O Cubo de Necker no texto: polissemia, linguagem crepuscular e lógica paraconsistente | WTF #33

Em um texto sobre a ironia mencionei o valor do discurso indireto no flerte. No filme Tootsie, com Dustin Hoffman, o protagonista se veste de mulher para conseguir um emprego na TV, e torna-se, enquanto mulher, amiga de um de seus interesses românticos.

Numa troca de intimidades, a moça confessa ao travesti circunstancial que gostaria que pelo menos alguma vez um homem fosse direto, chegasse nela e dissesse “eu queria fazer amor com você”, sem rodeios. Mais tarde no filme, ele, um homem para ela desconhecido, usa essa informação obtida sorrateiramente e tenta exatamente isso.

Claro que leva um tapa na cara.

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É óbvio que falar de forma direta tem um valor tremendo, ainda mais em uma época em que a ironia (uma das formas mais comuns de discurso indireto) é tão mal utilizada na maior parte das vezes. Porém, o exemplo acima mostra que, em muitos casos, particularmente enquanto estamos construindo uma teoria da mente do outro, operante e funcional, a linguagem tentativa é mais recomendada. Isto é, entre íntimos e pessoas que se respeitam, o discurso direto pode fazer mais sentido na maior parte das vezes.

No discurso público e na criação da intimidade, o uso da flexibilidade linguística e epistêmica permite que sondemos o território mental do outro -- e não quebremos o protocolo sendo ofensivos inadvertidamente. Isto é, precisamos falar um bocado de coisas que não dizem nada explicitamente, mas que procuram evocar reações indicativas de como podemos nos portar, até onde podemos ir, e qual é efetivamente a situação em que nos encontramos com relação ao outro.

Qual a relação entre “linguagem tentativa” e linguagem indireta

Ora, a linguagem indireta é uma forma tentativa de sondar o outro, na qual procuramos não reificar nem a ele nem a nós mesmos, com todo o risco dos preconceitos que isso acarreta, mas sim construindo pouco a pouco uma paisagem comum. Portanto, particularmente quando duas pessoas estão se conhecendo, há um protocolo animado de pequenos testes que examina empatia, conteúdos, e talvez até mesmo o vigor intelectual (normalmente gostamos de gente brilhante e vivaz).

Quando se trata de pessoas que se conhecem bem, aí uma pletora de pequenas referências privadas, com sentido único para aquele grupo exclusivo, é reforçado vez após vez, a fim de sedimentar a intimidade. E nesse “âmbito estabelecido” pode vingar alguma conversa sem rodeios.

O candor pode ser adorável, mas ele também exige uma grande sofisticação da espirituosidade. Isto é, ser quase infantilmente direto com relação a certas coisas muitas vezes, contraintuitivamente, acaba por encobrir o assunto em questão: ser direto sobre algo é, pelo menos naquele momento, ser indireto com relação a todo o resto.

Ambições maiores

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Se não estamos falando de negócios ou flerte, mas a pretensão é esclarecer um ou outro aspecto sutil da realidade sobre o qual se tenha feito uma “descoberta”, ou algo sobre que se precisa alertar o outro, então o âmbito do discurso indireto pode ganhar outra dimensão.

Temos exemplos claros aqui no Brasil, onde a linguagem indireta foi usada como resistência política pela MPB, com coisas como “afasta de mim esse ‘cale-se’” do Chico Buarque e outras milhões de formas de dizer algo sem explicitamente dizê-lo, e ainda dizê-lo mais bonito e de forma mais impactante.

Toda forma de grande expressão literária e poesia invoca uma cornucópia de metáforas, kenningar, brincadeiras de sentido -- coisas que apontam várias interpretações, duplos sentidos, encadeamentos semânticos, e que, se examinados, jogam luz (na acepção de atenção focada) sobre o propósito mais profundo do texto.

Eventualmente a mera desorientação com um forte componente emocional pode, por si só, ser extremamente efetiva. Tanto em provocar a releitura, que sempre é um ganho para todos, quanto em simplesmente promover a aporia. Quando algo nos engaja, nao precisa necessariamente regurgitar sentido.

Ou o sentido pode estar lá, só ser tornado menos óbvio para efeito estético, ou ser feito oblíquo para engajar uma atenção mais sutil.

Mas isso nem sempre é isento. Algumas vezes o universo de sentido comum é cooptado por ideologias particulares, quando seitas recriam o vocabulário e prendem as pessoas numa forma particular de falar que as aliena da sociedade como um todo, ou com uso diabólico dos subtextos na propaganda. George Orwell em seu texto seminal sobre a política na língua inglesa, e também em sua magnum opus, 1984, nos adverte sobre outros usos manipuladores da língua.

E nem precisamos adentrar o campo da engenharia de manipulação das relações públicas e publicidade (já toquei no assunto em Desconfie da Leitura Fácil).

Outras vezes, o duplo sentido de cunho aparentemente apenas sexual se torna uma expressão política, ou até mesmo espiritual -- como ocorre frequentemente no blues, e na linguagem crepuscular do tantra, particularmente na vertente das canções de realização de místicos medievais no subcontinente indiano.

O mojo enquanto libido enquanto energia vital enquanto carisma enquanto falo enquanto amuleto enquanto feitiço... o vajra enquanto realidade última enquanto âmbito de possibilidades enquanto raio enquanto diamante enquanto falo enquanto imperturbabilidade enquanto caminho direto enquanto implemento ritual.

Porém, além desses vários usos do discurso indireto, se apresentam as várias formas menos óbvias de dotar o discurso de uma profundidade maior. Coisas que vão além do, já bastante exigente e sofisticado, uso de figuras de linguagem, polissemia, trocadilhos etc.

Brincadeiras na estrutura

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Uma forma peculiar de constituir o texto poderia ser, por exemplo, orientar a lógica numa direção e a emoção (o pathos, e o gravitas) em outra. No mais das vezes os leitores interpretarão o texto de modo puramente emocional; o modo lógico exige sistemática, precisão e, enfim, é trabalhoso.

A própria sátira muitas vezes possui como uma de suas características essa descontinuidade (a começar pelo exemplo maior, A Modest Proposal, de Jonathan Swift.) A piada no mais das vezes é exatamente apresentar algo totalmente lógico com base em premissas absurdas, e, mais do que isso, manipular a emoção – o que dá ao conteúdo o sabor de não ser uma mera piada, mas algo que deve nos engajar, porque grandes injustiças e desentendimentos trágicos estão de fato ocorrendo. É o riso com aftertaste no iluminismo, e urgência revolucionária.

Mais do que isso, um texto pode ser construído de forma tal que apresente um encadeamento ambíguo, isto é, dois ou mais caminhos lógicos contraditórios (ou pelo menos excludentes um ao outro) podem ser levados a cabo simultaneamente, com todos os pontos cruciais de informação surgindo como reconhecimentos vagos: parece, é possível, é interessante – enfim, tudo que o manual de estilo da Wikipédia explicitamente evita.

Dessa forma, dependendo do conteúdo emocional apresentado concomitantemente, e do tempo que passamos debruçados sobre o texto, um efeito de caleidoscópio de sentidos pode ser produzido. O texto, assim dotado de complexidade, pode se tornar, no melhor dos mundos, não o equivalente a uma pedra vagabunda e mal lapidada, mas a expressão geométrica luminosa da habilidade do lapidador com a estrutura geológica do mineral, no caso, nada menos que a própria consciência que entra em contato com o texto.

Além do código espaguete

Em programação, um “antipadrão”, isto é, uma das formas específicas de fazer as coisas que dificulta manutenção posterior, é simplesmente escrever o código como dá na telha, cheio de gambiarras e remendos, até que funcione.

A massa de instruções, as milhares de linhas de código que resultam disso, é chamada “código espaguete”, isto é não há uma estrutura reconhecível; tentar entender o que algo está fazendo depende de se debruçar sobre o código e entendê-lo como que se “em sua totalidade” -- o que é inviável, até mesmo para o programador original, assim que se passam alguns dias ou semanas desde que ele parou de trabalhar no projeto.

Da mesma forma, pode haver certa virtude em, e pode “funcionar”, um texto que trabalha indistintamente com todas essas formas de brincar com a consciência do leitor. Mas, em geral, o quanto for possível conceder estrutura, e alguns gatilhos familiares no próprio texto (como os treats dados a animais em treinamento) -- ou mesmo comentários sobre o procedimento e o explicitar da finalidade do texto em linguagem clara – isso tende a ajudar a todos os envolvidos.

Diminui a chance do autor ser considerado um mero charlatão. Mas não que isso seja essencial, afinal, faz parte.

O uso do simbolismo na arte pode ser de mau gosto: há certa deliberação indesejável, e um pensamento mágico no sentido de que “algo será captado, não importa o que”, que em muitos âmbitos pode se tornar irritante. E não vivemos mais em uma era psicanalítica ou cabalística, onde quase se espera um jogo de anagramas simbólicos como parte da “diversão”.

Porém é preciso dizer que quem trabalha com o imponderável pode sempre confiar que o texto possua implicações insuspeitas. E, a partir disso, porque não aproveitar e tocar a Flauta de Hamelin para os leitores? Se eles estão aí, convoquemo-los ao espaguete.

Argumentos? Poesia?

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Valéry define o tipo de discurso de que estamos tratando aqui como “uma prolongada hesitação entre som e sentido”. Talvez seja interessante ir além: por som, podemos entender emoção, energia. A prosódia carrega algo do elã vital, e é por isso que, de forma geral, lemos adaptações romanceadas de um filme, e não simplesmente um roteiro. Ou, ainda, ler um roteiro ou uma peça é algo que requer um tipo de aprendizado diferente de ler certos trechos mais convencionais de prosa ou poesia.

Caso conheçamos bem a linguagem do teatro ou do cinema, podemos preencher o “vazio técnico” do texto com nossa experiência.

Mas, de forma geral, se estamos lendo um ensaio ou crônica, trata-se de algo voltado ao som ou ao sentido, ou a ambos. Explico: ou estamos sendo conduzidos emocionalmente, como numa propaganda, ou estamos sendo conduzidos logicamente, e a cogência é mesmo, em certo sentido, totalitária.

Na maioria dos textos, ambas as coisas: há um ou mais objetivos, e somos então “manipulados” a obter o “resultado”, caso o texto seja bem escrito, isto é ouvir e aceitar ou não o que é dito. Estamos tão acostumados a esse tipo de expectativa textual que quando isso é frustrado, o texto não nos cai bem.

O Cubo de Necker

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O Cubo de Necker foi utilizado por Wittgenstein para demonstrar um aspecto da cognição no qual, quando ela está focada, enrodilhada em certos aspectos, isso a torna naturalmente cega a outros.

O exemplo do cubo é o mais simples possível: quando o vértice A parece estar à frente, naturalmente colocamos o vértice B para trás, e vice-versa. Tendemos a conferir tridimensionalidade ao objeto com um dos vértices à frente – vemos a totalidade do objeto de um ou outro jeito, mas podemos “trocar” o vértice e ganhar, literalmente, uma outra perspectiva.

O aspecto interessante é que, quando temos uma, não temos a outra.

Os objetos impossíveis brincam exatamente com essa nossa limitação.

Mas não precisamos nos resumir a umas poucas formas geométricas: esse é um exemplo extremamente simples de um viés cognitivo muito básico. A grande arte, em todas as suas formas, do sorriso da Gioconda, passando por Shakespeare até Breaking Bad, lida com a ambiguidade, e em particular onde ela é mais viva quando toca nas emoções.

Não há nada de novo em trabalhar a tensão cognitiva do interlocutor. É isso que qualquer obra de arte faz, e aliás, é talvez para isso que ela se apresente. Num sentido evolucionista, que precisa explicar funcionalmente por que as coisas surgem, já que é uma ciência, a ficção (pelo menos ela, mas podemos talvez incluir toda a arte) é parte de nosso aprendizado emocional.

Além disso, o texto pode usar de lógica modal, de mundos possíveis, “hipotética”, ou até paraconsistente: além da decisão sobre se devemos ou não especular em bitcoin ou se nossa estratégia de negócios está suficientemente na moda, em outras palavras, sem tomada de decisões ou dicas ao estilo de revista feminina. Voltada unicamente e friamente direcionada para a análise concorrente e simultânea de mundos possíveis. Sim, tudo aquilo que falamos sobre humor (emoções) e sátira MAIS essa lógica paralela, multi-threaded.

O texto como masturbação

O texto, como a maior parte da atividade intelectual, surge, no mais das vezes, num contexto privado e solitário. Muitos manuais e workshops de escrita vão recomendar que você escreva “de maneira que até a sua avó consiga ler”, usando a teoria da mente de uma pessoa estereotipadamente datada e muitas vezes limitada para produzir a escrita mais clara e simples possível, e assim atingir um público mais amplo.

O narcisismo condescendente não é tão diferente do de um James Joyce, que aparentemente não escrevia para “leitores”, mas tendo em vista gerações de acadêmicos altamente especializados.

Mas não interessa qual sua “fantasia”. O processo de lapidar o texto de acordo com leitores imaginários é um processo que espelha a masturbação. Você retoma, reescreve, como quem relembra uma expressão facial, um objeto de fetiche, uma palavra bem colocada e que leva ao gozo ou, como quem dá rewind na pornografia. A acusação de que um discurso seja punheta, por esse lado, é um elogio.

O que seria a metáfora para uma relação sexual, de forma a colocar a masturbação em seu lugar infantil e inferior? A transcrição de um diálogo?

A leitura igualmente obstinada, talvez. O encontro do recipiente perfeito com a essência perfeita, a fricção da matéria espiritual dos nervos em delírio de deleite.

O hipertexto além dos protocolos

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A ousadia do modernismo (fechou um século? três séculos? setenta anos ao menos) foi o nascimento da autoconsciência do texto. De Dom Quixote, um personagem, comentando a publicação do primeiro tomo de suas aventuras até Quero ser John Malkovich e o hipsterismo indie dos anos 90, é muita história, para falar só da ficção. Mas além da autorreferência, a referência intertextual: nada, em lugar algum, é indigno de uma piada interna.

Em vez da vovozinha – a minha aliás, acharia o metacomentário de Dom Quixote total bobagem desnecessária! – lendo um autor dotado do Olho de Deus, o leitor, este sim, tomado como onisciente.

O texto não é jamais algo a ser visto como completo, autoconsistente, autocontido: ele não é apenas a culminância de tantos outros, mas também o ponto de partida.

O nascimento das ferramentas computacionais que permitiram a hipertextualidade não ocorreu sem essa influência: os princípios já existiam dezenas de anos antes das aplicações; e a intertextualidade e visões de interligação de textos, muito antes do que isso.

A quimera da simplicidade

A ânsia pelo texto limpo, suave, reto – a história contada sem rodeios, sem jogos; a descrição ou argumentação sinceras, de coração, puras – um sonho hoje talvez impossível. O texto surge num âmbito de reciclagem eterna, e as modas literárias se sucedem aos segundos. O que torna um texto interessante é o quanto ele convive com sua irrelevância ao mesmo tempo em que aponta nem que seja um lampejo de algo original, nem que esteja fingindo originalmente, ao menos.

Não se exige conteúdos ou formas originais; um mero tratamento em suficiente desuso regurgitado num momento inusitado já tá valendo.

E há o mercado do texto sem autorreflexão, claro. O texto que encontra seu leitor no pacto de mediocridade, ou no showroom ideológico. E tudo bem com isso, porém, as “técnicas de SEO” (a optimização de código, sintaxe e semântica que se faz em páginas de internet para melhorar nos rankings das máquinas de busca, essencialmente, aparecer mais na frente no Google) voltadas para tempos geológicos e “leitores oniscientes” são diferentes das técnicas de promoção publicitária do verão.

Com relação a isto, devemos ter clareza.

Uma Modesta Proposta

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Que tal simplificar nossas expectativas? Cada letra é, por si só, uma expressão da onisciência, e deve ser respeitada como tal.

Os encadeamentos sintáticos e semânticos, as estruturas lógicas e as brincadeiras textuais, seja em que nível e de que forma se apresentem, estão perfeitos na expressão pura que é união do leitor com o universo de sentido, que está, para sempre, além do autor.

Perder isso tudo, uma tragédia. Engajar-se como estudioso do Zohar sobre a palavra do Mais Alto, oxalá nossa atitude banal. A cabala do Aleph ao Tao expressa na mandala mais detalhada e intrincada que possamos manter em memória. Glória, aleluia.

Senão isso, pelo menos ler direito, com caridade e esforço correto.

Leitor onisciente, ou pelo menos um SEO atemporal.

Asshole ou Mahatma, você decide.

Obs: as imagens que ilustram esse texto (menos o próprio cubo) são do artista gráfico holandês M.C. Escher.


publicado em 17 de Janeiro de 2014, 22:00
File

Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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