Desde 2013, o ENEM dá nota zero para redações que "desrespeitam direitos humanos". Esse ano, o Movimento Escola sem Partido entrou com uma ação contra essa regra e  ganhou. (Todos os detalhes estão aqui.)

Infelizmente, sou obrigado a concordar com o desembargador que deu ganho de causa ao Escola sem Partido.

Afinal, se posso fazer uma marcha defendendo uma atividade que hoje é criminosa (digamos, fumar maconha), mas que acho que não deveria ser, qual seria a justificativa para proibir a manifestação de uma opinião que hoje é criminosa (pois "desrespeita os direitos humanos", "bandido bom é bandido morto", etc), mas que a pessoa que a articula acha que não deveria ser?

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Redação não é opinião

Dei aula de português, literatura e redação por muitos e muitos anos. Uma das coisas que mais me esforçava para convencer as pessoas alunas era que não seriam julgadas por suas opiniões, mas por sua capacidade de defendê-las com argumentos baseados no texto. (Treinadas a sempre escrever o que as professoras querem ouvir, as alunas muitas vezes demoravam meses para acreditar em mim.)

Em um das aulas, o trabalho final de um aluno foi "Luis Fernando Veríssimo, um autor machista" e, de outra aluna, "Luis Fernando Veríssimo, um autor antimachista", ambos baseados na mesma seleção de crônicas e ambas levando a nota máxima.

Ao longo de 18 anos no magistério, dei aula para centenas, talvez milhares, de pessoas alunas. Com certeza, as opiniões políticas da maioria delas não batia com as minhas. Nenhuma dessas opiniões foi critério para tirar pontos dessas pessoas e, muito menos, para zerar suas notas.

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Apologia ao crime vs ativismo legal

Sempre que acontece uma Marcha da Maconha, parte da bancada da bala e simpatizantes acusam a marcha de ser "apologia ao crime".

Em resposta, alegamos que a marcha não é para convencer as pessoas a fumarem maconha (isso elas já fazem por conta própria, não precisa de marcha!) mas para tentar influenciar uma mudança na lei para que o consumo de maconha deixe de ser crime.

Se as pessoas-cidadãs não puderem pacificamente protestar contra as leis que consideram injustas, como as leis serão alteradas?

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Redação não é prova de ética

O objetivo da prova de redação do ENEM não deveria ser medir a capacidade da pessoa candidata de melhor articular a posição política majoritária entre pedagogas, mas simplesmente sua capacidade de articular um argumento por escrito.

Mesmo que eu ache que só uma pessoa imoral, antiética e insana poderia ser contra direitos humanos, o objetivo da prova de redação do ENEM não é medir moralidade, ética ou sanidade.

É como se eu fosse fazer um exame de sangue e a enfermeira perguntasse: 

— Bandido bom é bandido morto. Concorda ou discorda?

— Concordo.

— Então, pode ir embora, você acabou de ser eliminado no seu exame de sangue!

O objetivo do meu exame de sangue é medir a minha glicose em jejum, não se sou uma pessoa ética, moral, sã. Minhas opiniões políticas deveriam ser irrelevantes para um exame de sangue e também para uma exame de redação.

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Respeitar pessoas, não ideias

O Manual de Redação do ENEM 2017 diz textualmente:

"A redação receberá nota zero se apresentar uma das características a seguir … desrespeito aos direitos humanos"

(Confira o Manual aqui.)

Só essa formulação já me parece inconstitucional. Em uma sociedade onde vigora a liberdade de expressão em uma esfera pública e democrática, não se pode impor "respeito" a nenhuma ideia, conceito, dogma. 

Legenda

Deve-se respeitar pessoas, não ideias. Ideias não são para serem "respeitadas": ideias são para serem testadas, articuladas, debatidas, atacadas, defendidas. (Não dá pra fazer nada disso "respeitando-as") 

Se o Estado impõe que uma ideia deve ser respeitada, qualquer ideia, ele está censurando e silenciando todas as pessoas cidadãs que possuem o direito constitucionalmente garantido de questionar, atacar, dissecar (ou seja, desrespeitar) essa ideia.

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Exame de opinião

Em outros tempos, a mera articulação de uma ideia ateia ja bastava para levar uma pessoa à morte. Hoje, eu não posso atacar símbolos religiosos (chutar uma santa, etc) mas posso manifestar livremente a opinião de que sou contra "adorar pedaços de madeira".

Acho correto que a lei me reprima de atacar objetos religiosos. Seria um escândalo inconstitucional se a lei me obrigasse a respeitar a "ideia" de religião e, consequentemente, me punisse por articular opiniões que fossem consideradas desrespeito a essa ideia.

Infelizmente, segundo o ENEM, uma opinião antirreligiosa como a acima ("sou contra adorar pedaços de madeira") também zeraria a minha prova.

Abaixo, alguns exemplos de opiniões "desrespeitosas" aos direitos humanos que fariam uma redação receber nota zero, todos tirados do próprio Manual de Redação do ENEM 2017:

“para combater a intolerância religiosa, deveria acabar com a liberdade de expressão”.

“podemos combater a intolerância religiosa acabando com as religiões e implantando uma doutrina única”.

“o Estado deve paralisar as superexposições de crenças e proibir as manifestações religiosas ao público”.

“a pessoa que não respeita a devoção do próximo não deveria ter direito social, como o voto”.

“a única maneira de punir o intolerante é o obrigando a frequentar a igreja daquele que foi ofendido, para que aprenda a respeitar a crença do outro”.

“que o indivíduo que não respeitar a lei seja punido com a perda do direito de participação de sua religião, que ele seja retirado da sua religião como punição”.

“por haver tanta discriminação, o caminho certo que se tem a tomar é acabar com todas as religiões”.

“que a cada agressão cometida o agressor recebesse na mesma proporção, tanto agressão física como mental”.

“o governo deveria punir e banir essas outras “crenças”, que não sejam referentes a Bíblia”.

Não concordo com nenhuma das opiniões acima, mas acho um absurdo, um escândalo, um autoritarismo que a mera defesa dessas ideias, independentemente de quão bem sejam articuladas, já bastem para zerar a redação de uma pessoa candidata.

Fica claro que a prova não está avaliando somente a redação, mas também as opiniões da pessoa candidata.

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Como educar as pessoas de quem discordamos?

Uma amiga, horrorizada com minha opinião, comentou:

"Mas, Alex, precisamos educar as pessoas sobre direitos humanos!"

Concordo. Sou educador. 

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Mas não dá para educar sobre direitos humanos uma pessoa aluna que acha que "direitos humanos não valem nada" se utilizarmos essa sua opinião detestável como critério para exclui-la da universidade.

A única coisa que estaremos ensinando para ela é que só acreditamos em liberdade de expressão para as ideias que concordam com as nossas.

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Ensinar a mentir

Outra amiga, professora de história, esquerdista de carteirinha e militante em todos os movimentos sociais, se sente humilhada de ter que avisar às suas pessoas alunas:

"Olha, essa opinião você não pode escrever na sua redação do ENEM, tá?"

"Mas, professora, tenho que mentir?"

E ela:

"Depois você vai ter o resto da vida para dar sua opinião. No ENEM, melhor evitar."

Foi pra isso que lutamos? 

A imprensa está cheia de articulistas de direita cuja opinião detesto, do Narloch ao Azevedo, do Magnoli ao Pondé, que cansam de "desrespeitar os direitos humanos", de acordo com as definições do Manual do ENEM

E nenhum deles, por mais detestáveis que sejam suas opiniões, merecia um zero em redação por isso: eles são a prova viva de que é possível desrespeitar os direitos humanos e, ao mesmo tempo, escrever textos bem articulados e bem desenvolvidos.

Faz sentido um jovem ler uma opinião articulada por um colunista da Folha e, então, ter a sua redação automaticamente zerada somente por mencionar a mesma opinião, independente da qualidade da sua redação?

Aliás, pode um texto escrito por uma pessoa de 17 anos, uma pessoa provavelmente sem poder ou influência alguma, em uma prova que só será lida por uma ou duas pessoas, efetivamente "desrespeitar os direitos humanos"?

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Não é só a direita que critica os direitos humanos

Direitos humanos são uma ideia. Nós, que acreditamos nela, temos que defendê-la no terreno das ideias, não impor "respeito" a ela, como se fosse uma ideia ideal, uma ideia a-histórica, uma ideia autoevidente, uma ideia que não precisa ser defendida. 

A ideia dos direitos humanos, como todas as ideias, surgiu na história, fruto de lutas e interesses políticos bem específicos, e está sempre em fluxo. Por isso, nem toda crítica aos direitos humanos vem da direita. Alguns exemplos:

De um artigo brasileiro, "Paradoxo dos Direitos Humanos no Capitalismo Contemporâneo" (2002), de Ivete Manetzeder Keil:

"A nova ordem mundial promovida pelo capitalismo pós-industrial em grande parte edifica os fundamentos de sua legitimação através dos direitos humanos. Os direitos humanos são na realidade absolutamente impotentes e demasiadamente ornamentais para promover emancipações e liberdades coletivas e universalistas."

Do livro La dominación liberal: Ensayo sobre el liberalismo como dispositivo de poder, 2009, de John Brown, pseudônimo de Juan Domingo Sánchez Estop:

“La guerra, la tortura, el colonialismo no son hoy lo contrario de los derechos humanos y del Estado de derecho sino su reverso, el conjunto de medios que los posibilitan”

(Comprei esse livro em Cuba e virou minha mente de cabeça pra baixo. Resenha & introdução do livro, blog & Facebook do autor.)

E, por último, "Los derechos humanos, Entre la historia y el mito" (2006), de Oscar Correas:

"A história dos direitos humanos é uma concepção capitalista e liberal, existindo entre o mito e o história, desde sua criação como discurso até sua materialização em textos jurídicos. Esse mito é contado hoje como uma história real, manipulado pelos grandes autores que têm servido de pilares do regime hegemônico. O liberalismo e o capitalismo inventaram esses conceitos e discursos falsos, desde uma suposta natureza humana até uma suposta igualdade oferecida por esses direitos."

Nenhum desses autores é de direita. Keil e Correas eu encontrei agora, buscando na internet. "John Brown" é um brilhante pensador de esquerda, com o qual, naturalmente, não dá pra concordar com tudo, mas que abriu a minha cabeça de diferentes maneiras.

Todos teriam zerado a redação no ENEM.

Legenda

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A esquerda que censura

Minhas amigas feministas me ensinaram que não dá pra levar a sério esquerda que não luta contra o machismo.

Minhas pessoas amigas no movimento negro me ensinaram que não dá pra levar a sério esquerda que não luta contra o racismo.

E eu acho que também não dá pra levar a sério esquerda que não luta pela liberdade de expressão.

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Dois textos meus, desenvolvendo esse importante tema: Politicamente correto, uma defesaElogio à liberdade de expressão

Se você leu esse texto e ficou decepcionada comigo, leia esse aqui: A hora certa de aprender

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Os encontros "As Prisões"

São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?

O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência,  Patriotismo, e a maior de todas, Eu.

Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.

Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.

Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.

Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.

Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.

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Alex Castro

alex castro é. por enquanto. em breve, nem isso. // esse é um texto de ficção. // veja minha <a title=quem sou eu