qual acessamos um mundo formado por nossa memória e imaginação.
Quando, anos atrás, soube que o Nicolas Cage também colecionava histórias em quadrinhos, e havia vendido a raridade das raridades, a Action Comics número um (a primeira história), por pressão de sua esposa que considerava aquilo coisa de criança, profetizei que o casamento não duraria muito tempo. Dito e feito. Meses mais tarde, Nicolas Cage separou-se da Lisa Presley.
Mas a arte de colecionar não se limita apenas ao prazer de catalogar e guardar objetos. Grande parte do tesão está na busca, que muitas vezes leva toda uma vida e nunca é finda, de completar a coleção. Há, nessa caça ao tesouro, quase sempre um Santo Graal, um elemento da coleção que, por ser o primeiro ou mais raro, permanece envolto em uma aura de admiração e cobiça por parte da comunidade de colecionadores.
Lá pelos meus 11 anos, semanalmente passava pelos sebos de Porto Alegre para ver se a fortuna havia chegado e finalmente encontraria a raridade das raridades: a Heróis da Tv número um, que certo dia encontrei por acaso, sendo vendida abaixo do preço de mercado, em um pequeno sebo da Avenida Senador Salgado Filho.
José Saramago, em certo momento de seu romance Todos os Nomes, supõe que a razão de algumas pessoas colecionarem objetos é um sentimento “que poderíamos chamar angústia metafísica, talvez por não conseguirem suportar a ideia do caos como regedor único do universo, por isso, com as suas fracas forças e sem ajuda divina, vão tentando pôr alguma ordem no mundo.”
Eu, com a mais consciente das humildades, prefiro divergir do Saramago e pintar com outras cores a realidade de quem coleciona. Ao invés da falta, a abundância, ao invés da “angústia metafísica”, prefiro a “volúpia estética” diante da multiplicidade de formas do mundo material que, em sua riqueza de elementos, captura a atenção de nosso olhar assim que ele se deita sobre qualquer elemento capaz de encantá-lo uma primeira vez.
Enfeitiçado, nosso olhar permanece quase em estado de hipnose, selecionando esse elemento e seus iguais dentre todos os outros, alimentando em nós a expectativa de que o olharemos em todas as suas possíveis variações, em todas as formas que a realidade lhe conferiu.
É uma forma de paixão pelo mundo. E como todas as paixões, pode acabar, mas jamais é esquecida. Anos mais tarde, já adulto, vendi toda minha coleção de Heróis da TV para um sujeito que parecia não acreditar no que estava conseguindo comprar. Percebi que não era a leitura daquelas histórias, de um colorido ingênuo, que haviam me atraído a colecionar, mas sim o prazer de uma busca que, uma vez finalizada, encerrara uma etapa da minha infância.
Vendi a coleção inteira, mas guardei comigo uma cópia de Heróis da TV nº 7, claro.
Mecenas: Nivea Men
Todos os dias, ao acordarem, homens fazem o que precisa ser feito. A insatisfação existe, é verdade, mas aprendemos, trabalhamos, caímos e nos levantamos. Suamos a camisa, em contínuo aperfeiçoamento.
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