Como foi (e está sendo) passar pelo luto de perder minha filha

Texto escrito aos poucos em diferentes momentos do meu luto em memória à minha filha Alice

Minha segunda filha Alice, foi planejada e muito desejada. Nossa família passava por um momento muito bom. Clara, a irmã mais velha de Alice, crescia e ficava cada vez mais independente, enquanto eu e minha esposa retomávamos a vida de casal e nossa situação financeira estava boa.

A gestação foi tranquila, todos os exames indicavam o desenvolvimento da Alice ia bem e minha esposa, Nathalia, estava em ótimo estado de saúde, até a trigésima segunda semana.

Nathalia e Alice, 32 semanas. 

Em um exame de rotina, percebeu-se que o líquido amniótico estava baixo. Nathalia foi encaminhada do laboratório direto para o hospital, onde alguns exames e horas depois, nosso obstetra com a opinião de outros médicos, optou por uma cesárea de emergência, pois Alice havia entrado em sofrimento fetal, onde o bebê é submetido a períodos de privação de oxigênio.

Foi tudo muito rápido, Alice nasceu, não chorou, foi levada às pressas para a UTI neo-natal, onde tivemos a oportunidade de vê-la por alguns minutos e logo fomos informados do quadro grave dela. Na madrugada, algumas horas depois, recebemos uma ligação solicitando nossa presença na UTI.

A gente já imaginava porque tinham chamado a gente lá, mas não trocamos uma palavra da saída do quarto até a UTI.

Sentamos num escritório apertado, nos serviram água morna em copinhos de plástico, a enfermeira chefe entrou, se sentou e falou de uma vez só:

"Sua filha faleceu, sinto muito."

Depois de alguns minutos explicando o quadro clínico dela, eles perguntaram se a gente gostaria de entrar na sala para vê-la e segurá-la no colo, sem todos aqueles aparatos médicos.

Tiramos algumas fotos dela, pois seria a única recordação que teríamos.

As enfermeiras nos falaram alguma coisa sobre o enterro e papelada, mas eu já não estava escutando mais nada.

Voltamos para o quarto do hospital, eu sabia que seria necessário resolver uma porrada de coisas burocráticas, mas estava completamente devastado, então fiz a primeira coisa.

Liguei pra minha mãe

Foi minha primeira reação, quase instintiva, pedi para ela vir ao hospital cuidar de mim, cuidar das burocracias e estar por perto. Num momento de tanta vulnerabilidade, eu senti que só ela poderia me confortar.

Também sabia que nem eu nem minha esposa teríamos qualquer condição de lidar com as partes burocráticas do óbito, por isso confiei na lucidez e força da minha mãe. Ela cuidou do atestado de óbito, caixão, velório, cremação, tudo aquilo que você menos quer pensar 

Liguei para um grande amigo

Certa vez esse amigo escreveu um texto sobre a morte do pai que chorei litros lendo e me emocionei com leveza, beleza e lucidez com que ele lidou com a morte.

Precisava conversar com alguém sobre o que tinha acontecido, eu queria falar sobre a morte e eu queria alguém que me escutasse, mas não para bater nas minhas costas pra falar "vai ficar tudo bem", porque eu sabia: naquela hora, não ia ficar. 

É maluco como a maioria das pessoas evitam falar sobre a morte ou,  quando o fazem, conduzem o assunto de uma forma que incentive a gente a superar isso o mais rápido possível, como se aquilo fosse um problema que precisasse ser resolvido com a mesma agilidade de um problema corporativo. 

Ele me atendeu de madrugada e foi direto para o hospital, me recebeu com muito carinho, me acolheu, me abraçou, chorou comigo, falou algumas palavras e me deu espaço para ser vulnerável naquele momento.

Tenho uma sorte imensa de ter um amigo como Guilherme pra me acolher nessas horas.

Pedi para esse amigo avisar todo mundo

E também pedi espaço para viver meu luto.

Era necessário avisar amigos, colegas, família e trabalho, mas a última coisa que queria era abordar um a um, explicar o ocorrido e bater papo. Eu precisava ficar a sós com minha esposa e minha família.

Pedi para meu amigo fazer a função de meio de campo: avisar as pessoas, informar o que tinha acontecido e o dia do enterro, etc.

Melancolie, escultura de Albert György.

Também pedi pra ele avisar as pessoas que não me ligassem, não me visitassem e respeitassem o meu luto. Não por não gostar delas, mas por achar importante passar por esse momento recluso, falei que caso alguém quisesse demonstrar os pêsames poderiam nos mandar mensagens e foi ótimo receber esse carinho, ainda que de uma maneira mais distante.

Pedi afastamento do trabalho

Pela lei, em caso de morte neonatal, a mãe tem direito à quatro meses de licença maternidade e o pai cinco dias - como se o luto do homem fosse mais brando que o da mulher.

Negociei com meu trabalho alguns dias a mais e o restante seria descontado das minhas férias. 

Mais do que cuidar de mim, eu precisava cuidar também da minha esposa que estava tão vulnerável quanto eu. Também precisava ficar próximo à nossa filha que estava extremamente chateada com a não vinda da irmã.

Procuramos ajuda profissional

A maioria das pessoas não sabem o que dizer quando alguém perde um filho. Quando falam, ainda que bem intencionadas, dizem coisas desagradáveis como:

"Mas vocês podem ter outro filho."

"Deus quis assim."

"Vamo beber pra você esquecer isso."

"Ficar pensando nisso não vai te ajudar em nada.”

As pessoas estão tão despreparadas para lidar com a morte de uma criança, e é um tabu tão grande sequer tocar nesse assunto, que dificilmente você terá algum tipo de conversa produtiva sobre isso.

Procuramos uma psicóloga e entre alguns dos papos ela me disse algo que achei incrível:

"Quem perde os pais é órfão, quem perde o cônjuge é viúvo e quem perde o filho? Parece que é um luto que a gente não tem permissão para ter."

Ela inclusive deu uma entrevista sobre esse tema.

Nossa psicóloga também conduzia grupos de luto para pais que perderam os filhos. Os grupos, para mim, foram quase que parte obrigatória do processo de luto. Ter contato com a experiência e a dor de outras pessoas, por mais estranho que seja, foi fundamental para que nos sentíssemos melhor em relação a morte dela.

Foram sessões em grupo onde eu e a Nathalia aprendemos a respeitar a forma como o outro vive o luto e como falar sobre a morte da nossa filha Alice com a Clara, de uma forma respeitosa e lúcida.

Fizemos uma cerimônia para Alice e chamamos todo mundo

Minha vontade era de fazer algo rápido e só para família, não queria ver ninguém.

Mas minha mãe me convenceu a convidar todos pois seria a forma deles também se despedirem dela: família, amigos, colegas e agregados.

E foi a melhor coisa que fizemos.

Num momento tão recluso e doloroso, ver os amigos e parentes foi reconfortante.

Eu estava destruído com a morte da minha filha, mas ao mesmo tempo radiante de ver tantas pessoas queridas lá com a gente. 

Sempre achei que tristeza e felicidade eram sentimentos opostos, mas esse dia foi a prova de que é possível sentir os dois ao mesmo tempo. São momentos raros, e é isso que torna eles tão especiais. 

Conversamos com a escola da nossa filha e com ela

Sempre cultivei uma relação de muita proximidade com a escola da Clara e já falei bastante sobre isso nesse artigo aqui.

Tive este cuidado não só pelo que ela vai aprender e ouvir dos amigos, mas também pelo que pode falar e ensinar a eles. Em algum momento a morte da irmã da Clara seria abordado em sala, por ela ou pelos colegas, e pra gente era importante que isso estivesse bem esclarecido até de forma pedagógica.

As crianças pequenas normalmente não tiveram muito contato com a morte e para maioria delas o próprio conceito de alguém morrer é muito abstrato e para piorar, é muito comum nós adultos falarmos da morte de uma forma muito metafórica com os pequenos: "virou estrelinha", "foi morar com o papai do céu", "foi para o céu, mas continua aqui cuidando de você".

O direcionamento da escola foi bem claro em evitar usar eufemismos e metáforas, independente da crença religiosa, era importante ser claro em explicar para a Clara que a irmã morreu e que ela não poderia morar na nossa casa.

Foi dolorido e de certa forma, até achei cruel falar essas palavras pra nossa filha de apenas 4 anos, choramos muito nós três. Mas percebemos que ela entendeu, fomos verdadeiros com ela e que ela se curou muito bem da perda da irmã.

Mais uma vez agradeço demais ao colégio Jardim dos Pequenitos, por estarem presentes conosco no dia da cremação e pelo carinho que nos dão todos os dias.

Li o livro "Até breve, José" da Camila Goytacaz.

Ganhei o livro de um amigo no dia da cremação da Alice. Mas confesso que só consegui ler depois de dois meses da morte dela.

É o relato pessoal de uma mãe que conta da gestação, parto, falecimento do seu filho José e os dias de luto após sua morte.

O livro é lindo, com ilustrações bonitas e pensamentos que me identifiquei.

Foi reconfortante passar pelo luto com esse livro nas mãos.

Obrigado Camila, obrigado José e obrigado Isma e Ju.

Fui ao psiquiatra 

Psiquiatra é tabu.

Ninguém acha estranho ir ao ortopedista quando tem uma dor no joelho, ou ao dentista quando tem uma dor de dente.

Mas e se a dor que a gente sente for a perda de um filho?

E se for uma dor paralisante que não dê para sair de casa ou ir trabalhar?

A minha filha tinha morrido, mas o mundo não parou por isso, as contas continuavam chegando, as demandas vinham, o trabalho, a responsabilidade e a minha primeira filha demandavam.

Eu tinha preconceito de psiquiatras, até me perceber que eu não daria conta de lidar com tudo isso ao mesmo tempo.

A medicação me ajudou a cuidar de mim para eu poder cuidar também da minha família.

Escrevi sobre a Alice

Em uma das sessões de terapia, a psicóloga perguntou como era a Alice.

E me deu um vazio quando me dei conta de que eu só sabia descrever as características físicas dela: morena, com bastante cabelo, orelhas juntinhas à cabeça, narizinho e muito parecida com a irmã mais velha quando recém nascida. 

Conversei com o Jader Pires, sobre minha frustração de não ter o que escrever sobre a Alice e então ele me propôs um exercício: falar da Alice sem falar dela.

Contar o que fizemos durante a gestação: o que mudou na nossa casa, o que estava acontecendo no mundo e no Brasil, o que acontecia na nossa família e nos nossos momentos de vida, quais eram os cheiros, cores, gostos e músicas que passavam pela nossa vida naquele período?

E de repente, sem a gente falar da Alice, a gente tinha ela lá. 

Foi bonito e libertador fazer esse exercício.

E depois eu escrevi mais sobre ela

É quase impossível não pensar no que poderia ser quando a gente perde um filho, então eu me dei a liberdade de imaginar como ela seria, mesmo que de mentirinha.

Sempre imaginei Alice mais quietinha e introvertida como eu. E que, ao contrário da irmã, teria um gênio mais fácil de lidar. Alice iria nos dar bem menos trabalho do que a Clara nos primeiros meses, não só pela nossa experiência, mas também pela sua personalidade mais dócil.

Imaginei que minhas filhas brincariam bem juntas, mas quase sempre seria Clara que começaria as brigas. Pensei também que Alice não fosse gostar muito de boneca, como a irmã gosta, e talvez ela fosse se interessar mais por super-heróis para minha felicidade.

Por ser mais introvertida, talvez a adaptação na escola fosse um pouco mais difícil que a da irmã. 

Imaginei as duas mais velhas, Clara com 25 e Alice com 21, as duas lindas de morrer com personalidades distintas, porém próximas uma da outra, assim como eu sou com minha irmã e meu irmão.

* * * 

Quando perguntam se tenho filhos, respondo que tenho duas meninas: a Clara de 4 anos e Alice que hoje teria 6 meses mas já faleceu. 

Na primeira vez que falei meu olho lacrimejou e tive vontade de chorar

Na segunda me emocionei um pouco.

Hoje quando me perguntaram, respondi com a mesma leveza que falo sobre assuntos cotidianos. 

Falar sobre Alice com frequência, me ajudou a internalizar o que a passagem dela significou pra mim, quanto mais eu falo e mais lembro dela, mais leve fica a lembrança.

Tem dias como os que escrevi e reescrevi esse texto que me emociono, mas cada dia que passa é um dia mais leve.

Algumas pessoas ficam surpresas ao ver como falo da morte da minha filha e como não vejo problema em tratar do assunto abertamente, eu costumo responder que prefiro falar sobre a perda da minha filha do que simplesmente fingir que ela e nada disso aconteceu.

Nesse processo de luto percebi que passei por muitas fases diferentes, senti raiva, alegria, tristeza, esperança, fui religioso, ateu, porra loca, certinho. Mas em nenhum momento pensei ou fingi que Alice não existiu, porque mesmo ela não estando mais aqui, as marcas que ela fez em mim são tão reais quanto as marcas que qualquer filha faz num pai.


publicado em 07 de Agosto de 2019, 10:00
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Rodrigo Cambiaghi

é especialista em mídia programática, monetização de sites e BI. Reveza o tempo entre filha, esposa, cão, trabalho, banda, moto, games, horta de casa, cozinha e a louça que não acaba nunca.


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