Quando me mudei de Minas Gerais para São Paulo, previ que sofreria horrores em uma cidade cinza, apressada e, sacrilégio!, sem tempo para a saideira. Tinha a certeza de que nunca mais seria feliz. Como poderia sê-lo, se jamais iria encontrar um boteco de verdade, com alma, para chamar de meu?

Não demorou uma semana.

Um amigo de alma caridosa me guiou, entre as ofertas de restaurante week e bares para ver e ser visto na Vila Madalena, até aquela esquina que viria a ser minha salvação. Foi no encontro de Cardeal Arcoverde e João Moura que encontrei meu Santo Graal: o Bar do Biu.

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Cria do paraibano de quem leva o nome, da mestre das panelas Dona Edi e do Rogério, o filho que comanda o salão, o Bar do Biu foi – e tem sido também para todos que levo até lá – sinônimo de amor ao primeiro gole. Ou, melhor ainda, à primeira garfada.

Cerveja estupidamente gelada é obrigação, e lugares que não a servem assim deveriam perder o alvará de funcionamento. Para mim, é o tira-gosto de comer de joelhos e o carinho com que um lugar me recebe que faz um boteco saltar de opção de happy hour para a condição de casa fora de casa.

* * *

Quando eu era criança e me perguntavam o que eu queria ser quando crescer, até imaginava que podia ser médico, policial ou jornalista. Mas, sempre, fazia a ressalva: “depois que eu me aposentar, vou ter um boteco”.

É fato que tanto botecos quanto bares e restaurantes servem, pelo menos em teoria, boa comida, cerveja gelada e têm bom atendimento. Mas apesar das semelhanças, a minha parca sabedoria infantil já sabia: há um abismo de alma e espírito que torna os espaços bem distintos entre si.

À margem do self-service aquecido em banho maria, os botecos são os últimos românticos.

Costumeiramente empresas tocadas por parentes – a mãe comanda a cozinha, o pai gerencia o caixa, o filho recebe os clientes pelo nome e com um abraço –, os botecos também tem a tradição de transformar clientes em parte da família. Perguntas e frases como “E fulana?”, “Tá sumido! Peraí que já já colocamos o papo em dia” ou “Isso aí não tem. Mas hoje tá saindo uma carne de panela que olha…” fazem parte do cotidiano da mais brasileira e democrática das instituições boêmias.

“O boteco é ressonante como uma concha marinha. Todas as vozes brasileiras passam por ele”.

Nelson Rodrigues

É no boteco que amizades se fundam e se perpetuam. É nele que o futebol floresce e as provocações têm eco. É ali que casamentos começam, com risinhos charmosos e juras de amor, e também é nele em que se acabam – entre o resquício do perfume errado no colarinho e o choro inconsolável da fossa dos arrependidos.

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Perdoo quem acredita que estou fazendo uma defesa exagerada demais para lugares frequentemente apelidados de sujinhos. Nasci em Belo Horizonte, o que me dá uma vantagem injusta na hora de perceber que tudo o que separa os seres humanos dos animais – a linguagem e nossa capacidade de acumular cultura – só pode ser vivido em sua plenitude em um bom boteco.

Quer lugar melhor pra sermos seres sociais, políticos e onívoros? O Aurélio, com a imaginação estéril que só dicionários conseguem ter, diz o seguinte sobre os botecos:
 

Boteco². [ Derivação Regressiva De botequim.] Substantivo masculino. 1. Brasil Substantivo Familiar e/ou depreciativo V. botequim. 2. Brás. A Barraca que se arma em volta dos barracões das feiras.

(Aurélio, 1999)

Como nunca vi nada de depreciativo nessa versão tupiniquim dos botequins portugueses, prefiro adotar a definição “familiar”. Gosto de pensar que bares são reflexos das pessoas que os tocam e, assim como elas, têm personalidade.

Agora eu já abri as portas e lhes apresentei o Bar do Biu, que tem sido meu boteco favorito pelos últimos seis anos de vida. É hora de vocês participarem aqui nos comentários: qual é o boteco que mora no seu coração e o que ele significa pra você?

Para ler mais sobre cerveja:

Guia cervejeiro para iniciantes

Qual é a cor da cerveja que você bebe? um guia de coloração

A história da cerveja

Como fazer uma degustação de cerveja

Qual a temperatura ideal para beber cada cerveja

Copos de cerveja para ir além do velho copo americano de boteco

14 cervejas para descobrir como agradar seu paladar

28 curiosidades sobre a cerveja

Mecenas: Adriática

A lendária cerveja puro malte de Ponta Grossa – PR foi relançada, mas apenas em alguns (poucos) bares do Brasil. Feita pelo alemão Henrique Thielen em 1893, a Adriática é uma das primeiras cervejarias do Brasil. 

Ismael dos Anjos

Ismael dos Anjos é mineiro, jornalista e fotógrafo. Acredita que uma boa história, não importa o formato escolhido, tem o poder de fomentar diálogos, humanizar, provocar empatia, educar, inspirar e fazer das pessoas protagonistas de suas próprias narrativas. Siga-o no <a>Instagram</a>."