O Brasil é como uma família toda complicada que não consegue sequer conversar para resolver seus problemas. Se não parar e nos olhar com calma, quais as chances de sonharmos e eventualmente construirmos algo juntos?
Não estou acompanhando muitas notícias, mas os poucos debates sobre o país (presenciais e online) que encontrei são bem tristes. Hoje, por exemplo, a Isabela Raposeiras, dona do Coffee Lab, aqui de São Paulo, expressou sua visão sobre o recente discurso do Lula. Em vez de nos alegrarmos por ainda existirem empresas humanas, que se posicionam e iniciam conversas reais em vez de entretenimento publicitário, tudo o que fizemos foi xingar e tirar sarro.
Nossa cultura está tão maluca que algumas pessoas sugeriram a ela que trocasse de assessoria de imprensa e de analista de mídias sociais, como se a inserção da Isabela fosse apenas uma jogada de marketing. Essa reação é uma espécie de repressão, que favorece as empresas alienígenas que nunca se posicionam, ou melhor, que se posicionam mas não explicitam seu posicionamento. Ou que se posicionam por um fingimento, com falas bonitas que não expressam as ações da empresa. É assim que uma ideologia se instala, é assim que somos aprisionados por conteúdos irônicos que só nos distraem.
Se a atitude e o conteúdo da fala da Isabela é benéfica ou negativa, se ela é mimada e está viajando ou se aponta para alguma realidade, eu não sei. (E quando digo que não sei é porque não sei mesmo! Vivo uma realidade muito distante da maioria das pessoas, estou tentando entender quais as grandes questões políticas e como me inserir nisso.) Mas é a visão de alguém com uma experiência de realidade tão válida quanto a minha e a sua. Ela se abre sobre algo que toca a todos nós. Parece bobo, mas precisamos lembrar: ela existe, está lá, aqui, no mesmo barco que eu e você.
As pessoas que xingam parecem estar bem certas… Será que tais certezas nos ajudam ou apenas nos fecham e nos separam? Vejo por mim: um único post no Facebook teve o poder de separar as pessoas ao meu redor entre “a favor” e “contra”, como se essa fosse a questão.
Portanto, para melhorar a qualidade das nossas conversas sobre o Brasil, sugiro quatro práticas bem simples. Não são comportamentos bonitinhos, é uma espécie de trabalho sujo que pode ser feito em meio ao cotidiano ou de modo mais direto, por alguns minutos, todo dia, em silêncio. Aqui neste post falo um pouco apenas da prática no cotidiano, não da prática formal.
Cada cultivo desse estamos explorando em detalhe em alguns cursos do lugar (como o recente sobre relacionamentos) e também no ambiente online, com pessoas de todo canto do Brasil e de outros países. Aqui compartilho de modo super resumido, apenas para conectar essas práticas a esse momento atual de conversa sobre o Brasil. É legal testar com um caso bem prático, caso contrário falamos muito sobre compaixão mas quando surge uma história dessas, bem, aí nossa fala está mais para “Vai se foder!”.
1. Soltar
Encontramos uma visão que nos revolta ou perturba de algum jeito. Notamos que surgiu o pensamento “Que filha da puta! Que absurdo!” e reconhecemos que estamos tensos, contraídos, que isso não é bom para nós mesmos. Antes de reagir e fazer alguma cagada, respiramos, alinhamos a coluna, soltamos o maxilar e a expressão do rosto, relaxamos o corpo inteiro e reduzimos a fixação, parando de nos agarrar tanto à emoção, ao pensamento e ao conteúdo da situação.
A partir desse estado um pouco mais relaxado, podemos agir em vez de reagir. Especialmente se a nossa visão realmente for mais ampla, ora, por isso mesmo não precisamos nos perturbar. Quanto maior a clareza, mais calmos estaremos em um diálogo. Se nossa visão produz um xingamento, ela talvez seja bem restrita e daninha.
Esse treinamento de relaxar e soltar é tão importante quanto subestimado. Infelizmente a gente acha que já sabe relaxar, que basta não fazer nada ou se entorpecer. Saber soltar e não reagir a um pensamento pode salvar vidas!
2. Cultivar a visão
Depois de relaxar e antes de tomarmos alguma ação, reconhecemos que o outro está imerso em uma experiência de realidade tão luminosa e coerente quanto a nossa. Ele vê coisas igual nós vemos. Ele produz sentido igual a nós! Sua visão é tão verdadeira que ele a externaliza com orgulho, sem vergonha.
Abrimos um pouco mais os olhos e nos espantamos com a natureza plástica da realidade. Livre, misteriosa, não definida, coemergente… Muitas e muitas realidades, todas igualmente válidas e funcionais. Tiramos o referencial do umbigo e ousamos enxergar o mundo do outro a partir dele mesmo. Descobrimos que isso é possível, sim.
E então nos perguntamos: qual visão valida, acolhe, beneficia e enriquece o máximo possível de experiências de realidade?
3. Cultivar o coração
Por trás do conteúdo da situação, nós experimentamos ouvir o gemido, como se um animal estivesse tentando se comunicar conosco. Vamos nos aproximar e reconhecer que aquela pessoa também quer ser feliz, também quer evitar qualquer sofrimento e também está fazendo seu melhor. Isso nos conecta, isso faz com que o outro nos toque, se comunique, não importa como, mesmo que seja de um modo pouco hábil.
Estamos todos sofrendo pelos mesmíssimos problemas. A felicidade genuína de um é inseparável da felicidade genuína de todos. Não temos como avançar se não for junto.
Podemos procurar, mas não há inimigos ou culpados. Em vez de deixar que as aflições e visões enganosas nos joguem uns contra os outros, experimentamos nos unir para superá-la. É como detectar um câncer: faremos o tratamento brigando ou nos cuidando?
Principalmente se a pessoa manifestar ações negativas, um coração fechado e um olhar perturbado, nos inserimos para ajudá-la, nos relacionando com a liberdade, com seu potencial de florescimento e transformação. Sem nos perturbarmos, entramos para acolher, espelhar, estimular, direcionar, cortar, dançar, liberar, beneficiar por incontáveis meios hábeis e linguagens. Whatever works.
Desse modo, viramos parceiros de qualquer pessoa que encontrarmos, pessoalmente ou por um comentário perdido na internet.
4. Cultivar o lugar
Nossa mente se molda aos espaços concretos e às tecnologias. Basta algum tempo usando PowerPoint para começar a pensar por meio de slides. Você já notou como escreve menos quando o site apenas oferece três linhas?
O Facebook não é um bom espaço para o diálogo. O sistema deles estimula uma postura reativa e acelerada. A publicação da Isabela Raposeiras, por exemplo, tem cerca de 2000 comentários… e nenhum diálogo. Por que desperdiçamos nosso tempo, por que estilhaçamos nossa atenção ali? Por que não abrir uma conversa sobre o Brasil em outros espaços? Quais mesmo são esses outros espaços? E como criá-los?
Além de investir em outros sites e construir lugares diferentes, sugiro transformar a raiz do problema: o modo pelo qual nos relacionamos. Teremos muito lugares quando começarmos a nos relacionar mais como parceiras e parceiros, e menos como amigos, inimigos, funcionários, colegas de trabalho, familares, estranhos.
…
Sem uma presença minimamente equilibrada, com algum nível de clareza e empatia, sem tocar o chão naquilo que temos de mais igual, naquilo que mais nos conecta, é quase impossível entrar no conteúdo de conversas tão complexas como essa de sonhar por um país melhor, algo que envolve milhões de perspectivas e experiências de Brasil.
Mais
Já publicamos bastante sobre isso aqui no PapodeHomem e também dentro do lugar. Recomendo alguns textos:
- “Por que transformamos tudo em zoeira?”
- “Conversas que tocam o chão”
- “Comunicação não-violenta: o que é e como praticar”
- “Sem palavras: fala do coração”
- “Um experimento de percepção para explodir sua cabeça”
Para aprofundar nas práticas e cultivar relaxamento, estabilidade da atenção, equilíbrio emocional, sabedoria, empatia, amor, compaixão e a capacidade de abrir espaços de encontro genuíno, há inúmeros caminhos e treinamentos. Podemos conversar mais nos comentários. 😉
Sobre a série colaborativa “Mundo interno”
Junto com as pessoas que participam do lugar e também com qualquer leitor ou leitora do PdH que quiser colaborar, vamos publicar alguns textos com essa motivação de mapear e ganhar clareza sobre nossos mundos internos.
A ideia é descrever em primeira pessoa, iluminando por dentro, processos que normalmente são abordados de modo exteriorizado. Será um exercício de introspecção e também de linguagens mais precisas, estimulado empatia e conversas mais profundas sobre qualidades, obstáculos e dinâmicas presentes na maioria de nossas experiências.
Em vez de testar mais um método de mudanças de hábitos e comportamentos, como posso trabalhar diretamente com os processos sutis de distração, torpor e ansiedade? Se lá fora vejo qualquer que seja o fenômeno, o que vejo quando olho para dentro? Qual o mundo interno de uma empresa, de uma música, de um show? De uma avenida congestionada? De um site como o Facebook ou o PapodeHomem? Quando aparentemente estamos aqui ou ali, onde estamos de verdade?
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