A quem pertence o corpo da mulher?

Parece que não há dúvidas quando a gente pergunta, mas na prática, ainda tem chão a percorrer

Era uma manhã bonita com céu azul e o sol batia forte na janela, anunciando um dia quente na cidade. Eu faria entrevistas e iria ao Fórum Criminal ler alguns processos para uma reportagem doída e polêmica sobre aborto clandestino. Então, como todos os dias, desde meus 14 ou 15 anos, escolhi a roupa que iria vestir não de acordo com o calor que fazia lá fora mas com o trajeto que faria a pé e o número de horas que passaria na rua. Metrô lotado, ruas desertas e mal iluminadas eram os fatores determinantes para a seleção nada condizente com o verão que vi pela janela.

Não que a roupa impeça ou favoreça assédio, cantada ou estupro. Mas em um país onde uma mulher é estuprada a cada 4 minutos e que 26% dos brasileiros acredita que “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser estupradas”, é preciso coragem para usar um vestido curto. E nem sempre eu acordo com essa coragem.

Era importante também lembrar de pegar meu tocador de música e os fones, para não ouvir as cantadas ofensivas que ainda assim pipocariam ao longo do dia. Um ritual diário comum a muitas mulheres, como já foi discutido algumas vezes aqui no PapodeHomem mesmo, como nesse e nesse post por exemplo.

Aliás, quando escrevi uma reportagem sobre assédio e cantadas de rua, ouvi uma explicação muito bacana da psicóloga Daniela Rozados, que faz parte de um grupo de estudos de gênero da Escola Politécnica da USP, sobre como homens e mulheres se apropriam do espaço público de forma diferente:

“O mapa mental da cidade da mulher é menor do que o mapa mental do homem, o espaço público é extremamente condicionado ao gênero. Horários, regiões da cidade, meios de transporte, pontes. Mulheres têm medo de andar em pontes por causa das reiteradas histórias de estupro, por exemplo. Deixam de aceitar trabalhos porque teriam que andar a pé a noite ou pegar um ônibus em um lugar ermo”.

Sabe, quando essas coisas acontecem, sinto que meu corpo não é meu.  E a proposta desse artigo era justamente na contramão – falar que o corpo da mulher é dela e de mais ninguém. E isso parece tão óbvio dito assim, né? Aposto que se a gente tivesse agora batendo um papo, olho no olho, mesmo sem me conhecer, você diria que meu corpo é meu, claro, de quem mais seria?

Voltando àquele dia, já na rua, leio a notícia de que uma estudante lésbica de 25 anos sofreu um “estupro corretivo” por dois homens que queriam ensiná-la a “ser mulher”. E 37,6% das vitimas de homofobia no Disque 100 são lésbicas.

Enquanto isso, ao meu lado, no metrô, um rapaz olha o celular e conversa com o amigo que está em pé. Ele ri, mostra uma foto de uma garota seminua e diz “se liga, tanto que eu pedi, a mina finalmente mandou”. O amigo responde: “mó gostosa, joga lá no grupo do Whatsapp”.

O outro concorda e em poucos segundos, a foto que a menina (em um olhar rápido parece bem menina mesmo) mandou como uma brincadeira a dois se torna pública.

E eu automaticamente me lembro das duas garotas de 16 e 17 anos que tiveram fotos e vídeos vazados na internet e se mataram. Lembro que também conversei com as famílias das meninas e com vários adolescentes sobre revenge porn para uma reportagem e descobri que ter a nudez exposta nas redes é realmente algo muito, muito grave e transforma a vida delas em um pesadelo por muitos anos.

Porque quando se estupra alguém por ser lésbica ou quando se compartilha a intimidade dessas meninas, o corpo também não é mais delas, percebe? Assim como os corpos das mulheres que sofrem violência doméstica, são estupradas por seus próprios maridos, morrem em mesas de cirurgias plásticas ou com distúrbios alimentares em busca do corpo perfeito década após década pregado pela mídia como aquele sem gordura e com Photoshop, sem pelos ou cabelos brancos, rugas, olheiras, com maquiagem, dentes brancos e que estão sempre, sempre disponíveis aos desejos masculinos. Também não são das mulheres os corpos forçados a beijos e pegações em baladas mesmo depois do “não” que de fato quer dizer “não”.

Resultado de pesquisa do Think Olga sobre como as mulheres reagem ao serem assediadas na rua

Chego finalmente ao Fórum Criminal da Barra Funda. Em alguns minutos estou conversando com a defensora pública Juliana Beloque, que me conta um de seus casos, que seria julgado naquela tarde. Uma mulher de 37 anos, muito pobre, desempregada, mãe solteira de três filhos pequenos, abandonada pelo namorado quando descobriu a gravidez que, desesperada, teria comprado um remédio abortivo de uma prostituta e três dias depois de usá-lo de forma incorreta, teve uma hemorragia, foi ao hospital e foi denunciada pela médica que tirou de seu útero “uma massa amorfa, provavelmente uma placenta”. A mulher poderia pegar até 4 anos de prisão, já que o aborto é crime no Brasil.

O namorado? Cometeu o clássico e impune “aborto masculino” quando abandonou a mulher à própria sorte. E mesmo sendo responsável pela morte de uma mulher a cada dois dias no país, não há sinal de que o aborto venha a ser discutido com lucidez e tratado como problema de saúde pública.

Só quando voltei pra casa mais tarde, juntei esses pontos e comecei a reflexão que estou te contando aqui agora. Na televisão, meninas de biquínis serviam cervejas a mesas de homens em bares, como sempre. Ali, nem seus corpos e nem mesmo as cervejas eram delas.

PS: Desculpa se te chateei com essa história, moço. Mas a gente precisa falar sobre isso, né? Porque continuo sustentando o que disse no começo da nossa conversa. Se eu te perguntasse “meu corpo é meu?” você provavelmente diria que sim. E vai ser muito legal quando isso finalmente acontecer.

Mecenas: HOPE Lingerie

Link Youtube

Para a Hope, a intimidade da mulher é só dela. Ninguém tem o direito de compartilhar, curtir ou postar seus vídeos e fotos íntimos. A menos que ela queira.

Nesse vídeo, a Hope transmite esse sentimento comum entre todas as mulheres, defendendo a sua intimidade.


publicado em 27 de Março de 2015, 10:46
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Andrea Dip

Andrea Dip é repórter da Pública e começou no jornalismo de direitos humanos em 2001 na revista Caros Amigos. Desde então já colaborou com veículos como Marie Claire, GQ, Revista do Brasil, Trip entre outros. Tem 4 prêmios de jornalismo e recentemente produziu a primeira reportagem investigativa em quadrinhos do Brasil, através do Prêmio Tim Lopes de Jornalismo Investigativo da Andi.


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