Nota do editor: se você não conhece Ken Wilber e deseja uma visão genial para mapear e integrar toda a pluralidade de perspectivas que encontra por aí, siga lendo. Suas obras foram essenciais para ampliar meu olhar – tanto que, em 2002, criei o primeiro grupo online sobre Ken Wilber. A entrevista exclusiva sai amanhã, agora fiquem com a introdução de Felipe Cherubin.

Percurso para uma visão integral

Ken Wilber é uma figura difícil de definir. Pensador contemporâneo com uma proposta de integrar todo o conhecimento humano, ele trabalha com ciência, filosofia, ética, espiritualidade e arte.

As contribuições wilberianas no campo da psicologia, por exemplo, tiveram tal impacto cultural que a crítica o aclamou como o “Einstein da psicologia moderna”. Com 23 livros traduzidos para mais de 30 idiomas, ele é um dos poucos autores vivos presenteados com suas “Obras completas”, em 9 volumes ao melhor estilo enciclopédico.

Nascido em Oklahoma City, EUA, em 1949, viveu em diversas cidades ao longo de sua vida já que seu pai pertencia à força aérea americana. Assim que completou o segundo grau em Lincoln, Nebrasca, começou o curso de Medicina na universidade de Duke. Logo no primeiro ano de curso perdeu o interesse pela carreira médica e começou a estudar psicologia e filosofia por conta própria. Posteriormente, voltou a Nebraska e completou um mestrado em bioquímica, abandonando em seguida a carreira acadêmica para se dedicar aos estudos e a prática da meditação.

Créditos: Felipe Cherubin.

Até 1998 Wilber era tido como uma figura arredia optando por não lecionar e não aparecer em eventos sociais. Preocupava-se estritamente em escrever e conduzir suas pesquisas. Foi nesse ano que fundou o Integral Institute para fomentar pesquisa, educação e filantropia. O Integral Institute hoje desenvolve um trabalho em 26 áreas do conhecimento humano e conta com mais de 400 pesquisadores.

Posteriormente, criou uma universidade e um centro dedicado à discussão ecumênica, atuando assim por meio de três frentes institucionais. Wilber e a equipe de assessoria política do Integral Institute trabalharam com Al Gore, Clinton, Bush e Tony Blair. Gore e Clinton, por exemplo, declararam publicamente a admiração pela obra wilberiana.

Wilber começou sua trajetória intelectual fazendo um estudo sistemático das escolas de psicologia ocidentais e das tradições de sabedoria orientais, o que deu origem ao seu primeiro livro, O Espectro da Consciência, escrito quando o filósofo tinha 23 anos. A evolução da obra escrita de Wilber é indissociável do amadurecimento do próprio filósofo, marcado por grandes rupturas, tanto teóricas quanto pessoais.

Como integrar Freud e Buda?

“I have one major rule: everybody is right. More specifically, everybody—including me—has some important pieces of the truth, and all of those pieces need to be honored, cherished, and included in a more gracious, spacious, and compassionate embrace.”
Tradução livre: “Eu tenho uma grande regra: todo mundo está certo. Mais especificamente, todo mundo – eu incluso – possui alguns importantes pedaços da verdade, e todos precisam ser honrados, valorizados e incluídos em um abraço gracioso, espaçoso e compassivo.”

Em seus primeiros estudos, Wilber chegou a um impasse. Deparou-se com Freud dizendo que para ser feliz você precisa fortalecer seu ego enquanto Buda ensinava que para ser feliz você deve, metaforicamente, morrer para o seu ego. Ou seja, duas afirmações aparentemente contraditórias. Qualquer pessoa diria que Freud está certo e Buda errado ou vice-versa.

A originalidade de Wilber está na percepção profunda desse impasse. Diante de dois gênios da humanidade, ele não conseguia aceitar que um deles pudesse estar completamente errado. A solução foi afirmar que ambos estão certos, mas parcialmente certos.

Tal insight norteou todo o pensamento wilberiano no sentido de que ninguém erra 100%, todos tem alguma contribuição para dar. Seu esforço intelectual, então, se concentrou na tarefa de como integrar as verdades parciais de quase todos os saberes da humanidade (da física à sociologia) num sistema explicativo, numa matriz que respeite a hierarquia e o senso de proporção de cada proposta.

Link YouTube | Ken Wilber fala sobre espiritualidade e ciência.

A falácia pré-trans: o paraíso está atrás ou à frente?

Wilber divide sua obra em cinco fases. A segunda e terceira fases são marcadas pelo rompimento teórico com concepções românticas em que o filósofo cometeu graves erros de interpretação, o que posteriormente ele chamou de falácia pré-trans, e por um período de isolamento em função do câncer fatal de sua esposa Treya.

Wilber identifica a falácia pré-trans em Freud, que confundiu o transpessoal com o pré-pessoal, e nos entusiastas new age, que muitas identificam traços pré-pessoais e transpessoais, como se sabedoria fosse uma questão de retornar ao mundo tribal ou virar crianças novamente.

Para Freud, o transpessoal, ou seja, a espiritualidade e as tradições religiosas eram todas epifenômenos de estados pré-pessoais, infantis. Carl Jung, no início de seus escritos fez o contrário, os arquétipos que seriam em sua maioria pré-pessoais foram elevados ao status transpessoal. Essa posição junguiana rendeu um comentário inusitado por parte do imortal da academia francesa René Girard. Em seu livro Coisas Ocultas Desde a Fundação do Mundo, o antropólogo assinala com bastante finésse essa inversão junguiana ao tratar da violência humana: “Não é Jung com seus arquétipos cheirando a água de rosas que poderá nos esclarecer sobre isso” (pág 141).

Dentro deste contexto, já desprovido de concepções românticas, Wilber entende que os “bons selvagens” viviam em estado pré-pessoal e não se viam ainda como individualidade, ou seja , não eram tão bons assim. Os povos primitivos destruíam, sim, a natureza, mas com a tecnologia de que eles dispunham a destruição era pouco expressiva. A “pureza” da criança é outro dogma romântico, pois ela ainda está de fato num estágio de pré-pessoalidade, de fusão, que interpretamos, erroneamente, como inocência. A bondade pressupõe o outro e num estágio de pré-pessoalidade você não se vê, muito menos o outro.

Leia também  [18+] As deliciosas imagens sensuais de Pequenas Luxúrias

Assim, ao invés da visão romântica da recuperação da bondade, estamos avançando em busca da bondade, desde sempre. O desenvolvimento humano, de acordo com Wilber, segue pelos níveis pré-pessoal, pessoal e transpessoal, sendo que as concepções de tipo românticas apropriam-se de níveis pré-pessoais e os elevam ao status de transpessoais (e vice-versa).

A obra Éden: Queda ou Ascensão?, recém lançada no Brasil com tradução de Ari Raysnford, marca a ruptura definitiva com o romantismo psicológico. Wilber utiliza o conceito de dialética do progresso do filósofo alemão Jürgen Habermas e o trabalho do suíço Jean Gebser para desenvolver o arcabouço intelectual dessa nova perspectiva.

O modelo integral: para entender todas as visões da humanidade

Um mapa pra você encaixar quase todas as visões existentes (clique para ampliar)

A partir da quarta fase, reconhece-se um pensamento realmente maduro do filósofo, do qual a obra Psicologia Integral é um paradigma. É nesta fase que Wilber apresenta o Modelo Integral com seus cinco componentes: quadrantes, níveis, linhas, estados e tipos. Os quadrantes representam quatro perspectivas inatas de todos os seres sencientes: intencional (interior do indivíduo), cultural (interior do coletivo), comportamental (exterior do indivíduo) e social (exterior do coletivo).

Esse modelo integral pode ser entendido pela analogia proposta pelo maior estudioso brasileiro de Ken Wilber, Ari Raysnford: “Um GPS do ser humano”.

Wilber entende que a História não se separa da noção de consciência. A dinâmica histórica começa com a pré-modernidade, da Antiguidade até a Idade Média, na qual os três domínios fundamentais da atividade humana – a estética (o belo), a ciência (o verdadeiro) e a moral (o bem) – estavam fundidas sob a esfera da religião. Com o renascimento, que dá inicio a era moderna e que Wilber chama de “a dignidade da modernidade”, houve a diferenciação entre estética, ciência e moral (as três criticas kantianas são o exemplo máximo): o artista podia criar sem a preocupação de ser uma obra sacra, o cientista podia pesquisar livremente sem o temor de represálias eclesiásticas e temporais e a religião podia se preocupar estritamente com aquilo que lhe é próprio.

A pós-modernidade seria o passo seguinte. Uma vez feita a diferenciação seria necessária uma integração. Wilber aponta, no entanto, que ocorreu uma patologia nesse processo. Dissociação em vez de integração: os homens começaram a se apegar radicalmente e até emocionalmente com fetiches materialistas, idealistas, culturalistas, historicistas, processo que ele chamou de “absolutismo de quadrante”.

Dentro desse contexto, Wilber reavalia a noção de Dinâmica da Espiral de Clare W. Graves, Don Beck e Chris Cowan, e resgata o conceito de hólon de Arthur Koestler, demonstrando que a dimensão humana e da realidade em geral constitui uma tensão entre o todo/parte: tudo o que existe não é nem apenas todo nem apenas parte, tudo o que existe é um hólon, ou seja, uma tensão que nunca pode ser reduzida como mera parte ou como um todo definitivo, pois resguardam na sua estrutura aspectos qualitativos.

O desconhecimento dessa tensão básica tende a levar ao reducionismo, ou, na terminologia wilberiana, ao “absolutismo de quadrante”: o idealismo que crê que só a mente é a realidade, o cientificismo que crê que só a matéria é a realidade, o pós-modernismo que crê que todo significado construído culturalmente é a realidade e a teoria sistêmica que acredita nas estruturas sócio-históricas como sendo a realidade última.

A partir de 2002 Wilber iniciou sua quinta fase, tentando demonstrar que conhecimentos do tipo metafísico – no sentido de entidades de outro mundo e de clara conotação literal – surgem em momentos de pouco desenvolvimento intelectual. O filósofo não abandona o aspecto da transcendência, mas pretende reavaliar crenças antigas e superstições modernas, que fogem de nosso mundo objetivo e vivenciado.

Livros além da teoria integral

Com sua mulher, Treya, que morreu em sua cama, vítima de câncer.

Entre mais de 20 livros (sua obra-prima, Sex, Ecology, Spirituality, tem 880 páginas), Wilber escreveu também um romance e dois relatos sobre sua vida:

  • O volume autobiográfico One Taste (1999), ainda sem tradução, com diversas passagens sobre seu cotidiano de escritor, suas práticas de meditação e relatos de seu relacionamento.
  • O romance Boomerite (2002), fazendo uma crítica ácida e bem humorada da geração dos baby boomers e seus sucessores, nascidos entre 1946 e 1964, mostrando como a cultura americana desse período experimentava pela primeira vez uma concepção pluralista do mundo ao mesmo tempo em que criava as justificativas mais sofisticadas para endossar um narcisismo nunca antes constatado em nenhuma civilização.
  • E Graça e Coragem (1991), relato autobiográfico sobre vida, morte e transformação no relacionamento com sua esposa Treya e o câncer de mama descoberto logo após o casamento.

Leia aqui a segunda parte com a entrevista exclusiva com Ken Wilber, a primeira feita por um jornalista brasileiro (e nunca antes publicada), por incrível que pareça. Para os mais interessados, há inúmeros longos textos em português na sala de leitura do site do Ari Raysnford.

Felipe Cherubin

Jornalista, formado em Direito e Filosofia, cursou filosofia na Harvard Extension School e é colaborador do jornal O Estado de S. Paulo, Revista Cult e Revista Dicta & Contradicta. Trabalha na <a>É Realizações</a> (<a href="http://twitter.com/erealizacoes">@erealizacoes</a>)."