Podemos escolher presumir sempre o melhor: a religião é um espelho onde cada pessoa enxerga aquilo que traz.
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Disse o Dalai Lama que a melhor religião é aquela que faz de você uma pessoa melhor. Dependendo de quem ouve, essa frase pode parecer ou lugar-comum (“claro que a melhor religião é a que faz as pessoas melhores”) ou erro crasso (“e os fundamentalistas homofóbicos?! e os homens-bomba?! hein?! hein?!”).
É que todas as grandes religiões são esquizofrênicas e contraditórias, pregando simultaneamente o ódio e o amor: o Imã que luta pela Paz mundial leu o mesmo Alcorão que o homem-bomba do Iraque.
Muitas das minhas amigas meio-intelectuais meio-de-esquerda falam de religião como se ela fosse sempre uma força tirânica que limitaria a liberdade individual das pessoas. Mas eu vejo o contrário: as mensagens de cada religião são tão inerentemente contraditórias que cada pessoa, cada fiel, cada praticante, acaba possuindo um vastíssimo leque de escolhas para criar sua própria religião pessoal, de acordo com seus próprios valores.
Diz a parábola (cherokee? budista? há controvérsias) que temos dois lobos brigando dentro de nós: um deles é selvagem, agressivo, traiçoeiro, só pensa em morder e atacar, e outro é meigo e carinhoso, só pensa em afagos e lambidas. Qual deles vencerá? Simples: o que for alimentado.
Em alguns trechos, a Bíblia Sagrada diz que a sodomia é uma aberração, mas, em outros trechos, igualmente sagrados, diz que não devemos julgar as outras pessoas e que devemos amá-las como se fossem nós mesmas.
Meu padre preferido, o jesuíta norte-americano James Martin, acabou de lançar um livro sobre como a Igreja falhou com as pessoas homossexuais e como pode fazer para acolhê-las de maneira mais cristã no futuro. Não preciso nem dizer que a posição do Padre Martin está causando uma violenta polêmica — exatamente por haver pessoas cristãs de ambos os lados, justificando suas posições diametralmente opostas com diferentes trechos do mesmo livro sagrado.
E aí? O que Deus realmente acha? Boa cristã é quem valoriza o trecho X mas acha que o trecho Y já não é mais importante — ou vice-versa?
A Bíblia, essa antologia de mil anos de literatura judaica, ocupa um painel tão absurdamente vasto que pode ser usada para apoiar qualquer ponto de vista, desde pessoas ateias usando O Livro de Jó para demonstrar que, mesmo se Deus existisse, não valeria a pena obedecê-lo, até pessoas que lêem O Cântico dos Cânticos, que não jamais menciona Deus, como um ardente poema erótico.
Foi Agostinho de Hipona que me forneceu a melhor chave de leitura para a Bíblia: a Bíblia só ensina o Amor, sem exceção. Se um trecho parece que não ensina o Amor (quarenta e duas crianças sendo destroçadas por dois ursos por terem zoado da careca do Profeta Elias, etc) é porque fui eu que não entendeu direito. Existe alguma interpretação possível desse trecho (alegoricamente, metaforicamente, ironicamente, o que seja) na qual sua mensagem é o Amor e cabe a mim encontrá-la.
E, se posso fazer a escolha de ler a Bíblia assim, então, posso fazer a escolha de ler qualquer livro assim. Posso fazer a escolha de ler o livro do mundo assim. Posso fazer a escolha de ler as pessoas à minha volta assim.
De fato, quando alguém fala comigo, esbarra na rua, critica meu livro, é sempre possível que a pessoa esteja me atacando, me insultando, me ofendendo. Mas, se houver alguma possibilidade de não estar, se houver alguma interpretação positiva possível, será essa que escolherei.
Eu posso fazer a escolha de sempre presumir o melhor.
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Pós-escrito
Às vezes, falo esse tipo de coisa e alguém responde: “Ah, mas e se todo mundo fizesse como você, hein? O que seria do mundo? Se sou negro e escuto um comentário racista, é pra eu presumir o melhor, é isso?”
Quando um engenheiro calcula a integridade estrutural de um prédio, ele não leva em conta a possibilidade dele ser atingido por meteoro. Entretanto, as chances disso acontecer, apesar de baixas, são infinitamente maiores do que as chances de, subitamente, todas as pessoas do mundo agirem como eu, algo completamente impossível.
Eu estou sempre falando somente em meu próprio nome. Jamais presumiria sugerir como outras pessoas devem se portar.
Eu faço o que faço porque eu sou eu. Se eu fosse outro, faria outra coisa.
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Os encontros "As Prisões: Exercícios de Atenção"
São instalações artísticas, polifônicas e interativas, improvisadas e colaborativas, onde praticamos escutatória e atenção, generosidade e cuidado, e exploramos os limites e possibilidades da comunicação cotidiana: o que falamos?, como falamos?, por que falamos?
O nome vem de uma série de textos que estou escrevendo desde 2002, tentando mapear todas as Prisões cognitivas que acorrentam nosso pensamento: Verdade, Dinheiro, Trabalho, Privilégio, Monogamia, Religião, Obediência, Sucesso, Conhecimento, Felicidade, Autossuficiência, Patriotismo, e a maior de todas, Eu.
Os encontros, realizados por todo o Brasil desde 2013, reúnem de dez a trinta pessoas, duram de um a cinco dias e são sempre diferentes, imprevisíveis, únicos.
Neles, enquanto discutíamos "As Prisões", os Exercícios de Atenção foram criados, gestados, aperfeiçoados, em um processo colaborativo com as pessoas participantes. Hoje, os encontros servem para praticarmos esses exercícios e para inventarmos juntas os próximos, em um processo que só poderia acontecer presencialmente, olho no olho e lágrima no suor.
Ninguém é obrigada a falar: toda fala é voluntária.
Ninguém é obrigada a pagar: todo pagamento é voluntário.
Para saber quando serão os próximos, visite minha página de eventos.
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