Esses dias assisti a um documentário da BBC — Family Guys? What Sitcoms say about America now? — sobre a capacidade que as sitcoms americanas tinham de captar o “espírito do tempo”, o Zeitgeist. E como elas conseguiam, muitas vezes, mais liberdades que séries dramáticas ou até canais de notícias, para tocar em temas espinhosos por usar uma ferramenta única: o riso.

A suavização que o riso pode dar a temas polêmicos pode ajudar, aos poucos, a derrubar tabus, colocar assuntos em pauta e causar reflexão.

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E, para algo ser engraçado, é preciso fazer com que o espectador se identifique com alguma cena, personagem, situação ou reação, trazer algo do repertório dele para fazê-lo, enquanto assiste, rir de si mesmo. Para ter piada, é preciso ter contexto.

Na procura desses elementos de identificação entre espectador e público, nada mais natural que a matéria-prima seja a “realidade”, as mudanças comportamentais do momento e os conflitos e dilemas dos dias atuais. Não à toa, parcela significativa das sitcoms situam-se dentro de um núcleo familiar, presente na vida da maioria dos espectadores.

A partir das sitcoms familiares podemos ver como a configuração das famílias foi mudando conforme o tempo. Da família de pais hippies de Family Ties, passando pelos recém divorciados em Step By Step até a família que personifica a crise financeira que a classe média norte-americana vive em The Middle; em todas elas podemos ver, em algum grau, questões importantes relativas ao tempo em que estavam sendo feitas, que tinham reverberação no público.

Como muitas vezes os criadores dessa sitcoms precisavam achar as questões a serem tratadas antes delas serem verbalizadas, antecipando-se nos temas e abordagens, muitas vezes eles trabalhavam no limite do que era “aceitável” para a sociedade. Um dos casos mais representativos é de uma série de 1977 chamada Soap. A trama girava em torno dos exageros das novelas americanas, conhecidas também como Soap Operas. Lá, tínhamos um dos primeiros personagens gay assumido, interpretado por Billy Crystal. Aqui um trecho emblemático:

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É possível ver que, apesar de estarem abordando uma questão muito à frente de seu tempo, ela fora tratada como uma “aberração”, buscando a piada por meio do grotesco. O resultado foi muito negativo: o público mais conservador se incomodava com o personagem, enquanto diversas entidades de movimentos ligados aos diretos dos homossexuais também ficaram contrafeitos com o jeito caricato e exagerado da representação.

Alvo de diversas polêmicas, a série foi cancelada ao final de sua quarta temporada.

Nos anos 90 surge outra sitcom, Ellen, interpretada pela Ellen DeGeneres. Sucesso de público, teve sua segunda temporada entre as séries mais assistidas nos EUA. Nesse período, Ellen, a atriz protagonista, resolve vir à público para revelar-se assumidamente gay.

A “polêmica” que lhe rendeu a capa da revista Time, na época com grande circulação e relevância, balançou o mundo do show business. Nos anos 90, 50% da população dos EUA acreditava que o ato sexual entre duas pessoas do mesmo sexo deveria ser considerado um crime e, de repente, a protagonista de um dos shows mais queridos desse público revela-se homossexual.

Na onda da possibilidade de tratar um tema importante, e aproveitando a voz que já tinham, os criadores da série decidiram que a protagonista também seria gay no programa, chegando a um dos episódios mais importantes da história da TV americana.

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No episódio, Ellen luta consigo mesma, com suas contradições e seu autoengano, até chegar no final e assumir-se gay. Um dos trunfos da série foi fazer com que a orientação sexual da personagem e da atriz não fosse uma piada em si, sem precisar transformar a homossexualidade em motivo de deboche, desmistificando um medo que tinham os espectadores mais conservadores, trazendo para dentro de suas salas um traço que antes não conseguiam (ou não tentavam) compreender.

De lá pra cá, aumentou o número de sitcoms que tiveram personagens gays em seus núcleos principais. Para citar algumas emblemáticas, podemos colocar: Will & Grace, Lookinge Modern Famly. Essa última, com a diferença de colocar um casal gay que adota um bebê dentro de um núcleo familiar com um pai que precisa vencer o próprio preconceito para conseguir dar vasão ao amor que sente pelo filho.

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Infelizmente, aqui no Brasil o tema ainda é tratado como tabu. O Jader escreveu, inclusive, um artigo sobre a comoção que um beijo gay causa entre o público da novela. Em 2014. É de se pasmar que um beijo cause mais polêmica e revolta do que a violência, especialmente a não ficcional, com que somos expostos nos programas de fim da tarde.

A série nacional de comédia Vai Que Cola, um hit do canal Multishow, tem em seu elenco fixo dois personagens que são gays. Se por um lado, pode existir uma “boa intenção” em colocar esses personagens na trama, por outro, muito mais grave, existe o problema da risada ser quase sempre atrelada a um maneirismo e a uma caricatura de um desvio de comportamento “esperado” que um personagem gay tenha.

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Se o tema homossexualidade, ainda que lento e a duras penas, tem ganhado um pouco mais de espaço na TV norte-americana, existem temas que ainda são muito difíceis de abordar, como a divisão racial e a nítida separação que existe na representatividade dos negros na TV. É muito comum vermos séries com o elenco todo composto por brancos, e, por consequência séries compostas apenas por negros, criando uma clara, mas não falada, divisão de público.

Se nos anos 90, Friends era uma série com um sucesso absoluto de audiência, ela estava longe de ser a líder entre os negros, que preferiam assistir a séries como Living Single, por exemplo. A trama girava em torno de seis amigos solteiros que atravessam juntos a chegada da vida adulta, morando em Nova Iorque. Coincidência, ou não?

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Outra curiosidade é a Girlfriends, uma série sobre quatro amigas negras, modernas, e seus problemas de relacionamentos. Claramente uma referência direta ao Sex And The City. O documentário cita ambos os exemplos e nos faz pensar na dificuldade em que as séries têm de tratar do tema de uniões e casamentos inter-raciais. Hoje, 1 em cada 7 casamentos nos EUA é composto por membros de etnias diferentes.

Até no Modern Family, quando querem tratar do tema do casamento inter-racial, colocam uma colombiana hispânica gata, tangenciando o foco da real situação que gostariam de retratar. Aparentemente, então, existe um acordo tácito para produzir séries com protagonistas brancos para brancos, e séries com protagonistas negros para negros, com uma dificuldade em encontrar um ponto comum entre eles (com exceções, claro).

No Brasil a situação também é gritante. O Alex Castro já escreveu bastante sobre o tema e da evidente hegemonia dos brancos na dramaturgia televisiva e, especialmente, nas campanhas publicitárias. Recentemente, a Globo colocou no ar uma série chamada Sexo E As Negas, tentando engrossar um pouco a oferta dramatúrgica de produtos com protagonistas negros. A tentativa, porém, esbarrou na polêmica que o próprio título da série vem causando, criando, talvez, um efeito contrário ao que se destinava.

Olhar para as comédias de sucesso torna-se uma boa maneira de olharmos para nós mesmos, rir das nossas falhas e pensar nas contradições de nossa sociedade. Enxergar que ali, no riso, pode ter muito mais coisa escondida ou implícita.

Quem não ria do Caco Antibes no Sai de Baixo, quando ele dizia que odiava pobre e festa com cajuzinho? O quão pertinente não era aquele personagem, vindo de uma família tradicional falida, com medo do que estava se tornando, para o momento do nosso país?

Ajude a série Os Britos Também Amam

Como produtor, é muito legal estar de olhos abertos a esses personagens, e encontrar recortes interessantes para explorarmos.

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A próxima série que irei dirigir, Os Britos Também Amam, é uma comédia que fala muito sobre a dificuldade de amadurecimento do protagonista, e como ele é forçado ao seu maior pesadelo ao descobrir que é pai. É uma iniciativa completamente independente e estamos em campanha de financiamento coletivo no Catarse. Se alguém quiser conhecer e colaborar, fica aqui o link e nossos agradecimentos.

Paulo Leierer

Escreve e dirige (tirou sua carta em 2003). É apaixonado por cinema desde que viu Esqueceram de Mim" e morre de vergonha de escrever em terceira pessoa."