As crianças famosas da internet | Absurdos #1

Quando é editado, produzido, montado e feito para alguém ver, não é brincadeira

Estou passeando pela internet. Caio no vlog de uma criança. Ela tem doze anos (no máximo) e o vídeo se chama "Ligando para as seguidoras". A menina conta que vai fazer uma surpresa para suas fãs, pega o celular e passa a contatar meninas tão meninas quanto ela. O adulto que filma dá instruções para ela de trás da câmera em voz quase imperceptível (mas eu ouço). Ela não está confortável, não sabe exatamente o que fazer, mas segue. Faz as perguntas que o adulto indica, troca de sofá quando ele pede. Manda beijos para todas as fãs.

Este foi um dos primeiros vídeos da minha incursão pelo mundo dos vlogs infantis. Com uma rápida pesquisa no YouTube você pode também descobrir uma nova geração de webcelebridades. São crianças que ganham dinheiro, abrem marcas, aparecem em eventos, posam em frente às câmeras.

Em menos destaque do que as famigeradas crianças do funk, o comportamento delas me traz as mesmas questões que nossa sociedade anda discutindo sobre a inserção das crianças no mundo sem limites da internet que sustenta a fama.

As vloggers mostram suas rotinas em vídeos muito bem editados e dirigidos. O que poderia ser uma brincadeira, se ficasse no conforto do lar (como ficaram privadas as minhas e as suas), se torna uma profissão. É eternizado pela internet. Marcas patrocinam as meninas e elas seguem mostrando os brinquedos que ganharam, os presentes, as roupas. Elas frequentam eventos, fazem participações, são maquiadas, dirigidas, editadas e idolatradas na internet. Um mundo que já não faz muito sentido para os adultos, quanto mais para um ser em formação.

Uma das meninas, a fitness, posta vídeos de sua rotina de treino em frente ao castelo da Cinderela na Disney. Faz alguns polichinelos. Para, pensa que já deu, olha para cima da câmera e percebe que deve continuar, o vídeo ainda não acabou.

Ela é uma personagem na internet. Como somos todos nós.

Incentivada a manter uma rotina de treino em casa, posa para as lentes do Instagram como se fosse uma blogueira fitness encurtada num corpo de criança. Como se tivesse tido a ideia de fazer afundo num dos parques da Disney. Usando roupas que não têm sentido em seu corpo: tops de sustentação para os seios — seios inexistentes.

Não vemos mais a criança, vemos o fitness, nos interessa essa jovialidade, essa eternidade que o corpo infantil nos remete.

Não se engane: se a intenção era que a coisa fosse uma brincadeira, não é bem por este caminho que ela vai. Minhas brincadeiras de apresentadora de tevê, minhas tentativas de fazer uma rádio no interfone da minha casa (oferecendo música e notícias narradas em tempo real para os passantes daquela ruazinha do bairro da Mooca) não foram ofertadas ao mundo. Pude parar de brincar quando quis, não precisei posar frente às câmeras e pessoas, nem fui fantoche de um sistema muito maior do que o que eu poderia imaginar.

Colocamos a criança na internet e consideramos ela um ser pronto para ser moldado pelo interesse do mercado, da fama, do sucesso na internet. É justo? É correto expô-la deste jeito? Nesta sociedade em que consideramos a necessidade do acolhimento e da tutoria para que a criança cresça num ambiente saudável, será que estamos ensinando coisas boas ao ensiná-la a posar? Ao jogar sua imagem com coisas que ela não pode ainda nem sequer imaginar a dimensão que têm?

Hannah Arendt, em 1957, escreveu um pouco sobre a necessidade do recolhimento para o amadurecimento da criança, para seu crescimento num ambiente seguro e saudável.

"Tudo o que vive, e não apenas a vida vegetativa, emerge da obscuridade. Por mais forte que seja a sua tendência para se orientar para a luz, aquilo que é vivo necessita da segurança da obscuridade para alcançar a maturidade. Talvez esta seja a razão pela qual os filhos de pais famosos geralmente se saem mal.

A celebridade penetra nas quatro paredes, invade o espaço privado, trazendo consigo, em especial nas condições atuais, a luz implacável do domínio público que invade toda a vida privada de tal forma que as crianças deixam de ter um lugar seguro em que possam crescer.

É exatamente esta mesma destruição do espaço de vida real que ocorre quando se procuram transformar as próprias crianças numa espécie de mundo.

Entre esses grupos homogêneos de crianças emerge então uma espécie de vida pública e, independentemente do facto de essa vida não ser real e de toda essa tentativa ser uma espécie de fraude, permanece o facto desastroso de as crianças — isto é, os seres humanos em processo de devir, ainda não completados — serem forçadas, por essa razão, a expor-se à luz de uma existência pública."

Não é justo colocar a criança num mundo de evidência cruel deste jeito. Mais do que associar marcas ao nome da criança, é cruel também estimular que ela entre e vença neste mundo de egos tão grandes ainda tão nova. Mas a ideia de ter fama, sucesso e um dinheiro garantido ali no seu filho parece muito tentadora e atravessa as brincadeiras infantis para se tornar um negócio rentável.

Pais e mães são não só grandes apoiadores dos fantoches das crianças na internet como são quem faz o canal. De tutores, apoiadores e pais para empresários, diretores, construtores daquele personagem que vai para o ar.

Não apoio canais infantis. Não é brincadeira quando a iniciativa é externa, quando não parte da criança, quando se faz compromisso com marcas, publicidade, vendas, vaidade e um sistema muito maior do que o que a criança pode conseguir agora optar.

Quando é editado, produzido, montado e quando é feito para posar, para alguém ver, não é brincadeira.

Quando estimula compra, ego, imagem, pose: também não.

Não parte exclusivamente da criança nenhum comportamento prodígio frente às câmeras. Não parte dela alimentar seu canal no YouTube, clicar em "li e concordo com os termos de uso" do Facebook, do Instagram…

São os pais os responsáveis pelo conteúdo, pelo freio e por dar condições emocionais para que esta criança se desenvolva. Fique esperto: criança na internet não é algo gracioso, não.

Sobre a coluna "Absurdos"

O torpor do dia a dia faz com que a gente não se atente para várias coisas esquisitas da nossa cultura. Esta coluna mensal é sobre alguns destes absurdos contemporâneos.  


publicado em 14 de Junho de 2015, 00:05
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Isabella Ianelli

Pedagoga interessada em arte e educação. Escreve no blog Isabellices e responde por @isabellaianelli no Twitter.


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