Assédio sexual. O que você tem a ver com isso?

 

Dos meus 28 anos de vida, passei 16 sofrendo assédio.

 

Uma violência sorrateira, que nós, mulheres, sabemos que vai acontecer ao sair de casa. Demorei muito para entender o que acontecia e por que eu me sentia tão humilhada ao ouvir os “gostosa”, “princesa”, “tesuda”, “te comia todinha” que se escuta cotidianamente na rua. Por muito tempo, achei que era minha culpa. Eu não devia usar saia ou vestido. Não devia me arrumar. Usar maquiagem ou decote, nem pensar. Não devia andar sozinha à noite. E, entre as coisas que foram tirando a minha dignidade, a pior era a vergonha.

Até pouco tempo atrás, eu não tinha coragem para comentar sobre isso com a família, namorado ou amigos. Era assunto proibido. O que me abriu os olhos foi uma pesquisa, divulgada no ano passado: a Chega de Fiu Fiu.

 

Quando fui responder ao questionário proposto pela Olga – uma organização feminista que se propõe a debater a feminilidade nos dias de hoje –, me senti acolhida logo de cara ao ver que outras sete mil e tantas mulheres já haviam passado pelos mesmos problemas que enfrento desde a adolescência. Assim como eu, 99,6% delas não gostava desse tipo de “cantada”. Assim como muitas de nós, mais de 70% não respondia às provocações por medo.

 

Medo Alguns dos resultados da pesquisa Chega de Fiu Fiu, que conversou com quase 8 mil mulheres. Arte: Boobie Tra
Alguns dos resultados da pesquisa Chega de Fiu Fiu, que conversou com quase 8 mil mulheres. Arte: Boobie Tra

A partir daquele momento, quis que mais mulheres e mais homens soubessem o que era aquele assédio velado. Queria que todos soubessem como ele estava ligado ao machismo e ao estupro – muitos homens ainda consideram inaceitáveis certas condutas e escolhas das mulheres, como "ficar bêbada", "sair de casa sem o marido" e "usar roupas justas e decotadas". Queria que meu namorado soubesse que aquilo existia. Meu namorado se considera feminista, mas nunca soube que eu passava por tudo aquilo até que a pesquisa da Olga saiu e o assunto virou tema nas rodinhas no bar, no almoço em família, nas reportagens e nas redes sociais.

 

Pessoalmente, acredito que a violência contra as mulheres só vai acabar quando esse for um problema de todos: mulheres e homens – essa inclusive tem sido a estratégia de campanhas como O Valente não É Violento, da ONU, que busca quebrar arquétipos antigos sobre o que é ser homem e trazer novas possibilidades de comportamento para o masculino.

 

Também comecei a estudar mais sobre a história, os marcos e as bandeiras do feminismo no Brasil: o Jornal Brasil Mulher, a União de Mulheres de São Paulo, a SOF (Sempreviva Organização Feminista), a Marcha das Vadias e tantas outras lutas. Durante as pesquisas, descobri que as mulheres começaram a circular com frequência no espaço público apenas no começo do século 20. Descobri também que essa entrada no espaço urbano foi marcada por uma demarcação, que diferenciava e separava as mulheres em dois grupos: o das “prostitutas” e o oposto, “as mulheres de família”. Uma vez fora do lar, a mulher precisava monitorar seus gestos, aparência e roupas, para não ser confundida com a figura dissoluta da “mulher da rua”.

 

Os anos se passaram, mas a lógica de muita gente ainda não mudou. A obrigação feminina de se adequar à figura honesta da “mulher de família” é cruel, porque perpetua a lógica machista que culpa a mulher quando ela é agredida ou estuprada. Uma pesquisa do Ipea, Tolerância social à violência contra as mulheres, mostrou que 26% dos brasileiros concordavam com a afirmação “mulheres que usam roupas que mostram o corpo merecem ser atacadas”. Uma violência baseada na ideia de que quando uma mulher não se comporta, ela deve ser punida.

 

Ilustração feita pela designer Gabriela Shigihara. Ilustração feita pela designer Gabriela Shigihara
Ilustração feita pela designer Gabriela Shigihara

 

O documentário Chega de Fiu-Fiu

 

O que mais me intrigava quando comecei a pensar sobre o tema era: quanto de direito as mulheres realmente têm no acesso ao espaço público? Qual é o espaço das mulheres na cidade?

 

Com isso na cabeça, decidi que gostaria de mostrar como o assédio acontece e quem o pratica, e comecei a pensar num modo de contar essa história. A linguagem audiovisual foi a escolhida – inspirada pelo documentário belga "Femme de la rue" e por ser um jeito de aprofundar o debate, mostrar a complexidade do tema e sensibilizar mais pessoas.

 

No início de 2014, eu e outras mulheres decidimos fazer o documentário Chega de Fiu Fiu, e passamos a explorar nosso corpo como ferramenta para esse registro. Para entender como o assédio acontece, decidimos percorrer pontos com denúncias no Mapa Chega de Fiu Fiu, uma ferramenta colaborativa criada pela Olga em que as mulheres compartilham suas histórias.

 

Começamos usando uma câmera GoPro e um gravador, mas as imagens não ficavam na altura correta. Foi aí que a Fernanda Frazão, fotógrafa e também diretora do filme, percebeu que precisávamos de outra metodologia: ela trouxe um óculos com microcâmera escondida para o projeto. A experiência se tornou muito mais natural e espontânea.

 

Os óculos nos permitiram ser protagonistas da situação e obter uma imagem muito subjetiva, em que o agressor olha no olho do espectador.  Nós utilizamos o aparelho em situações do dia a dia, a caminho do trabalho ou da padaria, por exemplo. Quando ouvimos um assédio, não passamos reto nem fingimos que não ouvimos: paramos para conversar com o agressor. Perguntamos por que mexeu com a gente, se ele sabe o que é assédio e o quanto aquela situação é constrangedora para nós mulheres.

 

Depois das conversas, o uso do óculos espião foi revelado. Talvez por não verem nada de errado na conduta ou fazerem pouco das denúncias, todos os entrevistados consentiram o uso das imagens.

 

Ao longo do ano o filme foi crescendo, e mais mulheres pediram para participar da experiência com os óculos. Mesmo para nós, que filmamos as situações que aparecem no teaser, foi impressionante assistir às imagens gravadas e constatar o impacto das cenas. Agora, decidimos lançar nosso projeto no Catarse para ampliar a rede de pessoas interessadas e também trazer o fôlego que precisamos para ampliar o documentário, mostrar como o assédio acontece nos vários Estados brasileiros, fazer uma edição profissional e divulgar o filme.

 

Ajude o Documentário Chega de Fiu Fiu

Em menos de 1 dia de crowdfunding, batemos nossa meta inicial, de R$ 20 mil reais. Já foram arrecadados mais de R$ 42 mil, e faltam 51 dias para alcançarmos as próximas etapas:

 


  • 2ª meta – R$ 50.000 – Produção, gravação de entrevistas e especialistas, roteiro de edição e trilha sonora.


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  • 3ª meta – R$ 80.000 – Finalização do filme, distribuição e divulgação.


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Para nós, tem sido muito importante ver o debate que a campanha tem sustentado na internet e nos meios de comunicação, além dos apoios de personalidades que admiramos muito: a Laerte, a Karina Buhr e o Gregório Duvivier já se posicionaram a favor da iniciativa.

Aos leitores do PapodeHomem, deixo um convite muito esperançoso para que visitem a nossa página no Catarse e nos apoiem no filme e na causa, pelo fim do assédio! E espero que, se já não sabiam antes, vejam o quão fundamental é a participação de vocês no combate à violência contra as mulheres.

 

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Nota do Editor: É difícil para muitos de nós, homens, saber de forma precisa o que é assédio. Peguei emprestado um trecho do texto "A gentleman's guide to street harassment", publicado no Medium por Zaron Burnett III, para ajudar a desmitificar o que muita gente classifica “elogio” ou “simpatia”. Não importa se é só um oi: é indesejado? Invade o espaço do outro? É violento.

 

Dizer “Oi” é como uma gota d’água. É inofensivo, é natural, é inconsequente, mas também pode ser usado como método de tortura. Certamente, se um homem diz olá para uma mulher com quem ele fantasia ainda que não haja nenhum sinal de interesse, esse é um ato egoísta. É uma tentativa de mascarar o desejo por atenção atrás de um véu de cortesia. A não ser que você diga olá para todo mundo o tempo todo na rua, como se faz no interior, não se trata de um gesto amigável.

publicado em 26 de Novembro de 2014, 02:14
File

Amanda Kamanchek

Jornalista e documentarista, trabalha na campanha O Valente não é Violento da ONU Mulheres e é diretora do documentário Chega de Fiu Fiu.


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