Newt Gingrich, pré-candidato republicano à presidência dos Estados Unidos, propôs um casamento aberto à sua ex-esposa mas se diz defensor dos valores tradicionais.
Ora, e é mesmo. Vocês é que não entenderam quais são os valores tradicionais.
Gingrich está em seu terceiro casamento. Separou-se da primeira esposa enquanto ela se tratava de câncer. Propôs à segunda esposa que aceitasse seu affair com uma amante fixa. Quando ela recusou, eles se separaram, e a amante se tornou a terceira e atual senhora Gingrich.
Na década de noventa, enquanto era Presidente da Câmara de Deputados, fez de tudo para conseguir o impeachment do então presidente Clinton. Afinal, a América não podia tolerar um presidente mentiroso, hipócrita e adúltero.
Ele acabou de vencer as primárias da Carolina do Sul e está bombando.
Dois dias antes, entretanto, em entrevista aos jornais, sua segunda esposa disse que, pouco antes da separação, ele tentara convencê-la a aceitar um "casamento aberto". Na verdade, a expressão quem usou foi ela.
Gingrich, com certeza, acha que "casamento aberto" é coisa de hippie comunista. O que ele tentou fazer foi convencê-la a tolerar seu affair com a amante, para o bem do casal, da família, e da vida política.
E, agora, suprema das injustiças, estão chamando o pobre homem de hipócrita. Que ele não tem nada de defensor dos valores tradicionais da família norte-americana.
Link YouTube | A segunda esposa dá com a língua nos dentes em cadeia nacional: "e tem mais: secretamente, ele até tolera homossexuais!".
Um casamento tradicional, com valores à moda antiga
Mas o que pode ser mais tradicional do que um homem branco e poderoso tentar convencer sua esposa, que não trabalha e depende dele pra tudo, a aceitar sua amante fixa, pelo bem das aparências e da carreira dele?
Na Grã-Bretanha do século XIX, maridos podiam se divorciar das esposas alegando adultério (pois isso colocaria em questão a paternidade dos filhos) mas, para a esposa, adultério não era motivo válido para requerer o divórcio.
No Brasil de até pouquíssimo tempo atrás, o marido que matasse a esposa podia alegar "legítima defesa da honra" e seria provavelmente absolvido -- como Doca Street, em 1979. A lógica é a seguinte: a honra do marido reside na boceta da esposa; as coisas que a esposa faz com essa boceta tem impacto direto sobre a honra do marido, podendo até mesmo eliminá-la totalmente; portanto, caso a esposa esteja atentando contra a honra do marido com sua boceta, o homem teria o direito de até mesmo matá-la.... em "legítima defesa da honra". Não é lindo? Até hoje, não faltam casos semelhantes, onde homens matam suas mulheres e ainda são absolvidos pelo júri.
Link YouTube | Gingrich demonstra suas habilidades de debatedor: em resposta a uma pergunta que destruiria qualquer um, ele parte direto pro ataque, dá a volta por cima e ainda ganha a plateia. O fato da plateia ser composta de republicanos alucinados ajuda um pouco.
Casamentos não-tradicionais
O próprio termo usado pela segunda esposa de Gingrich, "casamento aberto", é bastante recente e uma conquista feminista. Na verdade, parcialmente abertos todos os casamentos tradicionais sempre foram. Nossa sociedade sempre tolerou com uma piscadela as infidelidades masculinas, enquanto punia as femininas com a morte.
Então, quando defendemos "casamento aberto", o que a gente quer é que a liberdade e tolerância que os homens sempre desfrutaram passe a valer para as mulheres também.
Isso sim seria um casamento não-tradicional. Isso sim iria de encontro aos valores das nossas avós.
E, com certeza, não é isso, jamais, que Newt Gingrich estava propondo a sua então esposa.
Entre no debate
Pelo menos valeu para levantar essa discussão interessantíssima nas páginas do New York Times.
Ou então leia alguns textos que já escrevi sobre o assunto:
– A hora certa de revelar seu relacionamento aberto
Cada um a sua maneira, cada um do seu lado do espectro político, Newt Gingrich e Bill Clinton simbolizam tudo o que existe de mais falido, hipócrita e inviável nesses nossos "relacionamentos tradicionais com valores à moda antiga".
Em se tratando de relacionamentos, eu gostaria que existissem mais opções para se escolher e mais liberdade para escolhê-las.
(O texto acima foi inspirado por, e parafraseia alguns trechos de, Newt Gingrich's Behavior Is Actually Quite Traditional, de Amanda Marcotte.)
publicado em 25 de Janeiro de 2012, 12:14