Carne de sol e paçoca dela são dois preparos com poder de me teletransportar pro sertão. São comidas de matula, pra levar na viagem, preparos tradicionais da comida tropeira. A carne assim curada, retirados seus sucos, pode ser armazenada por um período maior, e quando é frita e misturada à farinha dura meses fora da geladeira. Também são preparos característicos da cultura da pecuária extensiva, tradicional do sertão brasileiro.

Aliado a isso, é um preparo cheio de sustança, além da proteína e gordura; por conta da farinha, entra na categoria das comidas que “tufam” na barriga e garantem energia e saciedade pra uma longa jornada. 

Em Tocantins, era uma das merendas mais populares que a criançada levava pra escola (eu vivia fazendo escambo com meus colegas!),  e era presença certa na matula de todo mundo que trabalhava na roça, o sertanejo sempre soube que uma pequena porção de paçoca e um copo de água garantem um dia inteiro de trabalho.

Não por acaso, nas casas de fazenda, de roça, o pilão sempre foi um dos equipamentos mais comuns, presente em quase todas as cozinhas. Eu adorava chegar na fazenda e fazer paçoca com a criançada, de carne ou de coquinho macaúba catado no pasto, que a gente pilava com rapadura e farinha de puba… ô delícia!

Paçoca pra mim é isso, pura nostalgia, não tem como comer e não ser inundada pelo sertão. E foi assim, com a cabeça vagueando pela terra vermelha, que inclui mais um ingrediente, a polpa de buriti seco que trouxe de Barra, na Bahia, com a recomendação do vendedor que a fizesse com carne. E fez todo sentido, pois o buriti tem uma acidez de fundo que casou perfeitamente com a carne, como se fosse um limãozinho fechando os sabores.

Pronto. Com buritis ladeando a paçoca, abri em plena pauliceia ressecada as veredas que faltavam ao meu sertão. E é com as palavras do Guimarães Rosa que passo às receitas:

“A coragem que não faltasse;
para engulir, a pôlpa de buriti e
carnes de rês brava.”

Carne de sol feita em casa

Esse é daqueles preparos que a gente estoura de orgulho de fazer e que parece complicado, mas é muito, muito simples.

E além de render boas paçocas, a carne de sol pode ser feita na chapa ou na grelha, como um bife. Eu costumo usar as pontas mais secas pra paçoca e deixo o meio da peça, mais suculento, pra fazer na chapa. 

Na aula de churrasco avançado na Feed, faço essa mesma fraldinha de sol na grelha, trespassada por um espeto de alecrim, e sirvo com um vinagrete de cogumelos; fica incrível, e prometo fotografar qualquer dia para colocar aqui.

A carne de sol é um processo de cura leve da carne pelo sal.

O sal tem duas funções importantes ao ser agregado a um alimento: realçar sabores e promover a cura,retirando boa parte de seus sucos.

Se, por um lado, a cura por sal retira líquidos e suculência da carne, por outro, mexe com suas estruturas de sabor e confere profundidade. A carne curada tem um gosto mais forte que a carne fresca, que remete à carne de caça.

A cura pode ser mais intensa, como é o caso da carne seca ou charque, em que se usa uma quantidade maior de sal por um tempo maior, o que garante que a carne seja armazenada por um tempo também maior, ou pode ser feita uma cura mais leve, por um período menor, como é o caso da carne de sol, que mantém uma suculência maior, sabor intenso, mas com uma duração bem menor que a seca.

A vantagem da carne de sol é que em dois dias está pronta. Se você começar a preparar a sua na sexta, no domingo terá uma peça linda pra usar no churrasco. Vai ser um sucesso!

Ingredientes

  • 1 peça de fraldinha
  • sal marinho moído na hora, quanto baste

Eu usei a fraldinha, corte que adoro por conta das suas fibras longas e largas, que se traduzem em uma das texturas que mais gosto em carne. É também por conta dessas fibras que a paçoca, quando feita no pilão, ganha fios longos. Outra vantagem de usar a fraldinha pra fazer carne de sol é seu corte de espessura fina, que a depender da umidade do ar vai resultar quase em um salaminho, perfeito pra comer cru.

Qualquer outro corte também fica muito bom, você só precisa pensar na hora de escolher: quanto mais larga a espessura da carne, mais suculento vai ficar seu miolo. 

A presença de gordura no corte também agrega mais sabor, a fraldinha que usei, como vocês podem perceber, era sem a gordura, mas poderia (e seria lindo!) se tivesse a gordura.

Ah, e eu fiz com um corte bovino mas também fica mara com cordeiro, cabrito, porco… só precisa aprender a técnica e usar a imaginação!

Modo de fazer

Segura a boca que o queixo vai cair de tão fácil que é fazer em casa a sua carne de sol.

Basta pegar a peça de carne e passar por toda a superfície da peça o sal moído na hora (eu faço no pilão, mas pode ser no moedor ou mesmo batido com o martelo de carne).

Não precisa lotar de sal, basta uma camada leve. Além do tempo de cura, essa é a grande diferença entre a carne de sol e a seca; nesta última a quantidade de sal é muito maior, a peça fica coberta de sal e assim desidrata muito mais.

Depois de passar essa camada leve de sal, coloque a carne em uma travessa, cubra com filme plástico e deixe na geladeira por 12 horas.

Retire a carne da geladeira e passe para a caixa de cura — uma caixa de madeira toda telada,  de proteção, impedindo que moscas e outros insetos pousem na carne — por mais 36 horas.

Não precisa deixar no sol, na verdade a caixa deve ser deixada em local sombreado, seco e arejado, de preferência ventilado, o que vai contribuir muito para a textura final.

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Observem o quanto a peça de carne encolhe nesse processo e a mudança da cor de vermelho pra vinho, quase marrom.

Em dias mais secos (aproveite o período entre maio e agosto), como eu já disse, a carne fica tão curada que remete a um salaminho, como nessa peça aí que eu comi crua, laminada finamente, só com limão, pimenta e uma cachacinha pra acompanhar. Bão demais!

Depois de curada a carne de sol dura entre 3  e 6 dias na geladeira.

A minha caixa de cura eu comprei na A Queijaria, mas qualquer marceneiro faz uma boa pra você, é bem simples.

Opção pra quem não tem caixa de cura: use uma assadeira, sobre ela coloque uma grade dessas de forno ou pra esfriar bolos (pra evitar que a carne fique em contado com o fundo da assadeira, tocando seus próprios líquidos que vão se acumular no fundo), disponha a carne sobre a grade e cubra tudo com um pedaço de tule ou filó, amarre por fora com barbante. Quem improvisa se dá bem! 🙂

E agora que já tem a carne de sol, mais dois minutinhos e você faz uma paçoca no capricho!

Paçoca com buriti

Essa paçoca aqui devo confessar é bem trucada. Na falta de um pilão de madeira como se deve, fiz no processador de alimentos, e foi vapt-vupt… é claro que se minha avó estivesse viva estaria me olhando com desaprovação:

– Pra que isso, minha filha, espia só, acabou com a fibra da carne…

Eu sei que é uma heresia. Não parei de pensar nela e em seu olhar enquanto fazia.

 Também pensei na Telma, lá da Babilônia, e na Maura, lá de Goiânia, que faz a melhor paçoca da cidade e que eu sempre encomendo pela Flavia, minha prima, que é amiga dela. Todas elas desaprovariam. Em minha defesa devo argumentar que foi graças a esse processo “muderno” que tenho feito muita paçoca. Quase semanalmente. E trazer assim, amiúde, o sertão pra dentro de casa vale a pequena transgressão, não é mesmo?

Ingredientes

  • 400g de carne de sol (o corte de sua preferência)
  • 1 fio de manteiga de garrafa ou uma colher (sopa) de manteiga comum
  • ½ xícara de polpa seca de buriti (opcional)
  • 1 cebola média em lâminas finas
  • 3 colheres (sopa) de talos de salsinha finamente laminados
  • ½ xícara (chá) de salsinha laminada finamente
  • pimenta ardida a gosto – eu usei 2 dedos-de-moça laminadas com semente, mas sempre prefiro a bodinha ou a baniwa que casam mais com o sabor da carne de sol
  • farinha de mandioca torrada, quanto baste

Rende cerca de 500g de paçoca.

Modo de fazer

Lamine a carne de sol em cubinhos ou em tirinhas no sentido do comprimento se você quiser manter a fibra intacta.

(nessa leva aqui eu fiz cubinhos, mas desde então tenho feita em tirinhas, fica mais bacana no final, pois o processador nunca consegue romper totalmente a fibra, então ficam fiozinhos lindos!)

 

Leve a uma frigideira de fundo grosso com a manteiga de garrafa e frite até ficar bem passada. Junte a polpa de buriti, misture bem e deixe cozinhar junto por mais um minuto.

Transfira pra uma tigela e reserve.

Na mesma frigideira que fez a carne junte a cebola, os talos de salsinha, uma pitada de sal e, se for necessário, um pouco mais de manteiga.

Doure lentamente a cebola em fogo baixo, até que ela fique caramelizada entre dourado e cobre, e quase crocante. O fundo da frigideira vai estar com uma crosta escura de sabor.

Volte com a fritada de carne pra panela e misture com a cebola, cozinhe por mais um minuto.

Finalize com a salsinha e a pimenta, misture bem e deixe mais 30 segundos no fogo. Está pronta a fritada base da paçoca.

Agora é a parte da heresia.

Passe a fritada para o processador e triture bem. Acrescente a farinha de mandioca aos poucos, com cuidado pra não deixar a paçoca muito seca.

Quando chegar à quantidade de farinha do seu agrado, experimente o sal e acrescente um pouco mais se for necessário.

Agora, o grande problema dessa danada da paçoca é que enquanto tem a gente come,  a cada passada pela cozinha eu mando ver uma colherada… é irresistível, de boa!

Experimenta com banana em rodelinhas e depois me conta!

Legenda

Bom apetite e passe a paçoca e a carne de sol adiante, compartilhe! A cozinheira e o sertão agradecem!

Onde encontrar boas paçocas por aí:

Fazenda Babilônia em Pirenópolis (GO) – faz parte do café tropeiro preparado pela Telma.

Paçoca da Maura – você encontra na feira do Ateneu em Goiânia ou encomenda pelo telefone (62) 9108.6370.

Indo a Palmas não deixe de procurar pelo Rei da Paçoca, tem em vários lugares da cidade e a paçoca é deliciosa. Se for pro Jalapão leve um estoque, é providencial para os passeios.

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Nota do editor: Esse texto foi originalmente publicado no blog da Letícia Massula,Cozinha da Matilde, que tem muitas outras receitas incríveis. No post original, ela também dá dicas de harmonização com bebidas e música. Vale o seu clique.

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“Deixa que eu faço” é a série colaborativa de textos mão na massa do PapodeHomem. A ideia é reunirmos pessoas dispostas a contribuírem com guias e tutoriais, ensinando a fazer as mais diversas tarefas, das rotineiras às inusitadas. Com o tempo, queremos ter um compilado com todo tipo de passo-a-passo, para tornar o PapodeHomem um espaço cada vez mais útil.

Pode se programar: toda sexta, um texto com um guia ensinando a fazer algo prático.

Tem alguma ideia? Manda pra gente aqui.

Letícia Massula

Mezzo mineira, mezzo goiana, radicada e apaixonada pela paulicéia desvairada, Letícia Massula é cozinheira, onívora e vive às voltas com as panelas na <a>Cozinha da Matilde</a>. Nas horas vagas dedica-se à queima de sutiãs."