A palavra “apocalipse” significa literalmente “desvelar”, isto é, o revelar de coisas ocultas – sobre acontecimentos presentes difíceis de entender, ou acontecimentos futuros a que normalmente não se tem acesso. Nas tradições cristã e judaica, a classe de textos proféticos é denominada por essa palavra, o que implica os dois sentidos.
Algumas vezes o texto parece ser legitimamente profético, outras vezes, parece estar se referindo de forma indireta a acontecimentos presentes – como uma crítica política velada.
Na tradição cristã, em particular, o evento futuro de maior interesse é o retorno de Jesus Cristo, com o concomitante desvelamento do Reino de Deus para todos – pelo menos para todos que aceitaram Cristo. É o final da história, feliz para aqueles que redimiram seus pecados por meio da aceitação plena do Senhor – e possivelmente bastante desagradável para aqueles que não o fizeram.
Com a secularização progressiva da cultura global, considerações sobre o final da história não deixaram de acontecer – tanto numa dimensão de esperança quanto de desespero. Utopias e distopias são esperadas e projetadas, e o “fim da história” pode cada vez mais ganhar um sentido metafórico, e se aplicar a setores da sociedade ou mudanças radicais em um ou outro campo. Em termos de dimensões, o termo hoje pode se aplicar a uma mudança radical qualquer (o fim dos jornais impressos seria o “apocalipse” da imprensa), ao fim da espécie humana ou do planeta, ou até ao fim na morte térmica do universo. Embora existam versões utópicas no contexto secular, a tendência maior é cogitar fins desagradáveis ou mudanças terríveis, e que se aplicam a cultura humana como entendemos hoje, e não a fins mais definitivos, como a tal morte térmica.
O futuro apocalíptico parece precisar ser iminente para produzir seu efeito arrebatador.
O pensamento apocalíptico pode ser sintoma de doença psiquiátrica, em particular a esquizofrenia. Há várias tentativas de explicar o surgimento evolucionário de tal traço humano, que aparentemente visa estender a consideração sobre a mortalidade pessoal para tudo e todos, ou que simplesmente lida com uma sensação ubíqua e iminente, aterradora ou fascinante, de ruptura.
Uma dessas explicações diz respeito ao fato de que, confrontados com dois futuros possíveis – digamos encontrar-se na posição de presa ou caçador ao adentrar uma região desconhecida – naturalmente tendemos a nos preparar para o pior, já que o risco de estar errado quanto à alternativa amena não tem o mesmo custo de estar errado quanto à situação ruim.
Dessa forma, existe uma tendência humana, evolucionariamente determinada, de buscar estar preparado para o inesperado, e particularmente para o cenário inesperado mais desagradável.
Isso também explica porque achamos fascinantes e ouvimos profetas como Jesus Cristo, que refletem o pensamento além da história no contexto de um momento histórico. E se estabelecem com tranquilidade como uma solução ao estilo ex machina. É psicologicamente estabilizador deter uma visão panorâmica da história, e participar dela como alguém que foi incluído e reconhecido nas profecias. Isto, porém, também ocorreu com os seguidores de Charles Manson, que fizeram o que fizeram para detonar o Helter Skelter, uma guerra racial, que por alguma trama complexa, pouparia Manson e seus asseclas, de fato os colocando em posição de poder.
Para que isso ocorresse bastava matar a facadas a linda Sharon Tate, grávida de 9 meses, e mais algumas pessoas.
E então esse ácido marrom todo aí acabou matando todo o sonho hippie.
O pensamento apocalíptico é muitas vezes um foco de crítica em três sentidos: no sentido cristão tradicional nosso destino precisa ser aceito, e particularmente isso se espelha na figura do profeta-deus; e, espelhando isso, na tradição secular, o destino negativo pode ser considerado mesmo inevitável, de forma que não há nada a fazer; enfim, num sentido religioso mais fanático, tentativas de facilitar ou iniciar o “fim do mundo” são algumas vezes até mesmo bem vistas.
O discurso conservador chegou a cunhar uma crítica ao socialismo e outras ideias utópicas do séc. XIX que acabou representado pela expressão “imanentizar o éscaton”, fazer com que o céu esteja presente no mundo. Nessa visão conservadora cristã clássica, as tentativas de eliminar a iniquidade do mundo por meio de várias engenharias sociais são necessariamente presunçosas, uma imitação de uma qualidade que só pode ser propriamente divina, ou nem mesmo divina – simplesmente impossível. Ou só Deus pode fazer algo assim, ou ninguém.
Ora, há pobres no mundo porque o mundo foi desenhado assim por Deus – se por acaso acabamos com os pobres, se é que isso é possível, como então poderíamos praticar a caridade que Jesus ensinou? Deus fez os pobres para que os ajudemos, assim precisamos da pobreza – ou pelo menos não tentar mexer no estado de coisas que Deus deixou – para revelar a glória de Deus em nossos atos.
Além disso, tem aquela história do camelo no buraco da agulha – então a pobreza alheia é ótima para eles, enquanto eu aqui lido com minha culpa em meio a tantas posses.
Estas considerações surgem porque a história é vista como algo estático, que acima de tudo existe de forma absoluta e completa na mente de Deus. As ações humanas tendo impacto apenas sobre nossos próprios destinos pessoais, e não sobre o destino de tudo e de todos. As tradições teístas tem que inventar todo tipo de gambiarra para combinar agência individual com a existência de um criador absoluto – e eles conseguem apenas evitar certos problemas com a invenção de termos como “livre-arbítrio”, que seriam um dom especial de Deus. De outra forma a história como um todo está determinada, a única coisa a saber, é quem vai poder entrar pela a porta certa no dia do julgamento.
Não só a perspectiva de “mudar o mundo”, a raiz do anticonservadorismo, desafia o que se apresenta como realidade “difícil de mudar”, mas desafia o que se apresenta como realidade como “presente ou dom de Deus”. Essa é a relação mútua entre cristianismo e conservadorismo, que persiste mesmo nas variações seculares do conservadorismo: a saber, mudar não é bom, ou é impossível, ou uma combinação das duas coisas. Mesmo formas de conservadorismo não religioso acabam subscrevendo a uma stasis ou absolutismo histórico, afinal, é isso que define o conservadorismo: o fato de que não podemos tomar responsabilidade pela história num sentido global, apenas, talvez, individual.
Os conservadores estadunidenses acham perfeitamente ok colocar duas guerras no cartão de crédito, e ter um orçamento de defesa que é mais ou menos do tamanho do PIB inteiro do Brasil, e corresponde a 16% do orçamento dos EUA, mas Bernie Sanders é visto como um lunático por querer universidades gratuitas – que no longo prazo indubitavelmente revertem em aumento do PIB, ao contrário do orçamento de defesa.
Mas não é como se a mudança não vá ocorrer, na visão apocalíptica, que também é a visão conservadora. As mudanças ocorrem, mas elas são “naturais” ou designadas por Deus. Mudanças projetadas por seres humanos, indubitavelmente falíveis, que veem o futuro sem a onisciência divina, são inevitavelmente torpes. Trata-se de alguém não só idealista, mas com complexo de Jesus Cristo. As duas acusações são semelhantes: na visão conservadora, aquele que quer melhorar a sociedade é como alguém que deseja caminhar sobre a água.
Porém, existem os loucos, e aqueles que são meramente acusados de serem loucos.
A esquizofrenia está ligada a uma situação mental em que o ego se dissocia da consciência moral. Não é, como no caso da psicopatia, uma mera ausência de consciência moral. É uma consciência moral que existe independente de um sentido de agência ligado a um ego operando no mundo – essa consciência moral então projeta uma delusão, uma versão bastante distorcida dos fatos, para que esse agente se sinta operante num universo moral – mas que não tem relação alguma com a realidade, particularmente não tem relação alguma com a sociedade em geral. A partir disso surge a noção de ser protagonista de algum processo agigantado de salvação, que tem uma narrativa ao estilo religioso. Isto é, a forma de protagonizar o mundo de forma moral demanda uma “reinvenção do mundo”. Só que não é uma reinvenção do mundo, é só uma delusão, uma projeção de coisas que não são fatos, com justificações das mais estrambólicas.
E, sim, isso explica evolucionariamente o papel da religião “revelatória”. Uma delusão tradicional e comum não é tão perigosa ou problemática quanto um delírio individual. Ou, pelo menos, nem sempre.
Em termos políticos, infelizmente é preciso dizer que as narrativas religiosas dominam as piores decisões, particularmente guerras. Não há um motivo razoável para os Estados Unidos terem invadido o Iraque após o 11 de setembro que não sejam as narrativas de apocalipse, justificadas por supostas “armas de destruição em massa”. O que se encontrou naquele governo de criminosos de guerra foi uma mistura da psicopatia (ausência de consciência moral e fim único no lucro) do complexo industrial militar com a esquizofrenia religiosa de W. Bush e capangas.
O conservadorismo também tem sua variante de “imanentização do éscaton”, proporcionada por seitas menos representativas do cristianismo. Felizmente, é possível que essas ideias ainda não tenham penetrado os mais altos escalões do governo mundial – a não ser que a conspiração de que as armas de destruição de massa realmente foram só uma desculpa seja fato. Nesse caso, pode haver gente querendo ver o mundo pegar fogo só para ver se Jesus desce para apagar. Isso é possível: a insanidade pode penetrar altos escalões.
Nas variantes mais amenas, em que o apocalipse é esperado, mas não ativamente buscado, seguimos com o problema de que defender o mundo e melhorar a qualidade de vida das pessoas é algo considerado herético. A mão invisível, ou o monstro do espaguete voador, cuidará melhor de nós, o melhor é não interferir. Quanto menos interferência, quanto mais responsabilidade deixamos para um fator abstrato, aparentemente, mais seguramos na mão de Deus, e estaremos entre os salvos. Dados não importam, o que importa é reificar uma versão absolutista da história e uma consciência abstrata superveniente que sempre redunda “no melhor fim possível”.
E é assim que funciona a mentalidade dos escolhidos. Assumir responsabilidade coletivamente é uma pretensão messiânica, acreditar em Cthulhu ou no Deus Mercado, a única salvação. E essa salvação pode destruir com tudo, ou pelo menos sujar o mundo inteiro e causar infinito conflito e sofrimento; mas, sem problemas: afinal de contas o quinhão dos servidores de Moloch está supostamente garantido na grande salvação da confabulação da história absoluta na mente do unicórnio rosa invisível.
Este texto foi superficialmente inspirado no curso (da Teaching Company) e livro de Arthur H. Williamson, Apocalypse then, prophecy and the making of the modern world.
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