Imaginem uma pessoa que torce para o Flamengo.
No final do mês, o Flamengo vai disputar o Mundial de Clubes e a pessoa está eufórica, ansiosa, empolgada; passa o mês inteiro se preparando, pergunta para todo mundo:
"E aí, vai ver o jogo onde? Quais são seus planos para a grande noite? etc"
No dia em si, se despede de todas as pessoas falando do jogo:
"Boa sorte pro nosso mengão, hein? É hoje que vamos ser campeões do mundo. Bom jogo pra você! etc"
Finalmente, o Flamengo conquista a porra do título e a pessoa explode de alegria, sai na rua abraçando, agarrando, beijando todo mundo:
"Conseguimos! Ganhamos! Somos campeões do mundo! Valeu! Valeu!"
Talvez vocês tenham algum amigo assim. Imagino que ele deva ser considerado o mala da turma:
"Será que ele acha mesmo que todo mundo torce pro Flamengo que nem ele? Afe!"
Mas imaginem, de repente, que toda a sociedade é assim: seus amigos e seus pais, os anúncios na TV e as vitrines do comércio.
Essa é a vida das pessoas que não celebram o Natal.
* * *
Uma vez, eu e um grupo de amigas estávamos passando uns dias em Ilha Grande e marcamos um passeio de barco. Na hora agá, o Alessandro Martins decidiu não ir, fomos sem ele e pronto.
Mas não acabou por aí. Ao longo dos anos seguintes, ouvimos o Ale recontar essa história algumas vezes, mais ou menos assim:
"Foi mágico e importante esse momento de estar entre pessoas que eu gosto e que sei que gostam de mim, de cuja companhia eu gosto e que sei que gostam da minha, e, ainda assim, quando eu disse que não ia, ninguém hesitou, ninguém me encheu o saco, ninguém tentou me convencer, ninguém perguntou se eu tinha certeza, ninguém disse que eu ia me arrepender. Simplesmente aceitaram minha decisão de pessoa adulta. Parece pouco, mas é muito. Me senti tão profundamente respeitado que me dei conta de quantas e quantas vezes tinha sido desrespeitado em situações semelhantes. De como era comum as pessoas se darem ao direito de não aceitar nossas escolhas e de nos encher o saco até cedermos. Então, percebi que aquelas pessoas eram a minha turma, que era com elas que eu queria estar."
* * *
Nossos costumes natalinos, essa festa ó-tão bonita, são um exemplo tanto da violência do discurso hegemônico quanto do narcisismo egocêntrico de nossas atitudes.
O discurso hegemônico, não satisfeito com sua hegemonia, ao invés de ser magnânimo e tolerante com os discursos minoritários que não lhe ameaçam, pelo contrário, se pretende unânime, colocando assim todas as pessoas que não partilham dele em posição automaticamente defensiva e constrangida.
Experimentem ser a pessoa, em um grupo de colegas ou parentes, que diz que não comemora o Natal ou que vai passar o Natal em casa, sozinha, uma noite como qualquer outra.
É assustador como essa opção é simplesmente intolerável para a maioria das pessoas à volta, que dizem coisas como "Não admito você sozinha no Natal, vem passar lá pra casa, é uma ordem!", e afins, que só colocam a pobre pessoa que não celebra o Natal em situação ainda mais defensiva e constrangida, diante do terrível incômodo que sua escolha pessoal claramente suscita no grupo.
Alguém poderia perguntar:
"Qual é o problema, ué? Afinal, quase todo mundo celebra o Natal. Ninguém está obrigando ninguém a nada!"
Mas o narcisismo e a violência residem justamente nessa extrema normalização e normatização de nós mesmas: como somos a norma e o normal do mundo, se somos Flamengo, então todo mundo também é; se celebramos o Natal, então todo mundo também celebra.
* * *
Vivemos em um mundo onde o discurso religioso está por todos os lados, hegemônico, dominante, não-questionado.
As pessoas desejam “vai com Deus” umas às outras sem nunca perguntar se a outra acredita em Deus. Tribunais e escolas que deveriam ser laicos penduram crucifixos e celebram o Natal. Nas revistas da Turma da Mônica, temos um Anjinho e, ocasionalmente, Deus e santos, mas nunca um Golem ou um bodisatva. No Congresso, bancadas religiosas insistem em passar leis cujo fundamento é somente religioso, como se todas as pessoas brasileiras devessem viver sob a tirania da religião de algumas delas.
Apesar disso, ouço frequentes críticas ao exagero e ao radicalismo do discurso… dos ateus militantes.
Mas, sob qualquer métrica possível e mensurável, o discurso religioso é muito mais radical e exagerado, muito mais hegemônico e predominante, do que qualquer coisa que os tais ateus militantes possam conceber. Esse ateísmo-gota-d'água só pode parecer “radical” e “exagerado” em oposição ao oceano-da-religião para quem naturalizou de tal maneira o discurso hegemônico religioso que não consegue mais ver que ele está por todos os lados, violentamente invadindo nossa subjetividade e nos vendendo sua ideologia a cada momento.
A questão não é quem está certo ou errado, se Deus existe ou não, se os ateus militantes estão corretos ou não em suas táticas de luta.
A questão é que não faz sentido exigir o silêncio de quem já está na minoria marginalizada, interpelando o discurso hegemônico com todos os riscos inerentes a essa luta tão desigual.
Não faz sentido exigir o silêncio de quem já vive silenciado.
(Essa subseção é um trechinho do meu texto Elogio à liberdade de expressão.)
* * *
Aviso importante e necessário:
Esse não é um texto contra o Natal ou contra as pessoas que celebram o Natal.
Esse é um texto pedindo para que essas pessoas
1) lembrem que existem pessoas que não celebram o Natal e
2) nos respeitem.
Não deveria ser pedir muito.
* * *
Sobre a violência de nossas opiniões, leia a Prisão Conhecimento.
* * *
Puxe uma cadeira e comente, a casa é sua. Cultivamos diálogos não-violentos, significativos e bem humorados há mais de dez anos. Para saber como fazemos, leianossa política de comentários.