O que você faria se, da noite para o dia, sua esposa acordasse cega? E se fosse seu pai? Ou você mesmo? E se descobrisse que não apenas você, mas várias pessoas vão ficando cegas conforme o tempo passa? É com essas perguntas que quero começar o texto de minha queridíssima coluna.
Mas primeiro preciso pedir que fique atento, José Saramago não teria ganhado um Prêmio Nobel se tivesse feito essas mesmas perguntas sem uma reflexão profunda do comportamento humano e da sociedade.
Ensaio sobre a Cegueira é um clássico digno de entrar no top 5 de muitos leitores. Sei disso porque tenho o costume de perguntar para pessoas próximas qual seria a lista ideal, e o livro do escritor português entra em praticamente todas.
É verdade. Ler Saramago não é tarefa fácil. Afinal de contas, ele escreve parágrafos longos e com uma pontuação bastante estranha para quem não está acostumado ao seu estilo (e dá para se acostumar?). Seus temas, normalmente, são incisivos e apontam defeitos naquilo que consideramos confortável no cotidiano de nossas vidas.
Por essas e outras, Saramago é odiado por alguns e amado por muitos. E como já era de se esperar, o livro presentemente abordado não podia fazer vergonha. É incômodo e fantástico o suficiente para encantar leitores de todas as idades. Sim, eu disse de todas as idades, pois acredito que essa mania de rotular literatura por faixa etária tem suas vantagens, mas não pode ser baliza para o acesso à leitura das crianças e dos jovens.
Quisera eu que um adolescente entrasse em contato com Ensaio sobre a Cegueira ainda na primeira fase de construção crítica de sua consciência. Certamente teríamos uma sociedade melhor.
Nesse livro, lançado em 1995, o escritor português nos mostra exatamente o cenário que lhes propus no início do texto. Pessoas ficando cegas inexplicavelmente e em progressão geométrica. De repente, no meio da rua, uma pessoa não consegue mais enxergar; depois, um médico — que depois será usado por Saramago para representar o paradigma racionalista da sociedade moderna — que, ao atender uma vítima da cegueira, também fica cego; e a partir deles, muitos e muitos começam a ser vítimas do mesmo fim. Porém, uma coisa, além do mote principal, é bem estranha e é logo apontada pelo médico nas primeiras páginas: a cegueira é branca.
Segundo especialistas, a cegueira patológica é, na verdade, escura, negra. Então, o que Saramago quis dizer com isso? Deixo para depois a resposta, ok?
Continuando…
Conforme a sociedade vai descobrindo o que parece ser uma epidemia, diversas mudanças passam a movimentar o eixo político, principalmente ao definir o que deve ser feito com os doentes, uma vez que, por decisão discricionária do poder público, legítimo representante do bem estar da maioria, todos os infectados devem ser isolados, enquanto não se descobre qual a origem do problema.
E é isso que ocorre. Todos os cegos vão sendo depositados e vigiados em abrigos subterrâneos e não podem, em hipótese alguma, deixar o ambiente, pois, do contrário, correm o risco de serem fuzilados por soldados que guardam as saídas.
O problema, meus caros, é que, como lhes falei, a progressão de crescimento de cegos é geométrica e os abrigos vão ficando entupidos de pessoas que precisam se adaptar a uma vida em que nada mais é visível.
Para alguns pensadores, essa poderia ser uma excelente oportunidade de renovação dos relacionamentos humanos, já que todos estão no mesmo barco. Entretanto, seres humanos que se encontram em estado de necessidade não são tão carinhosos uns com os outros e um verdadeiro pandemônio de absurdos começa a se modelar, e os mais fortes, ou os mais espertos, atraem para si a prerrogativa de definir o que deve ou não ser feito naqueles ambientes reduzidos e miseráveis.
Com cenas de estupros e assassinatos, Saramago tenta mostrar uma face podre da sociedade que, mesmo estando em uma situação caótica, ainda deseja subjugar a vontade dos mais fracos de modo que seus desejos sejam atendidos.
Essas cenas são muito importantes para que o leitor entenda a hecatombe social que a vida em comunidade passa a se resumir, especialmente pelo fato de que a protagonista e a única pessoa que permanece com a visão intacta é a mulher do médico, que serve como guia existencial e organizacional das pessoas mais próximas.
Embora tenha a possibilidade de comandar a todos segundo os seus desejos, ela decide sacrificar suas inclinações individuais para ajudar os cegos. Por isso, ela se configura em um elemento de força dentro da narrativa de Saramago. É ela que assume a posição de líder e liberta os seus da opressão.
Ao adentar no mundo de cegueira proposto por José Saramago, o leitor não encontrará, como lhes falei logo no começo de minha exposição, analogias simples e fáceis. O escritor português era tão hábil com as palavras quanto com suas mensagens subliminares. E é com um ponto em especial que gostaria de terminar esse texto.
Lembram-se da cegueira branca? Pois é, para Saramago, a questão é mais profunda que uma primeira leitura pode identificar.
Na verdade, para ele, vivemos hoje, como nunca antes, na verdadeira caverna de Platão. Uma caverna de excessos. Uma caverna que nos cega pela imensa quantidade de estímulos extasiantes, que nos faz esquecer e gozar da escravidão imagética.
É comum, nos dias atuais, aceitarmos que precisamos ser rápidos e dinâmicos. Precisamos responder aos anseios de algo que não conseguimos identificar, mas que define a velocidade de pensamento de todos nós. Para ilustrar isso, gostaria que cada um de vocês, leitores, respondesse a uma pergunta:
Nesse momento, quantas janelas/abas do seu navegador preferido estão abertas?
Já contou? Provavelmente, várias estão abertas. Sei disso porque, eu mesmo, para escrever esse texto, abri oito abas. Esse excesso de informações nos faz ficar, de certa forma, cegos, pois, embora existam exceções — e admiro muito os que se encaixam nesse perfil — a maioria das pessoas não consegue absorver tão bem as fontes de informação como conseguiria se concentrasse sua atenção em apenas uma de cada vez.
A intenção de Saramago não foi criticar radicalmente os meios de comunicação modernos nem os avanços tecnológicos tão úteis para os seres humanos. Ele apenas quis dizer que precisamos estimular nosso sentido crítico para que o consumo das coisas que nos rodeiam seja pleno e consciente.
Afinal de contas, somos nós que damos forma aos objetos e não o contrário.
* José Saramago (1922 – 2010) foi um escritor polêmico, principalmente por sua postura crítica e ateísta. Nascido em Portugal, recebeu o Prêmio Nobel de literatura em 1998 e, dentre seus livros mais conhecidos, destacam-se Memorial do Convento, Ensaio sobre a Cegueira e O evangelho segundo Jesus Cristo.
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