David Foster Wallace foi um escritor e jornalista norte-americano. Suicidou-se em 2008, após duas décadas às voltas com a depressão. Sua obra literária tem sido apontada como uma das coisas mais inteligentes produzidas nas últimas décadas. A revista Time chega a dizer que Infinite Jest é um dos cem melhores livros escritos em inglês desde 1923.
Um outro motivo por que o nome de Foster Wallace tem sido lembrado nesses tempos, é porque ele foi um dos primeiros a apontar os perigos de deixarmos a ironia e o fascínio estético pautarem nossas relações e processos de comunicação. Isso há exatos 10 anos, começando pelo seu E Unibus Pluram.
Bom, mas hoje queria relembrar outra aparição memorável de Foster Wallace. Em 2005 ele foi convidado para fazer um discurso de formatura para os alunos da Kenyon College, e o resultado foi uma fala das mais ousadas e inteligentes, quase impiedosas, de deixar a gente até um pouco desconfortável. Realmente bonito, eu acho. Bonito e necessário.
Aqui há uma versão legendada e completa da fala, de 22 minutos. Se estiver com tempo, sugiro mesmo ver ela. Mas também eu queria mostrar essa edição lindona de áudio e imagens, e mais enxuta, que o pessoal da The Glossary produziu recentemente. Vale recostar-se pelos 9 minutos:
Alguns trechos que destaco:
Todas as experiências pelas quais vocês passaram tiveram, sempre, um ponto central absoluto: vocês mesmos. O mundo que se apresenta para ser experimentado está diante de vocês, ou atrás, à esquerda ou à direita, na sua tevê, no seu monitor, ou onde for. Os pensamentos e sentimentos dos outros precisam achar um caminho para serem captados, enquanto o que vocês sentem e pensam é imediato, urgente, real. Não pensem que estou me preparando para fazer um sermão sobre compaixão, desprendimento ou outras “virtudes”. Essa não é uma questão de virtude – trata-se de optar por tentar alterar minha configuração padrão original, impressa nos meus circuitos. Significa optar por me libertar desse egocentrismo profundo e literal que me faz ver e interpretar absolutamente tudo pelas lentes do meu ser.
Estou certo de que vocês já perceberam o quanto é difícil permanecer alerta e atento, em vez de hipnotizado pelo constante monólogo que travamos em nossas cabeças. Só vinte anos depois da minha formatura vim a entender que o velho clichê de “ensinar os alunos como pensar” é, na verdade, uma simplificação de uma ideia bem mais profunda e séria: aprender a pensar na verdade significa aprender a exercer algum controle sobre como e o que você pensa. Significa estar consciente e atento o suficiente para escolher ao que você presta atenção e para escolher como você constrói significado a partir da experiência. Porque se vocês não puderem fazer esse tipo de escolha na vida adulta, estarão em apuros.
Acredito que a essência de uma educação na área de humanas, eliminadas todas as bobagens que vêm junto, deveria contemplar o seguinte ensinamento: como percorrer uma confortável, próspera e respeitável vida adulta sem já estar morto, inconsciente, escravizado pela nossa configuração padrão – a de sermos singularmente, completamente, imperialmente sós.
Claro que nada disso é provável, mas tampouco é impossível. Tudo depende do que vocês queiram levar em conta. Se estiverem automaticamente convictos de conhecerem toda a realidade, vocês, assim como eu, não levarão em conta possibilidades que não sejam inúteis e irritantes. Mas, se vocês aprenderam como pensar, saberão que têm outras opções. Está ao alcance de vocês vivenciarem uma situação “inferno do consumidor” não apenas como significativa, mas como iluminada pela mesma força que acendeu as estrelas.
Relevem o tom aparentemente místico. A única coisa verdadeira, com V maiúsculo, é que vocês precisam decidir conscientemente o que, na vida, tem significado e o que não tem.
Nas trincheiras do dia-a-dia, não há lugar para o ateísmo. Não existe algo como “não venerar”. Todo mundo venera. A única opção que temos é decidir o que venerar. E o motivo para escolhermos algum tipo de Deus ou ente espiritual para venerar – seja JC ou Alá, seja Jeová ou a Deusa Mãe Wicca, ou as Quatro Nobres Verdades, ou algum conjunto inviolável de princípios éticos – é que todo outro objeto de veneração te engolirá vivo. Quem venerar o dinheiro e extrair dos bens materiais o sentido de sua vida nunca achará que tem o suficiente. Aquele que venerar seu próprio corpo e beleza, e o fato de ser sexy, sempre se sentirá feio – e quando o tempo e a idade começarem a se manifestar, morrerá um milhão de mortes antes de ser efetivamente enterrado.
No fundo, todos nós já sabemos de tudo isso. É o que está no coração de mitos, provérbios, clichês, epigramas e parábolas. Ao venerar o poder, você se sentirá fraco e amedrontado, e precisará de ainda mais poder sobre os outros para afastar o próprio medo. Venerando o intelecto, sendo visto como inteligente, acabará se sentindo burro, um farsante na iminência de ser desmascarado. E assim por diante.
Mas a parte traiçoeira destas formas de adoração não é que elas sejam ruins ou pecaminosas – é que elas são inconscientes. Elas são configurações padrão. São o tipo de veneração em direção à qual você vai gradualmente se acomodando, dia após dia. Você se torna mais seletivo em relação ao que quer ver, ao que valorizar, sem nem mesmo se dar conta de que esta fazendo escolhas.
O chamado “mundo real” não o desencorajará de operar na configuração padrão, porque o chamado “mundo real” dos homens e dinheiro e poder cantarola alegremente numa poça de medo e raiva e frustração e desejo a a veneração que cada um faz de si mesmo. A nossa cultura consegue canalizar essas forças de modo a produzir riqueza, conforto e liberdade pessoal. Ela nos dá a liberdade de sermos senhores de minúsculos reinados individuais, do tamanho de nossos crânios, onde reinamos sozinhos.
Esse tipo de liberdade tem suas vantagens. Mas existem outros tipos de liberdade. Sobre a liberdade mais preciosa, vocês pouco ouvirão no grande mundo adulto movido a sucesso e exibicionismo. O tipo de liberdade que realmente importante envolve atenção, consciência, disciplina, esforço e capacidade de efetivamente se importar com os outros, repetidamente, numa miríade de maneiras triviais e sem glamour, todos os dias. Isso é liberdade de verdade. Isso é ser educado, e compreender como pensar.É sobre o valor real de uma educação real, que não tem quase nada a ver com conhecimento, e tudo a ver com simples consciência; consciência do que é tão real e essencial, tão oculto à vista de todos nós, o tempo todo, que nós temos que ficar lembrando a nós mesmos, de novo e de novo: “Isso é água. Isso é água.”
É inimaginavelmente difícil fazer isso, ficar consciente e vivo no mundo adulto, um dia após o outro. O que significa que outro grande clichê também é verdade: a sua educação realmente é o trabalho de uma vida toda. E começa agora. Eu desejo a vocês muito mais que sorte.
Se quiser ir adiante
- A aura da ironia – por Sérgio Rodrigues
- Cinco notas sobre a franqueza – por Daniel Pellizzari
- Ironia rasteira e ironia trágica – por Eduardo Pinheiro
- Como viver sem ironia — por Christy Wampole
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