Alex de Castro é escritor, autor dos llivros Mulher de um homem só (romance, 2009), Onde perdemos tudo (contos, 2011), Outrofobia (ensaios, 2015) e Autobiografia do poeta escravo (história, 2015), e parceiro do PdH há mais de 10 anos.
Seu último livro de ensaios, Atenção., foi publicado este ano pela Editora Rocco e faz parte da Triologia do Outro. Conversamos com Alex para ouvir e refletir sobre a atenção a qual ele se refere.
Uma trilogia do Outro.
Como Atenção. se relaciona com o conceito de Outrofobia, tema de sua obra anterior? O livro atual pode ser considerado um desdobramento do que você já abordara ali?
A outrofobia é o problema, a atenção é a ferramenta, o cuidado é a solução. Só por meio da atenção às outras pessoas saberemos como cuidar delas.
Nenhum ato pode ser mais político e mais transformador do que enxergarmos e cuidarmos umas das outras. Cuidado sem atenção, porém, é no mínimo superficial, quase sempre equivocado e às vezes até nocivo. Já atenção sem cuidado, a empatia sem ação efetiva, não passa de um capricho complacente de pessoas privilegiadas.
Falar de ação política e de mudança social sem falar de atenção e de cuidado é inócuo, vazio, inconsequente. Falar de atenção e de cuidado sem falar de ação política e de mudança social é inócuo, vazio, conformista.
Agir no mundo com atenção e cuidado é uma prioridade política, um gesto transformador, uma atitude revolucionária. Por isso, o livro Atenção. pode ser resumido em uma única frase: sem atenção, não há cuidado.
O que é então outrofobia?
Bem, alguns dos maiores problemas sociopolíticos de nossa época, como o machismo e o racismo, a homofobia e a transfobia, o capacitismo e o etarismo, têm origem em uma rejeição fundamental ao Outro, ou seja, à pessoa que é diferente, à pessoa que não sou eu.
Em 2012, escrevendo principalmente sobre política, eu sentia falta de um termo guarda-chuva que me permitisse me referir a todas essas “aversões” de uma vez só. Como não existia, inventei:
“Outrofobia. s.f. Rejeição, medo ou aversão ao Outro. Termo genérico utilizado para abarcar diversos tipos de preconceito ao Outro, como machismo, racismo, homofobia, elitismo, transfobia, classismo, gordofobia, capacitismo, intolerância religiosa etc.”
Mais tarde, em 2015, os meus melhores textos sobre esses temas foram reunidos no livro Outrofobia: textos militantes, lançado pela editora Publisher Brasil.
Um dos temas principais do livro era o privilégio. Afinal, o outro lado da moeda de qualquer outrofobia-que-oprime é o privilégio-que-beneficia: privilégio seria tudo aquilo que nos beneficia mas não enxergamos porque nossa própria experiência de vida nos ensina a naturalizar e a normalizar.
Do ponto de vista de um homem, por exemplo, privilégio masculino é tudo aquilo que o beneficia mas ele não vê justamente por ser homem, e que está visivelmente ausente e dolorosamente palpável na vida das pessoas que não são.
Ou seja, o privilégio masculino se manifesta, dentre muitas maneiras, na falta de atenção dos homens às opressões que sofrem as mulheres, e o mesmo vale para privilégio branco, privilégio hétero, etc.
Se o privilégio é invisível por definição, então, a única maneira de percebê-lo é se abrindo para as experiências e relatos das outras pessoas, das pessoas que o enxergam, das pessoas que sentem a dor da sua ausência, ouvindo-as e abraçando-as, aceitando-as e acolhendo-as, sem interpelar nem minimizar. Em outras palavras, dando a elas nossa atenção. (A 13ª prática de atenção é sobre visualizar privilégios.)
Pois nenhum ato pode ser mais político e mais transformador do que enxergarmos e cuidarmos umas das outras. Uma prática política ou religiosa que não coloque as outras pessoas como foco será sempre inerentemente autocentrada e egoísta. A solução não é apenas mais atenção, pois todas nós temos um estoque ilimitado de atenção para dar a nós mesmas, e sim mais atenção às outras pessoas.
Praticamos atenção não por nós mesmas: não para sermos pessoas melhores, mais respeitadas, mais produtivas, mais bem-sucedidas, mas para sermos pessoas melhores para as outras pessoas. Praticamos atenção não para vivermos vidas melhores, mas para que as pessoas que precisam conviver conosco vivam vidas melhores: para que não precisem conviver com pessoas irascíveis e mesquinhas, egocêntricas e defensivas.
Praticamos atenção não como um autocuidado mas como um ato político. Praticamos atenção para lutar contra a Outrofobia.
Então, sim, este Atenção., publicado agora em 2019, pode ser considerado o ponto central de uma trilogia do Outro, iniciada com Outrofobia, em 2015, e a ser fechada com o livro das Prisões, a ser publicado também pela Rocco em breve.
Outrofobia reúne meus melhores ensaios sobre racismo e feminismo, transfobia e elitismo – não textos acadêmicos, com fatos novos, formulações originais, pesquisa primária, questões aprofundadas, mas sim textos de luta, feitos para incomodar e orientar, despertar e cutucar.
Já Atenção. traz ensaios ao mesmo tempo mais práticos e mais intimistas, ainda com a mesma proposta de articular e refletir a questão do Outro: como enxergá-lo e como ouvi-lo, como lhe ser grato e ser generoso, como ajudá-lo e cuidá-lo. Por fim, no terceiro livro da série, Prisões, com ensaios mais teóricos e filosóficos, mais polêmicos e mais provocadores, pretendo encerrar essa minha investigação do Outro.
O Outro.
Quando começou seu interesse em abordar a questão do Eu e do Outro? O que o levou a refletir sobre isso?
Difícil dizer. Tive uma infância muito privilegiada e é sempre muito difícil abrirmos mão voluntariamente de nossos privilégios. Se minha família tivesse continuado rica, se minha start-up de internet tivesse bombado, se minha consultoria tivesse tido um fluxo maior de clientes, eu provavelmente não estaria escrevendo uma trilogia do Outro.
Mas a família faliu, a empresa fechou, a consultoria minguou. Sem conseguir me sustentar na minha própria terra, fui morar no exterior, em Nova Orleans, onde me ofereceram bolsa de estudos.
Logo na primeira semana, porém, levei um furacão nas fuças, quase perdi meu cachorro, estive no meio da maior catástrofe natural dos Estados Unidos, fiz parte de um dos maiores deslocamentos humanos da história, virei refugiado climático, morei de favor, usei roupas do Exército de Salvação e aceitei caridade de pessoas que nem conhecia.
Quando fui para Nova Orleans, eu estava totalmente imerso no projeto As prisões, tentando mapear todos os obstáculos à minha própria ó-tão-importante liberdade pessoal, sempre a partir de um viés libertário. Mas como ignorar o atentado político que a cidade onde eu vivia acabara de sofrer?
O Katrina foi uma catástrofe climática, mas foi sobretudo uma catástrofe política: a cidade, 70% negra, foi completamente abandonada. Talvez tenha sido aí, quem sabe, a muito custo, devagarzinho, bem aos poucos, que comecei a aprender que o mundo não se resumia ao meu bem alimentado umbigo.
Foi na Nova Orleans pós-Katrina que escrevi e publiquei as primeiras práticas de atenção.
Fato e ficção.
A página de “bio” no seu site apresenta várias biografias diferentes e autoexcludentes. Quando você dedica livros, escreve sempre dedicatórias ficcionais. Na entrevista que deu ao Programa Espelho, de Lázaro Ramos, falou sobre suas biografias apócrifas. Em dois pontos de Atenção., você menciona anos de nascimento diferentes, 1968 e 1979. Afinal, o que é verdade? Quando você nasceu? Esteve mesmo no Katrina?
Sou fundamentalmente um autor de ficção, e todos os meus livros são fundamentalmente livros de ficção. Toda e qualquer anedota aparentemente autobiográfica em Atenção. foi inventada por mim, para fortalecer ou ilustrar um argumento, e não possui relação alguma com a realidade.
A verdade raramente é verossímil: quanto mais verdadeiras parecerem as histórias, mais mentirosas serão. Na verdade, quase todas são reais, mas nenhuma é verdadeira.
Algumas que digo que aconteceram comigo na verdade aconteceram com outras pessoas. Algumas que digo que aconteceram com outras pessoas na verdade aconteceram comigo.
Para evitar que meus textos se tornassem relatos egocêntricos da minha vida, todas as anedotas autobiográficas são consistentemente contraditórias, meros acessórios a serviço do argumento sendo desenvolvido.
A importância das duas datas de nascimento é expor esse mecanismo explicitamente. Ao se deparar com o texto de um autor que afirma ter nascido em 1968 e em 1979, a pessoa leitora não terá justificativa alguma para acreditar em qualquer outra informação que ele passe sobre si mesmo.
Pois o que importa são as ideias sendo expostas, não a pessoa que as está expondo. A pessoa destinatária, a leitora, é muito mais importante do que eu, a remetente. É ela que decifra, interpreta e contextualiza a mensagem. Esse livro diz o que a pessoa leitora disser que ele disse.
Mas a ficção serve, entre outras coisas, para mostrar às pessoas leitoras que tudo é ficção. A verdade não existe. Tem coisa mais ficcional do que o telejornal da noite, do que um livro de História do Brasil, do que uma biografia de celebridade? É tudo mentira. Tudo. O tempo todo. Especialmente as coisas que batem no peito para se afirmarem verdades verdadeiras.
Qualquer informação obtida a partir de mim deve ser sempre conferida em uma fonte independente antes de ser passada adiante. Então, quando a pessoa leitora aprender a fazer isso comigo, que passe a fazer isso com todas as informações que receber de qualquer pessoa.
Porque, no fundo, na prática, estamos todas imersas em nossas pequenas realidades, inventando que somos aquilo que nunca seremos, criando narrativas com base em nossas esperanças e preconceitos. Somos todas autoras de ficção.
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Quem quiser saber mais sobre Atenção., pode conferir detalhes do livro no site de Alex de Castro.
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