Boas ações, a maldita obrigação de dar esmola e os nossos preconceitos

Um homem toca a campainha do seminário que estou abrigado em uma ensolarada manhã de sábado. Ninguém em casa – os seminaristas e padres foram fazer missões e celebrar missas –, exceto eu, agregado na residência. Saio correndo do quarto para atender ao chamado, que logo se repetiu.

O homem, aparentemente um pai, estava com um pequeno rapaz ao lado. Misturando um semblante de simpatia e preocupação, o adulto mostra uma pilha de panos de cozinha à venda. Ele logo explica que estava desempregado, precisava de ajuda para sustentar a família e que comprar seus panos faria um grande bem a sua família.

Explico que os verdadeiros moradores da casa aparentemente não estavam e peço um momento para me certificar da afirmação. De fato, só havia eu em casa. Volto sem graça, tentando dizer que os possíveis interessados no material não estavam ali. Ele suplica por ajuda. Olho em seus olhos pedintese, pior, nos olhos de seu filho. Peço mais um momento e vou buscar dinheiro.

Cara, esses olhos funcionam de forma tão potente quanto uma arma

Gastei dez reais em três pequenos panos. Tento me consolar pensando que havia feito a boa ação do dia. Talvez tenha feito, mas nunca saberei quão necessitado aquele pai estava e nem se isso tudo não era apenas uma encenação que aparentemente pode ser lucrativa.

Essa cena me fez refletir sobre o valor das boas ações e até que ponto devemos estender nossos braços com o tipo de ajuda que dei aos dois.

Dizem para não dar trocados a crianças que ficam no farol. Todos conseguem resistir aos olhares desesperados delas? Mesmo vendo seus pais encostados na esquina, só esperando para obter alguma renda às custas das crianças, pode ser uma tarefa difícil. E esse é apenas o mais clássico dos exemplos.

Certos valores estão se invertendo e, veja só, colaborar com os pedintes quase vira uma obrigação. Cito três casos – provavelmente não incomuns – que aconteceram comigo para ilustrar a que ponto nossas boas ações parecem ter virado exigência, muito possivelmente pelos preconceitos que surgiram em nós mesmos a partir de nossas visões e experiências.

1. Flanelinhas estranhos

Flanelinhas são polêmicos e já foi falado sobre eles aqui no PapodeHomem. Não raro viram assunto de polícia por vandalismo e agressão. E como diabos nos sentiremos seguros de deixar um carro estacionado e dar a entender que não colaboraremos com o rapaz?

Certa vez estava com um amigo em seu carro. Estacionamos em frente ao terminal rodoviário de uma cidade mediana. Quatro homens maltrapilhos estavam parados perto do local. Dois vieram em nossa direção. Meu amigo diz:

“Fala que não precisa olhar, porque só vamos comprar passagens e ir embora.”

Eles chegaram perto. Afirmei que o carro não necessitava de cuidado e, preconceituosamente, fiquei preocupado. Eles poderiam cometer alguma barbárie se não ajudássemos. Mas o carro não era meu e a decisão estava tomada.

No caminho, meu amigo ressalta impacientemente que não devia qualquer tostão aos rapazes.

Na volta, ele saca algumas moedas.

“Sei lá, né? É melhor dar algumas moedas do que ter que pagar por peças novas ou ser agredido. Melhor não arriscar.”

Ele deixou as moedas comigo. Passei perto dos homens olhando para eles e pronto para fazer a minha parte. Eles não nos deram atenção. Fomos embora.

"Xá cum nóis que num tem erro, tia". Às vezes dá até pra se sentir assim

2. De porta em porta

Estava na casa do meu pai. Bateram palmas no portão dos fundos da residência. Cheguei perto do portão e, mal podendo dizer “Pois não?”, a mulher deslanchou palavras enquanto mostrava seus panos (sim, novamente panos) à venda e apontava para a sua pequena filha:

“Moço, por favor me ajuda. Compra esses panos aqui! Eu e minha filha aqui mal temos dinheiro pra comer. Por favor!”

Comecei procedendo da mesma maneira de outrora. Pedi um momento e fui ver com o meu pai se ele tinha interesse no que a mulher vendia. Ele disse que não. Respirei fundo, pois reconheci que da última vez não consegui resistir ao pedido do homem em frente ao seminário.

Contei a ela que o meu pai, o morador oficial da casa, não estava interessado. Pedi desculpas por não poder ajudá-la. A mulher começou a repetir as súplicas diversas vezes em um ritmo que eu não conseguia intervir. Mas eu resisti e disse que não compraria os itens. Esperando que ela, agradecendo ou não, simplesmente partisse, fiquei assustado com a reação dela. Ela cerrou os olhos, aparentemente nervosa, apontou para mim e disse:

“Deixa você.”

Tentei entender a situação enquanto mantinha um semblante idiota. Minha única alternativa foi esperar coquetéis molotov caindo em casa durante a madrugada.

3. As ameaças iminentes e o empreendedorismo

Certa vez, andava com uma garota com quem estava saindo e um casal de amigos. Os três foram pra Campinas a meu convite. Era um domingo qualquer. Estávamos na área de uma grande feira de artesanatos que ocorre aos finais de semana, mas o comércio já havia acabado e a praça estava vazia. Foi então que um homem se aproximou de mim e da garota e pediu alguns trocados. Ele não foi muito simpático na abordagem:

“Vocês podem dar uma ajuda? Acabei de sair da prisão e to precisando de dinheiro pra comer.”

O tom dele não ajudou muito, e nem a sua insistência. Por já ter sido assaltado em uma abordagem semelhante, minhas mãos já estavam fora dos bolsos – eu estava com medo, principalmente pela possibilidade de algo ruim acontecer à garota por minha causa. O fato de ele aparentemente estar sob efeito do álcool ou entorpecentes me fez pensar em um ponto positivo e um negativo: ele poderia se sentir mais motivado a praticar violência só para obter o que queria, mas também podia estar com os reflexos lesados e, assim, talvez pudesse ser interceptado por um jornalista sedentário.

Havia um homem por perto, aparentemente com ele. Continuamos recusando o pedido e, vendo que ele continuaria insistindo, simplesmente voltamos a andar. Nos primeiros segundos, a ideia de que o pedinte poderia nos abordar por trás reinava. Não tardei a conferir se estávamos sendo perseguidos, mas não. O homem não nos acompanhava.

O dia continuou tranquilamente. Em outra praça, mais duas pessoas pediram esmola. A garota estranhou a quantidade de pedintes na cidade. E eis que ela disse algo que me fez parar para pensar:

“Não é certo dar dinheiro a essas pessoas sem mais nem menos. Se você só dá o dinheiro, elas simplesmente gastam. Você deve ensiná-las a lucrar com o que tem. Então compre um pacote de biscoitos ou qualquer coisa que elas possam vender. Com o dinheiro que elas arrecadarem, comprarão mais daqueles, e assim sucessivamente. Elas devem aprender o significado de empreendorismo.”

Apesar da ideia digna, logo me veio à cabeça quão trabalhoso pode ser convencer alguém não interessado em trabalhar de verdade para ganhar o pão de cada dia. De quanto tempo você precisa para ensinar possíveis caminhos e, ao final do dia, saber que a pessoa gastou tudo em drogas ou bens para consumo próprio (que, sendo comida, é melhor que drogas)? Por isso as pessoas optam por, simplesmente, dar moedas: elas acham que conseguiram praticar a mesma bondade despendendo menos tempo.

"Antes eu pedia esmolas. Agora tercerizamos o setor e quem pede dinheiro são as crianças" (obviamente, uma ficção)

Essas situações estimulam uma reflexão: o que é ou não uma boa ação?

Ceder o lugar a uma velhinha, principalmente fora de assentos preferenciais, é uma boa ação. Na verdade, é basicamente uma obrigação moral – e legal, caso o assento seja preferencial.

Dar esmola, por outro lado, virou uma questão muito mais filosófica. Há situações em que nos sentimos forçados a ajudar não por conta da sociedade que aponta o dedo a nós, e sim para manter a nossa integridade física.

A boa ação pode não ser pela boa índole, e sim, simplesmente, para sobreviver. Há preconceito. Eu sei e vocês sabem. Mas, salvas exceções, essa visão dos pedintes – e de muitas outras pessoas nas ruas – surgiu com a bagagem de pontos negativos de nossas vidas. No meu caso, dois assaltos e duas tentativas falhas, fora situações que ocorreram a familiares e amigos.

Mas, apesar de toda essa reflexão, ainda dou moedas vez ou outra. Principalmente em situações que não intimidam. Na semana passada, por exemplo, um homem me pediu ajuda para conseguir um almoço. Estávamos perto da Avenida Paulista. Ele, com uma postura cavalheiresca, me abordou na rua explicando a sua situação em um inglês impecável. Contou ter vindo de Madagascar para tentar a vida no Brasil. Estava faminto. Isso foi o que ele disse. Sem saber da verdade, dei algum dinheiro.

Vendo a diversidade de pessoas que pedem trocados e as inúmeras razões para dá-los ou não – já que, independente de nossa pretensão, o destino desse dinheiro pode ser o pior possível –, fica a questão: até que ponto dar trocado é uma boa ação?


publicado em 05 de Abril de 2012, 21:12
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Felipe Guerra

Jornalista, músico, fotógrafo e aspirante a professor. Já viu enchente levar tudo o que tinha em casa (menos os gatos e a mãe) e morou em seminário mesmo sendo agnóstico.


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