Vira homem, porra | É, tem razão #3

Nada de ficar com essas besteira de pensar em mulher quando tá com os bróder na sinuca

Não pensou se seria cafona, apenas ajoelhou-se e pediu como mandava o ritual. "Namora comigo, anjo?", disse segurando as duas mãozinhas dela entre as suas. Ela disse sim e, com lágrimas, estava firmado entre os dois, compromisso de amor. Depois de quase um mês de encontros e montagem de convivência, estruturas de conversas, joguinhos sensuais, estava formado o relacionamento e, como haveria de ser em sua cabeça, faltava a formalização.

Deixou a nova namorada em casa no começo da noite, ficou do portão vendo-a entrar. Os suspiros saltavam do peito aos montes, como se suas vias respiratórias duplicassem e o ar visitasse os pulmões de forma exacerbada. E o excesso o fazia flutuar. Precisava extravasar.

Na sinuca, quando entrou no bar Andorinha, já tinham escolhido os times das rodadas da noite e, mais uma vez nos últimos tempos, ele ficaria de fora. Cumprimentou os amigos, disse que não tinha problema, que ficaria de substituto de novo sem problemas. Tiraram sarro do sorriso bobo que ele trazia na cara quando se sentou no canto e ele abriu que estava chegando da casa da menina, que agora era sua namorada. Ganhou o pequeno cumprimento de respeito dos companheiros de sinuca que rapidamente se organizaram com a atenção de volta no jogo, nas bolas, na mesa verde.

Mas sua cabeça estava no ocorrido recente, na plasticidade da cena, na emoção de ser aceito, de ter um amor pra chamar de seu. Quando algum dos jogadores dava a volta na mesa para ver a jogada do adversário e chegava perto dele, começava facilmente a discorrer sobre o fato romântico, corria a história desde o começo e botava palavras bonitas e pontuações mais demoradas quando achava chegar nas partes mais cruciais. Dizia  com os olhos fixos nos desenhos do chão do bar e ganhava uma gracinha quando botava de novo o sorriso estúpido na cara desacreditada da própria sorte.

"Caralho, agora vai ser assim, é?". A pergunta lhe botou de volta ao jogo de sinuca. "Claro, porra, eu respeito o seu namoro, todo mundo tem direito a um afagozinho pra não passar vontade, mas eu fico ressabiado com essas coisas, sabe? Agora atrasa a sinuca, tu joga bem e fica nessa de não jogar, daqui a pouco falta um dia, essas parada que namoro precisa e, ah, quando vê, sumiu. E bróder antes das minas. Sempre foi assim, né? Quero só ver se vai continuar fortalecendo aqui com a gente".

O resto do bar ficou em silêncio, uns balançaram a cabeça afirmativamente. Ele se levantou, já de peito empinado como precisava fazer para ocupar mais espaço em volta de si e, com a voz bem empostada de quem tem plena confiança no que está a dizer, retrucou: "Tá maluco? Porra de mulher me fazer perder sinuca, me tirar da mesa? Nem vocês me tiram da mesa, bando de pato, vai mulher minha mandar em quê?". A birosca toda deu risada, um pequeno alívio no ambiente. "Quero ver é se você vai ter essa língua toda aí pra falar amanhã quando eu jogar e tirar grana de todo mundo aqui". 

Na noite seguinte, deixou a namorada mais cedo em casa. Ela perguntou se ele não queria entrar, achando que o fim precipitado seria um sinal de que poderia avançar. Mas ele negou veemente. Disse que precisava ir ao bar jogar. Ganhou todas naquela noite e na seguinte, quando, novamente, adiantou o passeio para poder deixá-la em casa e sinucar com a molecada do Andorinha. 

Na terceira noite, foi bater no portão dela e deu com a moça enfurecida na janela. Disse que não ia sair, o mandou para os quintos dos infernos e que não ia mais namorar quem já tá namorando com aquele bando de macho lá do bar, que não era mulher de ficar atrapalhando o amor dos outros. Fechou a janela e não saiu mais, mesmo com as palmas e o tocar de campainha dele. 

Acabou acabado.

No botequim, o espanto inicial foi o de ele ter chegado cedo. Há muito que não comparecia com aquela antecedência. Perguntado se não tinha namoro pra bater ponto, ele foi enfático. "Não tem mais mulher no meu pé. Tava tudo muito chato, cobrança demais, essa parada de precisar de mim. Não é pra mim essas porra não. Agora chega de papo e vamos jogar ou aqui virou repartição, cacete?". Perdeu todas as rodadas da noite. Foi embora mais cedo.

Na volta pra casa, passou mais uma vez em frente à casa dela. Bateu palma, a chamou duas vezes, tocou a campainha. Nada. A cara se franziu toda. Ai dele se saísse uma gota de pranto que fosse. Trancou o rosto com um nó na boca e saiu rumado para casa. "Ah, foda-se. Vira homem, porra". 

É. Tem razão.

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publicado em 24 de Junho de 2016, 00:10
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Jader Pires

É escritor e colunista do Papo de Homem. Escreve, a cada quinze dias, a coluna Do Amor. Tem dois livros publicados, o livro Do Amor e o Ela Prefere as Uvas Verdes, além de escrever histórias de verdade no Cartas de Amor, em que ele escreve um conto exclusivo pra você.


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