História, verdades e mitos sobre o Novembro Azul | Consultório #9

Dos famigerados PSA e toque retal e outras ações importantes para a saúde do homem.

Chega novembro e tudo fica azul: de postos de saúde a rodovias, passando por monumentos como o Cristo Redentor, estradas laboratórios de análises clínicas, hotéis e lojas. No entanto, entre apoiadores genuínos e empresas buscando melhorar a imagem institucional, nem sempre se discutem as controvérsias a respeito do rastreamento do câncer de próstata, objetivo fundamental da campanha.

Hoje vamos falar um pouco da iniciativa, da doença que é seu alvo, dos famigerados PSA e toque retal e de algumas ações até mais importantes para a saúde dos homens que a realização anual desses exames.

Movember

Bigodera

Há 15 anos, alguns amigos australianos falavam sobre bigodes (moustache ou simplesmente mo) e, para se divertir, decidiram iniciar o mês seguinte completamente barbeados e deixar apenas o bigode crescer. Ao fim do mês, fariam uma festa onde seriam premiados o melhor e o pior exemplares. Como seria em novembro, eles apelidaram a brincadeira de Movember.

Ao se prepararem para repetir o jogo no ano seguinte, decidiram que ele poderia servir para alertar os homens sobre o câncer de próstata, a exemplo das campanhas sobre o câncer de mama. O movimento foi angariando fundos e ganhou adeptos em várias partes do mundo, a ponto do governo estadunidense estabelecer o mês de setembro como o “Mês Nacional de Conscientização para o Câncer de Próstata” em 2001.

No Brasil, a campanha surgiu em 2008, promovida pelo Instituto Lado a Lado Pela Vida (ILLPV), uma organização não governamental. Inicialmente chamada de “Um Toque, Um Drible”, tornou-se “Novembro Azul” em 2012. A principal parceira da ONG na campanha é a Sociedade Brasileira de Urologia (SBU).

Hoje, a campanha tenta colocar-se como um alerta sobre a saúde dos homens no geral, mas o foco no câncer de próstata continua evidente nos materiais da campanha, nas declarações de apoiadores e nas ações propostas por serviços de saúde públicos e privados.

A próstata, essa desconhecida

A próstata é uma glândula do sistema genital masculino, mede cerca de 3 centímetros em cada dimensão (como uma noz) e pesa cerca de 20 gramas; sua função é produzir um fluido incolor que se torna parte do sêmen. Em termos simples, o “gozo” são centenas de milhões de espermatozoides diluídos em um fluido seminal, e parte desse último é produzido pela próstata.

O órgão envolve parte da uretra e fica bem junto à bexiga e o reto, daí os sintomas urinários quando ela cresce e a possibilidade de avaliar seu tamanho e textura através do toque retal. Esse exame é melhor realizado com a bexiga cheia e em uma de três posições: de pé, com os joelhos ligeiramente fletidos e os cotovelos repousando sobre uma mesa; deitado de lado, com a perna de cima flexionada e apoiada sobre o leito; ou também de lado, com ambas as pernas dobradas sobre o abdome, em posição fetal.

Já viram o Método Kominsky na Netflix? 

Tirando os cânceres de pele não melanoma, o câncer de próstata é o mais comum entre homens em todas as regiões do país: o Instituto Nacional de câncer (INCA) estima 68.220 casos em 2018. A idade é o único fator de risco bem estabelecido, com mais de 60% dos casos mundiais diagnosticados em homens com 65 anos ou mais. Filhos de pais que tiveram câncer de próstata e homens negros têm mais risco para a doença, embora o segundo fator possa se dever a diferenças no estilo de vida; além disso, algumas dietas vêm sendo associadas a risco ou proteção contra a doença. 

O PSA, sigla em inglês para antígeno prostático específico, é uma substância que circula no sangue e cujos níveis aumentam quando a glândula aumenta, seja por uma causa benigna (hipertrofia prostática benigna, ou HPB) ou maligna.

A mortalidade do câncer e a possibilidade de avaliar a próstata através do toque retal e da dosagem de PSA no sangue fizeram com que se defendesse a realização anual desses exames na tentativa de identificar alterações na glândula antes que elas piorassem e gerassem sintomas.

Sem dúvida, uma lesão pequena, restrita à próstata, é mais fácil de ser tratada que uma lesão grande, que extravasa a glândula. “Quanto mais cedo diagnosticar e tratar, melhor” é uma frase constantemente repetida por médicos e pacientes. Como a doença é mais comum entre homens mais velhos, propõe-se a realização anual de PSA e toque retal a partir dos 50 anos, embora já se tenha recomendado (e alguns médicos ainda recomendem) o início aos 40 anos.

No entanto, entidades nacionais e estrangeiras como o United States Preventive Services Task Force (USPSTF), o United Kingdom National Screening Comittee, a Cochrane Colaboration, o Ministério da Sáude, o INCA e a Sociedade Brasileira de Medicina de Família e Comunidade se posicionam contra esta estratégia, e até o cientista que descobriu o PSA nos anos 70 lamenta seu uso como rastreamento populacional.

“Que história maluca é essa?”, você pode se perguntar. “Prevenir não é melhor que remediar?”.

Nem sempre.

Prevenir e remediar

Como tratei no último artigo dessa coluna, exames de rastreamento são aqueles feitos em pessoas assintomáticas com vistas a identificar doenças ou fatores de risco cujo tratamento antecipado leva a uma vida melhor e mais longa. Medimos a pressão arterial das pessoas porque, se estiver constantemente alta, podemos trata-la e diminuir o risco de sobrecarregar o coração e contribuir em um infarto.

Solicitamos sorologias para sífilis para quem transa sem camisinha porque ela tem períodos sem sintomas, durante os quais outras pessoas podem ser infectadas e ao fim dos quais o portador pode vir a ter problemas ósseos, cardíacos e neurológicos. Por curiosidade, uma teoria bem difundida é a de que a megalomania e agressividade de Adolf Hitler eram consequência (também) de sífilis avançada.

Entretanto, para que se estabeleça um programa de rastreamento populacional (uma recomendação de que todas as pessoas de um determinado sexo, idade ou condição de saúde realizem determinados exames) não basta que a intervenção faça sentido, por mais lógica que pareça.

É preciso ter certeza de que as pessoas que fazem esses exames vivem mais e melhor que as pessoas que não os realizam, e que esses testes não lhe trarão efeitos colaterais ou uma quantidade inaceitável de resultados falsamente positivos, possíveis em qualquer exame. Essa comprovação é feita através de pesquisas que seguem grupos de pessoas por anos e registram o adoecimento e a mortalidade geral e por causas específicas nos grupos que fazem e não fazem os exames. Melhor ainda são revisões sistemáticas que reúnem os resultados de diversas pesquisas em uma só.

No caso do câncer de próstata, revisões de ensaios clínicos com mais de dez anos de seguimento (com destaque para o European Randomized Study of Screening for Prostate Cancer e o United States Prostate, Lung, Colorectal and Ovarian Cancer Screening Trial) mostram que pode haver, na melhor das hipóteses, uma discreta redução de mortalidade, que ocorre às custas de muito sobrediagnóstico e sobretratamento. O que está em jogo aqui não é verificar se o rastreamento é efetivo ou não, mas, sim, se ele traz mais benefícios do que danos.

Em outras palavras, esses estudos mostram que o screening com PSA (com ou sem toque retal) não diminui a mortalidade geral dos homens (quem faz o exame morre com a mesma idade do que quem não faz) e muda muito pouco a mortalidade específica por câncer de próstata. Isso acontece principalmente porque PSA e toque retal detectam cânceres graves e cânceres incipientes, que não progrediriam ou que o fariam tão lentamente que não matariam a pessoa. Infelizmente, muitas vezes é difícil fazer essa diferenciação mesmo com a biópsia da próstata, o que pode levar a tratamentos desnecessários.

Legenda

Ao colocarmos na balança os efeitos colaterais da biópsia prostática (como dor, sangramento e infecção) e as sequelas do tratamento (boa parte dos homens operados fica com disfunção erétil ou incontinência urinária), podemos concluir que os riscos do rastreamento não superam os possíveis (e estatisticamente discretos) benefícios.

É por isso que tantas entidades apontam que não há justificativa para estimular o rastreamento de câncer de próstata por qualquer método, em homens de qualquer idade, e que homens assintomáticos preocupados com a próstata devem ser questionados quanto ao motivo da procura (muitos estão com problemas de sexualidade e dão vazão a isso manifestando dúvida com a próstata) e quanto a alterações relacionáveis à próstata, como urinar muitas vezes à noite, dor ou dificuldade para urinar, jato urinário fraco e pingar muito depois de urinar (gotejamento pós-miccional). Caso presentes, PSA e toque retal estão sem dúvida indicados para investigação; caso contrário, devem ser discutidos os riscos associados e benefícios esperados com o rastreio.

Nesse sentido, o National Health Service (NHS) do Reino Unido disponibiliza material informativo ao público leigo em sua página NHS Choices, ao passo que o sítio do INCA traz informações sobre a doença e seu rastreamento. Também publiquei um artigo sobre o tema, com mais argumentos e referências sobre o tema, que pode ser consultado aqui.

Cuidando dos homens ao redor das próstatas

Se o rastreamento de câncer de próstata é tão controverso e a doença não é nem a neoplasia que mais mata homens no Brasil, o que fazer esse mês?

Idealmente, o cuidado com os homens deve ser o ano todo, tendo em mente as relações entre gênero e saúde que fazem com que os homens sejam identificados como menos cuidadosos com a própria saúde, menos aderentes a medidas preventivas e com maior mortalidade que as mulheres – ocorrem cerca de cinco mortes masculinas para cada quatro femininas.

Cuidar da saúde dos homens passa por oferecer-lhes intervenções ética e cientificamente aceitáveis, como abordar o uso de cigarro, álcool e outras drogas, medir pressão arterial e IMC, identificar depressão e ideação suicida, estimular o uso de preservativo nas relações sexuais e equipamento de proteção individual no trabalho, e realizar sorologias para infecções sexualmente transmissíveis.


publicado em 27 de Novembro de 2018, 16:36
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Antônio Modesto

Médico de Família e Comunidade e doutor em Medicina Preventiva pela USP. Professor na Faculdade de Medicina da Unicid. Carioca de sotaque e paulistano de coração, toca cinco instrumentos mas nenhum bem. Tem estudado gênero, saúde dos homens e medicalização da vida.


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