Caneta, lanterna, carimbo, estetoscópio, avental. Talvez um colete a prova de balas fosse útil — aventais tornaram-se alvos em nosso tempo. Os vizinhos chegam da noite farta enquanto saio em direção ao front. As 24 horas assomam como um calvário impiedoso.
Despeço-me dela, de casa, do meu direito a espaço próprio. No caminho até o hospital, o mundo sempre parece um bom lugar para se viver, talvez por se despedir a cada esquina. Somos complicados.
Chego ao hospital e ele cheira a nada. Quando era criança, sabia exatamente o cheiro que devia ter um hospital. Aparentemente o hábito silenciou essa acuidade.
Cumprimentamo-nos com ares de “Fazer o quê?”, enquanto alguns forçam uma simpatia nitidamente desesperada. O colega passa os casos e a chave na minha cabeça vira para o “modo plantão”. Diagnósticos, números, exames, antibióticos, números, equipes, números. Fiz Medicina, mas, ainda bem, sempre gostei de exatas — se não estaria encrencado.
Há que se ter heurística na vida, como bem descreveu Eduardo Pinheiro. Controles, exames, prescrição, monitor, dispositivos, sondas, cateteres, bombas de infusão, ventilador mecânico, máquina de diálise. No meio de tudo, escondido, alguém que não queria estar lá.
— Bom dia, seu João. Meu nome é Lucas, eu sou médico da UTI. Como o senhor está?
— Grmpffmyarghstnaaa…
Seu João não parece entender muita coisa, nem se importar em se comunicar. Seu João sofre, rendido e vulnerável. Seu João depende que seres que nunca antes o viram ofereçam seu melhor e lutem por ele. Esse peso nunca fica mais leve.
Famílias sofrem e fazem sofrer nesse redemoinho de visões. Nunca se entende exatamente a fala do outro. Enfrentamos nus e despreparados as conversas mais importantes da nossa vida. Depois de uma hora de reunião:
— Doutor, mas é grave?
Respiro fundo e recomeço. A dor, a fragilidade ou a morte de quem amamos nunca são simples de entender. Só espero poder fazer o melhor por aquele ser no leito 15, cuja família desmorona e bate cabeças à minha frente, questionando e exigindo as coisas mais estapafúrdias para o quadro que descrevo a eles.
O mundo ofega lá fora, surdo e alheio. Sons, gostos, risos e o sol no gramado. Ou a lua no concreto, não importa. O barco segue dia e noite e dia e noite e dia e noite e noite e noite. Noite. Dia? Esse dormir acordado, nosso e deles. Eles? Pensei ser o mesmo barco, o nosso e o deles. Combatemos juntos demônios diversos. Combatemos o outro. Combatemos nós mesmos. Falar de coração não é fácil. Esse dormir acordado. Beep-beep-beep eterno!
Aonde vamos? As mãos atadas. Visão turva. Dor, asco e bravura. O tempo é um novelo de enganos. Se tivéssemos mais por aqui. Se tivéssemos menos daqui. Que horas são? Esse dormir acordado. Onde? O silêncio grita e ninguém escuta. Paredes avançam e recuam, derretem-se e transfiguram-se. Não deixam nunca de oprimir. Não posso demonstrar fraqueza. Sangue, suor e excrementos. Solidão e angústia. Esse dormir acordado. Tem alguém aí?
— Por que a senhora está chorando, dona Maria?
— De emoção, doutor. Por estar viva.
O lapso de lucidez de dona Maria. As mãos frágeis de dona Maria apertando forte as minhas. O olhar escancarado e brutalmente honesto de dona Maria, viva, viva, viva. É isso que eu quero ser quando crescer.
O plantão acaba, mas o barco segue, dentro e fora. Há sangue, medo e amor na UTI. Dos dois lados do avental branco.
Sobre a série colaborativa “Mundo interno”
Junto com as pessoas que participam do lugar e também com qualquer leitor ou leitora do PdH que quiser colaborar, vamos publicar alguns textos com essa motivação de mapear e ganhar clareza sobre nossos mundos internos.
A ideia é descrever em primeira pessoa, iluminando por dentro, processos que normalmente são abordados de modo exteriorizado. Será um exercício de introspecção e também de linguagens mais precisas, estimulado empatia e conversas mais profundas.
Em vez de testar mais um método de produtividade, como posso trabalhar diretamente com os processos sutis de distração, torpor e ansiedade? Se lá fora vejo qualquer que seja o fenômeno, o que vejo quando olho para dentro? Qual o mundo interno de uma empresa? De uma avenida congestionada? De um site como o Facebook ou o PapodeHomem? Quando aparentemente estamos aqui ou ali, onde estamos de verdade?
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