Patricia Hill Collins em busca de histórias não contadas

Em sua passagem por Salvador, celebrada escritora norte-americana fala sobre interseccionalidade e a importância do feminismo negro, mas também vai em busca das histórias negras que foram apagadas historicamente

Neste junho de 2024, a renomada professora, socióloga, escritora e pesquisadora norte-americana Patricia Hill Collins, referência quando o assunto é feminismo negro e interseccionalidade, esteve no Brasil para uma série de eventos. A vinda ao país foi uma ação conjunta de diversas instituições que estudam e valorizam os pensamentos de Patricia.

A passagem de Patricia Hill Collins em Salvador foi acompanhada por ativista e estudiosos, entre eles, eu, Zé Ricardo Oliveira, que faço parte da equipe do PDH como coordenador de comunicação institucional do Projeto Meninos, e especialista em facilitação de jornada, principalmente nas questões de raça.

Patricia Hill Collins
Foto: Janel Lee

A poeta e gestora cultural Carmen Faustino, que fez parte da comissão que organizou a vinda de Patricia ao Brasil, me contou que o ponto mais marcante da palestra da escritora norte-americana na Uneb, foi o reforço da importância da interseccionalidade como ponto de partida para se pensar o feminismo negro, em especial no Brasil:

“Patricia Hill Collins tem um interesse muito grande em entender e conhecer as articulações e as práticas que mulheres negras brasileiras têm desenvolvido. Ela reconhece a interseccionalidade como um dispositivo fundante das práticas do feminismo negro, que é esse olhar para os marcadores de classe, raça, gênero e geopolítica e como essas condições impactam a nossa vida”.

Segundo Carmen, houve também um grande interesse de Collins em conhecer grupos de mulheres, que não necessariamente estão dentro da academia, suas histórias e suas ações práticas.

Interseccionalidade é um conceito e uma forma de análise que examina como diferentes características da identidade de cada pessoa, se entrelaçam e se sobrepõe. Por exemplo, em vez de falar separadamente sobre questões de gênero, ou de raça, ou de orientação sexual, como se fossem questões isoladas, a partir de um olhar interseccional, vamos analisar como estas questões se cruzam e se entrelaçam na vida de cada pessoa ou grupo. O termo foi elaborado pela professora e ativista Kimberlé Crenshaw, em 1989. 

Encontro com capoeiristas

Collins participa de um evento promovido pelo Grupo Nzinga, em Salvador.

No dia 20, Patricia visitou a sede do Grupo Nzinga, coletivo de capoeira e de cultura, no bairro do Rio Vermelho, em Salvador. 

“Preparamos diversas atividades que estão dentro das nossas dinâmicas de quebrada, de periferia. Atendendo a um pedido dela, participaram apenas pessoas que realmente fazem a cultura e a resistência na periferia de Salvador, com base na interseccionalidade.” Conta Thiago Kairu, historiador, professor e mestre em história.

Entre Ladeiras e Balagandãs

No dia 21, acompanhada por poucas pessoas e sem o frisson que a rodeou nos dias anteriores, Patricia entrou no que ela revelou como “um dos momentos mais significativos da visita até então” — uma imersão cultural pelas ruas do Pelourinho, no Centro Histórico de Salvador. Nesse dia, pude acompanhar de perto e fiquei encantado com as reações da escritora.

Participamos, junto com Collins, do Entre Ladeiras e Balagandãs, roteiro guiado no Centro Histórico, de narrativa afro-diaspórica, em que são apresentados marcos históricos do século 19 protagonizados por pessoas negras africanas e afro-brasileiras (tanto as livres como as escravizadas). O objetivo do Entre Ladeiras e Balagandãs é fazer reverberar o conhecimento dentro de um contexto historiográfico com linguagem simplificada e menos academicista.

Patricia Hill Collins e Elza Elisa
Foto: Entre Ladeiras e Balagandãs

O roteiro, realizado desde 2019 e que dura cerca de 180 minutos, é conduzido pela historiadora Elza Elisa Pereira da Silva, professora, pesquisadora, palestrante e mestranda da Uneb e pelo historiador Thiago Kairu. Entre os pontos visitados estão o Museu da Misericórdia e a Igreja do Rosário dos Pretos.

Mas foi na Sociedade Protetora dos Desvalidos que Patricia Hill Collins mais se impressionou. Ela confessou não conhecer a instituição e o peso dela para as pessoas negras escravizadas daquela época. Foi no mínimo curioso observá-la querendo saber cada vez mais sobre aquela associação que é desconhecida por boa parte dos brasileiros.

O que é a Sociedade Protetora dos Desvalidos: Primeira organização civil negra do Brasil, fundada em 16 de setembro de 1832, a Sociedade Protetora dos Desvalidos (SPD), na época chamada de Irmandade de Nossa Senhora da Soledade Amparo dos Desvalidos, foi criada com o objetivo de fazer uma junta de alforria dos negros escravizados e para prestar assistência aos sócios e seus familiares. A sede está instalada em um prédio no Largo Cruzeiro de São Francisco, em Salvador, desde 1887. (Fonte: Prefeitura de Salvador)

“Sem dúvida foi uma oportunidade ímpar, estar naquele momento, apresentando a cidade que amo, o espaço que convivo com os meus pares e, acima de tudo, as vivências, construções e desafios da minha ancestralidade que criou um elo atemporal, algo que eu jamais poderia mensurar nessa minha breve vida acadêmica.”, declara Elza Elisa, visivelmente emocionada.​

Em busca das narrativas apagadas

Foi uma experiência bastante rica observar Patrícia Hill Collins aprendendo com “pessoas comuns” assim como com jovens pesquisadores pelas ruas de Salvador. O compartilhamento de histórias e vivências, observada pelo viés da interseccionalidade, é o que dá sentido ao trabalho da socióloga. Por outro lado, precisamos questionar porque tantas histórias significativas como, por exemplo, a da Sociedade Protetora dos Desvalidos é desconhecida de tantas pessoas pesquisadoras e não pesquisadoras. A resposta é fácil: apagamento.

Durante anos, a história que envolve pessoas africanas em diáspora no Brasil e das pessoas afro-brasileiras foi apagada para privilegiar a visão europeia da nossa história. Mas devido aos esforços de pesquisadores brasileiros e estrangeiros, como Patrícia Hill Collins, essa história vai sendo resgatada e sendo contada de forma a valorizar outras narrativas.

Valorização das histórias reais

Ao final do percurso, assisti emocionado quando Patricia externou o quanto é fundamental para as pessoas negras saberem mais sobre as histórias dos seus e da sua cultura. Ela se mostrou extremamente feliz pela oportunidade em conhecer sobre vivências que ela não conhecia e reforçou:

“O que vocês têm aqui são histórias muito importantes para vocês e também para outras pessoas. O trabalho de vocês é muito importante, porque quando vocês contam a história por meio de outra perspectiva, colaboram para a criação de outras histórias. Histórias novas são criadas a partir do conhecimento da história do nosso povo”.

Patricia Hill Collins
Foto: Grupo Nzinga

Mulheres negras brasileiras e suas histórias

Em Salvador (BA), Patricia Hill Collins participou de eventos concorridíssimos. Os ingressos para o encontro do dia 19, na Universidade do Estado da Bahia (Uneb), por exemplo, esgotaram rapidamente e teve quem fosse para a porta da universidade na esperança de conseguir uma vaga no dia da palestra.

Nas próximas agendas de Collins, está um curso em São Paulo (SP), direcionado para educadoras.


publicado em 02 de Julho de 2024, 20:00
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Zé Ricardo Ferreira

Zé Ricardo é escritor, ilustrador, jornalista e pesquisador em história e cultura popular. Dedica-se também à literatura, em especial à literatura preta.


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