Uma porção de sagacidade, uma de inteligência, uma pitada de charme e outra de ambição, duas doses de ironia. Cozinhe os itens acima num silêncio misterioso untado com trauma do passado. Espere até as dores do personagem emergir. Prove se a força está no ponto. Salpique um vício (a gosto) e sirva com dramas familiares.
Seria essa a receita dos icônicos personagens masculinos que marcam época? Não, qualquer receita é genérica demais pra complexidade dos personagens que realmente fizeram história nas séries americanas.
Dizemos "personagens esféricos" para aqueles que tem mais de uma dimensão, que nos surpreendem quando, numa virada de trama, mostram uma vulnerabilidade ou agem de maneira inesperada.
Tommy Shelby, Don Draper, Tony Soprano, Hank Moody, Jax Teller, Walther white, todos os seis são únicos e complexos mas existem alguns ingredientes em comum na receita deles. Ingredientes que não são meramente ficcionais e, por não o serem, refletem a realidade de homens de hoje e de 100 anos atrás.
Na nossa pesquisa O silêncio dos homens, respondida por mais de 40 mil pessoas espalhadas pelo Brasil inteiro, tivemos algumas respostas chave:
- 6 em cada 10 homens afirmam lidar hoje com uma questão emocional
- 4 em cada 10 homens afirmam se sentir solitários sempre ou com muita frequência
- 6 em cada 10 homens afirmam que não foram ensinados a expressar suas emoções durante a infância ou adolescência
A vida imita a arte que imita a vida que imita a arte. A ficção — filmes, séries e livros —, nos acompanham pela vida, nos incomodam, nos emocionam, nos inspiram. Da ficção se tira lições sobre como amar, sobre como ser justo, corajoso e também sobre como ser homem.
Dizer tudo isso nos encaminha ao propósito deste texto: olhar para o mundo emocional de personagens, pode nos ajudar a pensar sobre a nossa própria vida olhando de cima, sobre o nosso próprio mundo emocional. O que de nós está refletido neles? E o que isso diz sobre todos nós?
Bom, vamos a lista:
1. Thomas Shelby – Peaky Blinders
Antes ele sorria, tinha sonhos. Depois de viver a 1ª Guerra Mundial, trabalhando em uma das frentes mais degradantes e perigosas, Thomas Shelby volta pra casa com medos, pesadelos e sem fé e sem suporte. Se diagnósticos fossem dado no começo do século passado, os sintomas teriam nome: transtorno de estresse pós-traumático.
Thommy é inteligente, de um pensamento rápido e intuitivo. Apesar da pouca idade, a sua maturidade na frente de batalha fez com que ele ganhasse respeito de seus pares. A iminência da morte e a falta de esperança fizeram dele “destemido” (ou podemos dizer, alguém que não muito a perder, uma vez que nem a sua vida era vista com valor?).
O líder dos Peaky Blinders decide mudar de vida, escalar até o topo. Assume responsabilidades e faz movimentos arriscados em sua empreitada. Tudo é pela sua família. Mesmo com um império estabelecido, seus silêncios e suas dores seguem o afastando daqueles que o cercam.
2. Dom Draper – Mad Men
Paul Preciado diz que nos 1950, após a primeira e a segunda guerra, o ideal de masculinidade que valorizava o soldado (o homem rígido, disciplinado, protetor, que faz sacrifícios e cumpre seu dever) é substituído pelo ideal que valoriza outro tipo homem: o que quer aproveitar os prazeres da vida, é flexível, criativo, e pouco afeito a regras.
O publicitário Dom Draper é esse "novo homem" de velhos tempos. Sempre com uma resposta sagaz na ponta da língua, seu talento se vale do improviso. Dom tem um capacidade de sedução irrestrita: seduz os clientes com ideias ousadas e as mulheres com um charme sarcástico.
Assim como Shelby, ele escala sua carreira até o topo e, ao chegar, encontra não a satisfação mas a necessidade de um próximo objetivo. Dom anseia por uma liberdade irrestrita que é paradoxal com a sua própria relação com vida afinal, "se eu não voltar para o escritório todos os dias, quem sou eu?"
Resolve o que puder com perspicácia e o resto com dinheiro e alguns socos. Se distrai com sexo, bebida e cigarro e tapa o vazio com novas ambições. Enquanto ele elabora a "mente dos consumidores" do século XX, evita qualquer movimento de olhar pra dentro de si.
3. Hank Moody – Californication
Hank Moody é um escritor com algum talento e pouco autocontrole. Sim, mais um caso de sexo, drogas, cigarros, uma saúde emocional caótica e desorganização generalizada em todas as instâncias da sua vida.
Demonstrar desinteresse e pouca preocupação são duas chaves do seu poder de sedução. Em meio a ressacas e a garotas casuais acordando em sua cama, ele tenta se manter próximo a filha, Becca.
A dificuldade de Hank com responsabilidades e suas mancadas tentam se justificar com um fundo de boa intenção e um cenário de "não sei fazer de outro jeito".
4. Walther White – Breaking Bad
Walter White é o que se chama de anti-herói. Não porque torcemos contra, mas porque as características que o compõe são o oposto dos heróis. Walter é um pai de família de meia idade, com uma carreira medíocre, uma vida financeira deplorável, conhecido por ser azarado, e que não alcança sequer o respeito de seus alunos.
É um personagem cheio de fraquezas que, doente e sem conseguir manter sua família e tratamento, resolve entrar para o crime para acumular, no tempo que lhe resta, uma uma quantia que sirva de seguridade à família.
Nessa jornada Walter White, o desiludido pai de família, se transforma em Heisenberg, uma versão destemida, calculista, ambiciosa e, se preciso, insensível. Se a seguridade financeira da família era a preocupação inicial, com o mergulho nesta segunda vida, Walter se vê imerso num universo que só o distancia da família.
5. Tony Soprano – The Sopranos
Se Walter White é um anti-herói, Tony Soprano seria um herói-bruto (Rough Hero). Os defeitos dele não são o oposto do herói, mas um agravamento doentio deste. Tony é impiedoso, mata a sangue frio e diz que não gosta muito de gente.
A série parte da premissa: o que acontece se um chefe da máfia fosse à terapia? Teria salvação para esse homem monstruoso?
The Sopranos nos inspira certa simpatia por esse "monstro" uma vez que o assassino desprezível e declaradamente imoral também é um pai de família preocupado, com princípios de lealdade e hobbies simpáticos.
A vulnerabilidade nos aproxima de Tony, um mafioso que queria ser como o poderoso chefão, mas que vive numa realidade desglamourizada e medíocre do crime.
“Eu agarro o mundo pelas bolas e não consigo parar de sentir que eu sou um puta de um fracassado”
Em meio a negociações e acertos de contas, ele enfrenta ataques de pânico, sessões de terapia e a vergonha de ter que tomar remédios controlados.
Tony, como nos outros casos, preocupado em ser um provedor para a família ele acaba com parte dela e se fecha em seu mundo emocional. Ele ama as crianças mas não coloca suas necessidades emocionais a frente: “Eu não sou um marido para a minha esposa, não sou um pai pra minhas crianças, não sou nada”
6. Jax Teller – Sons of Anarchy
Jax Teller cresceu entre motos, tiros e porradas. Ele tem que decidir entre seguir os passos do pai que o criou ou mudar de rumo inspirado num manuscrito do seu falecido pai de sangue.
Jax é introspectivo, mas é um líder natural. Cheio de coragem, mas muito cabeça dura. Se faltam as palavras para definir seu mundo emocional, sobram dúvidas sobre que código moral seguir, que homem ser quando ele próprio se vê no papel de pai.
Ele busca a liberdade enquanto vive preso por regras e códigos, seja da irmãdade dos filhos da anarquia ou das masculinidades.
A vontade de proteger a família, a pressão por prover materialmente, o desdém pelas regras, o constante contato com a morte, a dificuldade de colocar seu mundo emocional em palavras… São claras as semelhanças entre estes personagens e seus sofrimentos.
A reflexão que fica, quando vemos estas séries, é: será que nós homens, em histórias menos (ou mais) complexas, estamos seguindo o modelo desses personagens de nos manter no ciclo de "pressão – silêncio – afastamento"?
Será que a gente encara estas condutas que seguem códigos de honra, hombridade e coragem como as que devem ser tidas por nós homens? Alguns destes personagens terminaram suas trajetórias com mortes violentas, essa é a redenção que buscamos?
Como podemos, ao nos deliciar com estas histórias de uma excelente qualidade narrativa, aprender a tomar rumos diferentes? A fazer como Tony Soprano e, aceitando que sua vida não é como a de Michael Corleone, aceitando uma certa vulnerabilidade e desglamourização, ainda que com uma certa vergonha, buscar ajuda para elaborar essas aflições e então quebrar o ciclo de mais e mais empreitadas violentas que os afastam daquele primeiro objetivo inicial: proteger a família.
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