Check-up de rotina, será que você precisa mesmo de um? | Consultório #8

Aprenda quando vale ou não a pena fazer um exame de rotina.

– Oi, doutor, vim fazer um check-up.

– Está preocupado com alguma coisa em especial?

– Não, tá tudo bem, mas faz tempo que eu não faço exame de nada. Queria fazer exame de sangue, fezes, urina... Eu também fumo, então queria bater uma chapa do pulmão, pra ver como é que tá...

* * *

Médicos de família atendem pessoas com pedidos semelhantes todos os dias e talvez você já tenha procurado ou pensado em procurar um médico pelo mesmo motivo.

Às vésperas do famigerado Novembro Azul, vamos conversar sobre exames de check-up e mostrar que – pasme! – nem sempre prevenir é melhor do que remediar.

Por que pessoas saudáveis devem ir ao médico?

O público-alvo de exames de check-up, de “rotina” ou “preventivos” são pessoas saudáveis, convocadas a realizarem procedimentos para detectar fatores de risco ou doenças em fases iniciais, ainda sem sintomas percebidos pela pessoa.

Se ela faz exames periódicos por uma condição de saúde (por exemplo, a carga viral em quem tem HIV), tratam-se de exames de acompanhamento.

O público-alvo de exames de check-up, de “rotina” ou “preventivos” (mais adequadamente chamados exames de rastreamento) são pessoas saudáveis, convocadas a realizarem procedimentos para detectar fatores de risco ou doenças em fases iniciais, ainda sem sintomas percebidos.

Se ela sente alguma coisa e o profissional precisa complementar a conversa e o exame físico, ele pede exames de investigação – como uma endoscopia a um fumante com dor de estômago e perda de peso, para diferenciar uma úlcera de um câncer de estômago.

Essa diferença é muito importante porque os riscos de exames de investigação são mais aceitáveis que os riscos de exames de rastreamento – afinal, em um caso a pessoa está doente e sofrendo e, em outro, uma pessoa saudável será tirada de sua casa para fazer um procedimento.

“Mal não vai fazer”

E quais os riscos dos exames de rastreamento? “Umas dosagens de sangue e umas radiografias de vez em quando não fazem mal a ninguém”, você pode pensar. “Um cara do escritório descobriu que tava com pré-diabete em um exame de sangue, ele não tava sentindo nada”, você pode apontar.

No entanto, é preciso cuidado: todo procedimento médico tem custos e riscos. Os custos dos procedimentos serão pagos diretamente pela pessoa ou indiretamente pelo SUS ou convênio com o dinheiro dos impostos ou mensalidades. A pessoa sempre paga de alguma forma.

O primeiro risco dos exames de rastreamento são os falsos-positivos. Os valores de referência de exames de laboratório geralmente correspondem a 95% da população onde eles foram testados – ou seja, cerca de 5% das pessoas podem ter resultados fora da “faixa de normalidade” e não estarem doentes. A população onde os exames foram testados também pode ser bem diferente da sua – como escandinavos ou chineses.

Finalmente, a parcela de falsos positivos dentre os resultados de um exame depende do quanto a doença procurada está presente na população à qual o indivíduo pertence, em termos de idade, gênero, raça/cor, região etc, e do que ele sente. Isso significa que uma dosagem de hormônio da tireoide alterada é mais confiável entre mulheres obesas com muito sono do que entre homens magros e sem queixas. No entanto, muitas clínicas oferecem check-ups em pacotes pré-definidos de acordo apenas com gênero e faixa etária; mesmo em consulta, muitos médicos pedem a mesma “bateria de exames” enorme para pessoas com características muito diferentes.

Minha mãe tem os leucócitos em 3.000, e a faixa dita normal é de 4.000 a 10.000 ou 11.000, dependendo do laboratório. Ela nunca teve infecções de repetição nem doenças de imunodepressão, mas precisou fazer diversos hemogramas em vários momentos para ter certeza de que não tinha uma doença. Esse é o segundo risco dos check-ups: exame puxa exame, gerando ansiedade, mais custos e mais riscos – e muitas vezes tratamentos desnecessários. É o caso de mulheres que fazem Papanicolaou (que foi um médico grego, não um sacerdote) anual ou semestralmente e acabam tratando lesões que se curariam sozinhas – por isso a recomendação de realiza-lo a cada três anos.

Ademais, cada especialidade médica dá destaque às ações preventivas de suas áreas: dermatologistas contra o câncer de pele; endocrinologistas, contra o de tireoide; cirurgiões cardíacos, contra o aneurisma de aorta... Se atendesse a todos esses apelos, você passaria o ano passando em consultas e frequentando laboratórios e clínicas de imagem.

Correr o risco de ser saudável

Diante de tudo isso, devemos abandonar o check-up? Antes de mais nada, é preciso abandonar esse nome, inspirado na manutenção preventiva de máquinas e automóveis e associado a pacotes pré-prontos de exames. Consultas preventivas não devem focar apenas em exames, e eles devem ser solicitados de forma criteriosa e racional.

Para que um exame de rastreamento seja adequado, não basta que ele identifique sinais precoces de uma doença: é preciso comprovar que tratar antes faz mesmo as pessoas viverem mais e melhor.

Essa comprovação se dá acompanhando pessoas que faziam regularmente ou não faziam um determinado exame e conferindo o adoecimento e as mortes nos dois grupos.

É difícil de acreditar, mas muitas vezes “descobrir mais cedo” não faz diferença.

Por exemplo, o hipotireoidismo é uma situação em que o hormônio T4 está baixo, o que faz as pessoas ganharem peso, terem mais sono, apresentarem alterações na pele e cabelos etc. Antes disso acontecer, o hormônio que “ordena” a produção de T4, o TSH, aumenta, enquanto o T4 permanece normal e a pessoa, portanto, não tem sintomas – situação chamada hipotireoidismo subclínico. Milhares de pessoas saudáveis vêm fazendo dosagens de TSH “de rotina” e acabam descobrindo e tratando hipotireoidismo subclínico quando poderiam simplesmente não ter feito o exame e começado a tomar hormônios se algum sintoma viesse a aparecer – em outras palavras, se elas tivessem corrido o riso de serem saudáveis.

Mas existe algum exame que eu de fato precise fazer preventivamente?

Não vamos negar a Medicina.

Há problemas cujo diagnóstico e tratamento precoces efetivamente fazem as pessoas morrerem menos, e muitos deles sequer envolvem exames de sangue ou imagem. A partir das recomendações de instituições como o Ministério da Saúde, o Instituto Nacional de Câncer (Inca), a Sociedade Brasileira de Medicina de Família (SBMFC) e a United States Preventive Services Task Force (USPSTF) e a Cochrane Collaboration, os exames que um homem adulto sem sintomas deve realizar são:

  1. Medida de peso, altura e IMC, para detectar obesidade;

  2. Medida de pressão arterial anual, para detectar hipertensão arterial;

  3. Entrevista clínica para detectar e abordar uso de tabaco, álcool e outras drogas;

  4. Sorologias para HIV, sífilis e Hepatites B e C para pessoas que tiveram relações sexuais sem preservativo;

  5. Dosagem de colesterol total e frações a partir dos 35 anos (pessoas com baixo risco cardiovascular) ou 20 anos (pessoas com alto risco cardiovascular). O risco cardiovascular depende de fatores como fumo, obesidade, história familiar etc.;

  6. Pesquisa de sangue oculto nas fezes para pessoas de 50 a 75 anos, para detecção de câncer de intestino.

PSA e toque retal não estão nessa lista porque sua indicação é muito controversa. Falaremos disso em nossa próxima coluna, mas quem quiser se antecipar pode ler um artigo que escrevi sobre o tema.

Finalmente, muitos homens vão ao médico pedindo um check-up como uma forma de encontrar ajuda para problemas de saúde que estão tendo – o que chamamos de demanda oculta.

Por isso, é importante que o médico identifique como surgiu a ideia de fazer uma “bateria de exames” naquele momento, identificando demandas ocultas e poupando a pessoa de exames desnecessários.

As pessoas devem se sentir à vontade para procurar um médico se estiverem preocupadas com sua saúde ou eventuais doenças; se quiserem saber sobre comportamentos que influenciem a saúde; ou se, por alguma dúvida, quiserem ser examinadas.

O problema é tentar convencê-las de que devem frequentar médicos periodicamente para realizar dezenas de exames, como se essa prática fosse protege-las definitivamente da doença e da morte.

* * *

Nota do autor: Olá, pessoal! Como vocês já sabem, sou médico e estou escrevendo aqui na coluna Consultório, de duas em duas semanas, às terças. ;)

A ideia é que a nossa coluna atenda às dúvidas e perguntas sobre saúde do homem que surgirem aqui nos comentários, mas também estamos monitorando as buscas que trazem acessos ao site (Google, confessionário da vida moderna) e, se não quiser se indentificar, pode mandar perguntas para o meu e-mail: aadmodesto@gmail.com.

Abraços e até daqui a 15 dias!


publicado em 30 de Outubro de 2018, 16:31
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Antônio Modesto

Médico de Família e Comunidade e doutor em Medicina Preventiva pela USP. Professor na Faculdade de Medicina da Unicid. Carioca de sotaque e paulistano de coração, toca cinco instrumentos mas nenhum bem. Tem estudado gênero, saúde dos homens e medicalização da vida.


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