Verdades que Matam (Talk Radio, 1988) | WTF #81

Sobre o filme de 1988 dirigido por Oliver Stone e protagonizado por Eric Bogosian

Em 1987 Eric Bogosian escreveu uma peça de grande sucesso, que acabou finalista do Pulitzer e manteve 211 apresentações ao longo de seis meses na concorrida cena teatral de Nova York. No ano seguinte, Talk Radio foi roteirizada para o cinema em conjunto com Oliver Stone, que logo depois dirigiu o filme cujo título recebe por estas bandas a tradução canhestra de Verdades que Matam, um legítimo spoiler.

Não tenho certeza se o assisti pela primeira vez na TV ou em VHS, mas sua intensidade marcou o início da adolescência, e ao longo dos anos o revisitei quando pude. Foi com ele que conheci tanto Bogosian quanto Stone, cujos trabalhos a partir daí sempre busquei reparar com atenção – bem como, também por esse filme, vim a entender, ainda que indiretamente, algo da veia política e verve ativista mais iluminada presente nos EUA. Infelizmente, após Talk Radio, Bogosian nunca mais protagonizou um filme – embora aparições suas como coadjuvante em filmes de Woody Allen e Robert Altman saltam aos olhos. É uma figura interessante que, mesmo geralmente em papeis de personagens judaicos, é de ascendência armênia, tendo recentemente escrito um livro sobre o genocídio que seus avós enfrentaram – história que só veio a interessá-lo depois de velho.

Sempre apreciei filmes baratos, “de uma locação só”, aconchegantes, ou, como no caso deste, claustrofóbico. Além disto, também me era cativante o tema do apresentador de programa de rádio, talvez melhor representado por Bom Dia Vietnã, uma versão bem menos negra da vida de radialista lançada um ano antes de Talk Radio.

Mas aqui temos um noir intenso e desesperador, tanto na iluminação e uso da câmera, como pelo fim trágico. É um filme claustrofóbico tanto pelo cenário quanto pela posição isolada do protagonista, que está em constante conflito com tudo e todos ao redor.

Bogosian começou a carreira escrevendo aquele tipo de peça mais próximo do stand-up, o monólogo. É fácil conceber a dificuldade de ser bem-sucedido apenas falando sozinho num palco de teatro, sem nem mesmo necessariamente fazer graça, pelo contrário. Ainda assim, Bogosian é aquele tipo raro de ator-escritor fascinante de se ver e ouvir, seja lá o que esteja falando.

Embora Talk Radio não seja estritamente um monólogo, é quase isto. O filme e a peça se passam quase inteiramente em dois ou três programas de rádio em tempo real. Ao receber ligações dos ouvintes, o personagem de Bogosian interage numa assustadora sucessão de conversas de humor negro com paranoicos etnocêntricos, pseudointelectuais, puxadores de saco, artistas do insulto, gente que bate em crianças, racistas, estupradores, viúvas solitárias, grávidas, e assim por diante.

A primeira conexão que vou traçar com Talk Radio é justamente o stand-up, e o faço lembrando outro filme: Lenny, de 1974, um preto-e-branco trágico sobre o comediante Lenny Bruce, interpretado por Dustin Hoffman.

O que temos aqui são profetas modernos, um “falante público” simultaneamente divertido e desagradável, em algum tipo de cruzada interior-exterior: seja de autorredenção ou de sanitização dos males da sociedade pela exposição, ou ambas. No Brasil não entendemos bem essa figura, mesmo porque não temos tradição de stand-up ou de discurso público como entretenimento. Quando alguém por aqui abre a boca, seja para falar algo importante, ou para ser divertido, queremos dormir. Tendemos a achar o comunicador um boçal arrogante simplesmente porque, ora, nos encontramos na posição de ouvintes. Nossa tradição não respeita alguém que se saliente num microfone – o brasileiro não ouve e não quer ouvir. Quer dizer, só ouve quando é o que espera e quer ouvir – em comício, e assim por diante.

Na cultura estadunidense, no entanto, há uma tradição de oratória, e não só isso, de oradores que são entertainers. Particularmente se pagam para ouvir alguém, não ficam com a sensação daquela pessoa estar posando de melhor que você só porque você a está ouvindo (o que acontece aqui). Como você pagou, você quer ser entretido.

Mas, como todos sabem, Lenny Bruce entrou numas. Por ter falado alguns palavrões ou feito algumas piadas desagradáveis, o botaram na justiça. Várias vezes. Os tempos eram outros, e as leis de “obscenidade” ainda estavam em tensão com a primeira emenda. Com o passar dos anos, Lenny acabou transformando os shows num lamento público sobre suas lutas jurídicas – com inclusive jargão, e leitura de trechos dos registros de tribunal, que as pessoas não costumam tolerar bem, especialmente quando esperam ouvir comédia.

Como a vida de Lenny não ia bem por outros motivos, inclusive drogas pesadas, o fim não foi tão fácil, ou divertido. Mas ainda assim ele acabou sendo a grande inspiração dos comediantes edgy (me recuso a dizer “politicamente incorretos”, porque seria anacrônico e besta) das décadas seguintes, tais como Richard Pryor, George Carlin e Bill Hicks.

Bogosian, por outro lado, não é um comediante – e nem o personagem do filme, Barry Champlain, é extremamente engraçado, ainda que algumas vezes isto seja dito a respeito dele, como elogio constante de outros personagens. Seu sarcasmo e a disposição de destruir o interlocutor ao vivo podem até nos tirar risadas nervosas, vez que outra, mas não se trata de alguém que nos faça rir “de graça” – parece sempre haver uma maldade por trás, como em um dado momento ele diz, “enfio a faca na ferida e dou uma torcidinha”.

Barry Champlain foi inspirado em Alan Berg, um polêmico radialista texano assassinado por neofascistas em 1984. O que Berg fazia era uma espécie de reality show com a própria vida, numa era em que não havia reality-shows ou podcasts íntimos e confessionais (ou de qualquer tipo, eram os fucking 80’s!) como o WTF de Marc Maron, onde Bogosian recentemente foi entrevistado. Em seus shows, basicamente compostos de insultos, Berg, como Champlain, vez após vez ridicularizava os espectadores que ligavam, por exemplo, para tecer comentários racistas. No Texas, aparentemente, ainda mais nos anos 80, o espectro político era, digamos assim, mais “definido”. Deu no que deu.

Susan Mackey-Kallis escreveu um artigo acadêmico sobre Oliver Stone onde diz, no entanto, que “Barry Champlain é mais do que apenas um ‘provocador maquiavélico’, alguém que só quer chocar o público; ele é uma espécie de farol de nossa ‘psicose nacional’, um profeta dos ‘dos anos 80, solipsistas e paranoicos, com os nervos à flor da pele”. Ela segue dizendo que “Champlain é uma voz que grita contra os pecados da era moderna movida a ego e obcecada pela ganância” e “ele (Champlain) fala o que a América não quer ouvir: que se trata de uma sociedade profundamente preconceituosa, burra e cheia de ódio”. E, se você seguir o exemplo de Champlain no Brasil hoje, todo mundo concorda, e ainda assim, joga ovo igual. E depois ainda diz, com cara de santinho, “tem que ouvir a opinião do outro, dialogar com todos os lados da questão”, mesmo que se trate de um porco racista, ou assemelhado!

Por outro lado, Champlain não é um herói, de modo algum. É um personagem trágico.

Ele é, talvez, e os anos cada vez mais revelaram isso, uma paródia do próprio Stone: alguém que veio à cena com uma mentalidade pós-hippie, onde o idealismo dos anos-sessenta azedou, mas não desapareceu completamente, e que dá as reais por diversão e grana; mais por estilo e por estar onde está do que por integridade pessoal. Ele é tanto herói quanto vilão, torturador e vítima. Antes de Champlain ser, ao fim do filme, como Berg, assassinado, pode-se dizer que sua integridade pessoal já havia cometido suicídio. Ao manter uma fachada pública de “desmascarador” dos problemas do mundo e profeta da reforma, mas no fundo ser apenas mais alguém que lucra com sensacionalismo e polêmica, Champlain reduz a si próprio a uma nulidade sem nenhum relacionamento significativo com qualquer ser humano.

Apesar de todas as luzes e cortinas de fumaça, jogos verbais, insultos e insinuações, a única mensagem que os Rush Limbaugh, Howard Stern e Barry Champlain da vida passam é: o mundo está louco! Hoje, quem faz algo parecido, sem ser do lado lunático, e até bem mais limpinho, é talvez Bill Maher – que se safa por ser uma imitação natural e viva de Johnny Carson, a epítome do sujeito não perigoso (e mesmo por isso ironizado no “Here’s Johnny” do Iluminado de Kubric). Ainda assim, Maher sem dúvida deve precisar de segurança para andar na rua.

Por outro lado, a audiência do programa de Champlain em Talk Radio é o que vemos por todo lado na internet: e nesse sentido o filme é profético. Basta abrir uma área de comentário em jornal de alta-circulação para ver exatamente essas figuras patéticas com que Barry tem que lidar, seja aqui no Brasil, seja em qualquer lugar do mundo. É apenas ódio, ignorância e falta de articulação, vez após vez, em tripas longuíssimas de “participações da audiência”.

De todo modo, Talk Radio nos oferece um personagem unicamente antipático, mas nos desafia a virar o rosto. Seguimos fascinados. Sente só o monólogo final do filme:

Link YouTube

“Sou um hipócrita; exijo sinceridade enquanto eu mesmo minto. Denuncio o sistema e ao mesmo tempo o adoto completamente. Quero dinheiro, poder e prestígio. Quero audiência, sucesso, e não me importo nem um pouco com vocês ou com o mundo. Isso é a verdade.

Eu podia dizer que sinto muito por isso, mas não vou dizer. Por que deveria?

O que estou dizendo, no fim das contas, é: quem são vocês… ‘audiência’? Ficam aí me cercando todas as noites feito uma alcateia, já que não são capazes de encarar o que realmente são, do que são feitos. Sim, o mundo é um lugar terrível, sim, o câncer e os trituradores de lixo vão te pegar. Sim, vai vir outra guerra, e sim, o mundo vai ser destruído, tchauzinho pra todos nós. Tudo está fudido, mas vocês gostam que seja assim, não é mesmo? Ficam fascinados com todos esses detalhes pútridos.

São fascinados pelo próprio medo. Deleitam-se com enchentes, acidentes de carro, epidemias. Sua maior felicidade é ver os outros sofrendo. E é aí que eu entro, não é? Estou aqui para guiá-los pela mãozinha na floresta negra de seu próprio ódio e humilhação. É um serviço de utilidade pública.

Vocês têm tanto medo.  São como uma criancinha sob as cobertas, com medo do homem do saco, mas que não conseguem viver sem ele. Seu medo da própria vida se tornou entretenimento. Mês que vem milhões de pessoas estarão ouvindo a esse show, mas vocês seguem sem nada a dizer! Tecnologias maravilhosas estão a nossa disposição, mas em vez de alçarmos novos patamares vamos só ver quão baixos poderemos ir; quão fundo no lodaçal poderemos submergir.

Sobre o que querem falar, hein? Sobre os placares do jogo, seu bicho de estimação, orgasmos? Vocês são patéticos. Desprezo cada um de vocês. Vocês não têm nada, absolutamente nada!  Não têm cérebro, não têm poder, não têm futuro, não têm esperança, nem Deus! A única coisa em que acreditam é em mim. Mas e se vocês me perderem?

Eu mesmo não tenho medo, vejam bem.  Venho aqui todas as noites. Falo o que tenho que falar; deixo minha mensagem. Digo a vocês exatamente o que são, preciso fazer isso.  Não tenho escolha!

Vocês me assustam. Venho aqui todas as noites e me atiro sobre vocês. Insulto-os e xingo-os, e vocês voltam e pedem mais! Qual é seu problema? Por que seguem ligando? Não quero mais ouvir vocês. Parem de falar – VÃO EMBORA!

Bando de covardes molengas, preconceituosos, trêmulos, bêbados, insones, paranoicos, nojentos, pervertidos, voyeristas, gente obscena que sabe usar um telefone! Isso é o que vocês são! Ora, que se fodam! Não preciso de seus medinhos e de sua burrice, entenderam?  É tudo um grande desperdício, pérolas aos porcos.

Se alguém aí tem alguma ideia do que estou falando, eu gostaria... Quem está na linha?”


publicado em 03 de Março de 2016, 00:00
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Eduardo Pinheiro

Diletante extraordinário, ganha a vida como tradutor e professor de inglês. É, quando possível, músico, programador e praticante budista. Amante do debate, se interessa especialmente por linguística, filosofia da mente, teoria do humor, economia da atenção, linguagem indireta, ficção científica e cripto-anarquia. Parte de sua produção pode ser encontrada em tzal.org.


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